O Comitê de Proteção do Meio Ambiente Marinho (MEPC) da Organização Marítima Internacional (IMO) realizou sua segunda sessão extraordinária (MEPC/ES.2), de 14 a 17 de outubro último, em Londres, com o propósito de adotar formalmente emendas ao Anexo VI da Convenção MARPOL, criando o “Net Zero Framework” (Emissão Zero).
Em abril deste ano, o Comitê havia aprovado o arcabouço conceitual do NZF, descrito a época pela IMO como o primeiro marco global que combina dois instrumentos obrigatórios para toda uma indústria:
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1. Limites progressivos de intensidade de emissões de gases de efeito estufa (GEE) nos combustíveis marítimos;
2. Um mecanismo global de precificação de emissões de carbono aplicável a navios acima de 5.000GT, responsáveis por cerca de 85% das emissões do transporte marítimo internacional.
Tudo indicava que os países membros e os armadores haviam “comprado” a ideia, e que o setor marítimo sairia na vanguarda da descarbonização do mundo. Contudo, para surpresa geral, pressões geopolíticas e econômicas de última hora mudaram o rumo e, por 57 votos a 49, decidiu-se adiar por um ano a votação final.

Além da previsível resistência de países exportadores de petróleo, a pressão decisiva veio dos Estados Unidos, cujo governo atual mantém uma agenda pró-combustíveis fósseis. O próprio presidente norte-americano ameaçou, com suas conhecidas retaliações comerciais, os países que apoiassem o pacote climático. O Brasil, alinhado à transição energética, votou contra o adiamento, juntamente com o México, Canadá, UE, África do Sul, Australia e mais alguns que não se deixaram intimidar pelas pressões.
O Ceticismo e a Esperança
E agora? Qual a chance de o projeto renascer daqui a um ano? O secretário-geral da IMO, Arsenio Dominguez, foi categórico ao afirmar que, embora o voto tenha sido postergado, o processo “não está morto”. Segundo ele, o trabalho técnico e político prossegue, e a organização permanece empenhada no caminho da descarbonização.
“Membros com diferentes pontos de vista estiveram na mesma sala e continuam dialogando — isso é o que o multilateralismo exige”, declarou.
A conhecida executiva brasileira de shipping Cristiane de Marsillac, presente em Londres, sintetizou em um post no LinkedIn o sentimento dos que veem o atraso como oportunidade:
“Teremos um período involuntário para preparar mais profundamente as bases para a transição. Resistência significa que o sistema está acordado. O progresso pode fazer uma pausa, mas não volta.”
Já o International Chamber of Shipping (ICS) alertou que o setor precisa de clareza regulatória:
“A indústria necessita de previsibilidade para realizar os investimentos necessários à descarbonização, em linha com as metas da Estratégia IMO-GHG.”
O Pragmatismo e a Política
A análise publicada pela Seatrade Maritime News em 28 de outubro ajuda a entender a ambiguidade do momento. Segundo a revista, o adiamento salvou o NZF de uma derrota iminente, mas apenas postergou o problema: o texto aprovado na primeira sessão extraordinária (abril/2025) permanece inalterado, aguardando nova votação em 2026.
Dominguez procurou destacar o “silver lining” — a vantagem de o diálogo ainda estar vivo. Reconheceu, contudo, que a votação revelou divisões profundas e que o desafio agora é “identificar áreas comuns de progresso” nas negociações que se reiniciam nas próximas semanas.
Entidades da indústria, como o World Shipping Council (WSC) e a Intertanko, veem o adiamento como janela de aperfeiçoamento. O WSC propõe usar o ano adicional para fechar lacunas e fortalecer o consenso, enquanto o diretor-executivo da Intertanko, Tim Wilkins, defende que o tempo seja usado para “melhorar o marco regulatório” de corte de emissões, resolvendo “as ambiguidades e preocupações levantadas pelos armadores”.
Mas a própria Intertanko reconhece que o caminho à frente é incerto, pois as posições se tornaram ainda mais polarizadas. A Seatrade detalha a pressão política exercida por Washington sobre países menores, descrita por diplomatas como “bullying” e “sem precedentes”.
O presidente Donald Trump classificou o NZF como “um imposto global da ONU sobre o transporte marítimo”, enquanto o secretário de Estado Marco Rubio celebrou nas redes o adiamento:
“Graças à liderança do presidente, os Estados Unidos impediram um enorme aumento de impostos da ONU que teria onerado os consumidores americanos.”
O economista Rico Luman, do ING Bank, alerta que o adiamento reduz as chances de aprovação futura, pois enfraquece o ímpeto político e reforça a oposição interna.
“O adiamento oferece mais tempo para buscar consenso, mas o impulso está desaparecendo. A procrastinação contínua pode, em última análise, levar ao cancelamento do NZF.”
Conclui a Seatrade: o NZF “ainda está vivo, mas pode estar sendo apenas mantido artificialmente — como quem tenta reanimar um cavalo morto”.
O Termômetro da Indústria: o que dizem as encomendas de novos navios
O relatório Alphaliner #42 (outubro 2025) lança luz sobre o pano de fundo industrial dessa incerteza. Nos dez primeiros meses de 2025, 72% das novas encomendas de porta-contêineres preveem o uso de combustíveis alternativos, mas essa proporção caiu pelo segundo ano consecutivo.
- Dual-fuel GNL: 60% das encomendas (63% em 2024);
- Dual-fuel metanol: queda de 18% (2024) para 12% (2025);
- Navios convencionais: aumento para 28% (19% em 2024), sobretudo nas classes até 7.500 TEU.
A retração do metanol verde decorre da escassez e do alto custo desse combustível — algo admitido por Maersk e CMA CGM, que enfrentam dificuldades em garantir suprimentos em volume e preço adequados. O DNV defende uma tolerância transitória ao uso de combustíveis fósseis, sobretudo o GNL, como “caminho mais longo” até biogás e e-LNG.
Enquanto isso, nenhum novo navio a amônia foi encomendado em 2025, e há apenas uma unidade elétrica e um navio a hidrogênio em construção no mundo.
Entre os grandes navios, porém, a tendência é clara: dos 131 navios acima de 10 mil TEU encomendados em 2025, apenas 10 são convencionais; os demais dividem-se entre 97 dual-fuel GNL e 24 dual-fuel metanol. A carteira global hoje se reparte em 55% GNL, 24% convencional e 21% metanol, evidenciando a busca gradual — e pragmática — do setor pela transição energética.
Reflexão
O adiamento do Net Zero Framework não ocorreu no vácuo: ele espelha o choque entre ambição climática e realismo energético. O setor marítimo demonstra disposição em avançar, mas depende de infraestrutura, política e financiamento para garantir combustível alternativo em escala global.
Se, como disse Dominguez, o processo “continua vivo”, talvez este hiato de um ano sirva para alinhar tecnologia, oferta de energia e diplomacia internacional. Mas o relógio climático não espera — e, embora o shipping ainda esteja na dianteira da descarbonização, ninguém pode se dar ao luxo de ficar parado no cais.
...The global supply of green fuel is limited, and the postponement of the Net Zero Framework will certainly not improve this situation..
Hapag Lloyd
Robert Grantham é sócio-diretor da Solve Shipping Intelligence Specialists.






