A Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) promoveu uma atualização relevante em seu entendimento sobre a cobrança de demurrage de contêineres, por meio do Acórdão nº 521/2025. A mudança estabelece que a cobrança dependerá da comprovação de culpa, interesse ou opção do usuário, afastando a prática histórica de cobrança automática pelo simples atraso na devolução do contêiner. Mas, na prática, o que muda para armadores, importadores e terminais, e quais fundamentos jurídicos sustentam essa atualização?
Historicamente, o termo demurrage referia-se à permanência do navio além do prazo contratual. Com o advento da conteinerização, o conceito passou a ser aplicado ao próprio equipamento, já que a disponibilidade de contêineres é condição essencial para a continuidade das operações e para o atendimento da demanda.
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Nesse contexto, a sobre-estadia surgiu como uma indenização contratual devida ao armador pelo uso do contêiner além do prazo livre (“free time”), compensando o custo de imobilização do equipamento e incentivando a eficiência logística. Sem esse mecanismo, não haveria incentivo econômico para a devolução tempestiva, desequilibrando a circulação dos equipamentos e tornando o sistema insustentável.
Tradicionalmente, a cobrança da sobre-estadia não dependia da culpa do usuário, refletindo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e da própria ANTAQ, de que se trata de indenização contratual e não de penalidade. O cumprimento das cláusulas de free time e demurrage sempre foi essencial para a previsibilidade comercial e para o equilíbrio econômico entre as partes.
Com o novo entendimento, a cobrança passa a ser válida apenas quando o atraso decorrer de culpa, interesse ou opção do usuário, excluindo situações resultantes de falhas logísticas, indisponibilidade de depósitos ou limitações operacionais atribuíveis ao armador ou terminal. A medida evita que custos decorrentes de falhas alheias sejam transferidos ao usuário. Contudo, determinados entraves operacionais, como limitações estruturais dos portos, extrapolam a esfera contratual e podem afetar a atratividade dos portos nacionais, influenciando as decisões de escala dos armadores e, consequentemente, a competitividade do sistema portuário brasileiro.
Além disso, a correta identificação da origem das falhas e a atribuição de responsabilidades envolvem grande complexidade, especialmente em cadeias logísticas que integram múltiplos agentes. Na ausência de critérios objetivos, há risco real de comprometer a sustentabilidade econômica da navegação e gerar escassez de contêineres, com reflexos para todo o ecossistema logístico.
Ao excluir a cobrança sempre que houver falhas logísticas, o novo entendimento tende a concentrar o risco econômico nos armadores, afetando a eficiência e a previsibilidade do sistema. Isso exigirá investimentos adicionais em rastreabilidade, controles operacionais e documentação robusta, aumentando a complexidade e os custos administrativos para armadores e terminais.
Portanto, embora a atualização da ANTAQ represente um avanço na proteção ao usuário e na busca por transparência, ela também inaugura desafios importantes para armadores e operadores de cabotagem, ao alterar o equilíbrio econômico da sobre-estadia, trazer incertezas jurídicas e potencialmente comprometer a eficiência operacional da cadeia logística.
Acredito que o caminho para um arcabouço regulatório estável e equilibrado passa pela construção de critérios claros e objetivos e pela colaboração entre todos os elos da cadeia logística, de forma a garantir segurança jurídica, previsibilidade e sustentabilidade para o transporte marítimo brasileiro.
Vivian Pedra é gerente geral e jurídica da Norcoast. A advogada possui mais de 20 anos de experiência em multinacionais nas áreas regulatória, trabalhista, contratual, marítima, societária, comercial, ambiental, proteção de dados, civil, concorrencial e compliance no segmento de infraestrutura LATAM – Brasil, Argentina e Uruguai.






