No centro da política fiscal brasileira, os regimes especiais desempenham um papel duplo: compensam distorções estruturais do sistema e viabilizam a competitividade de setores estratégicos. Embora muitas vezes tratados como “incentivos”, na prática, esses regimes são mecanismos de neutralização. Ou seja, são formas de corrigir uma carga tributária que, em vez de incidir sobre o lucro, penaliza o investimento.
Isso é particularmente sensível para indústrias intensivas em capital e tecnologia, como óleo e gás, em que o ciclo de retorno é longo e os riscos de exploração são elevados. Sem essas correções, projetos de grande porte seriam inviabilizados, pois enfrentariam um sistema que tributa pesadamente a aquisição de bens e serviços antes mesmo que haja geração de receita.
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A Reforma Tributária e seu Efeito para o Setor de Óleo e Gás
A reforma tributária é a maior mudança no sistema de impostos do Brasil em décadas. Aprovada em 2024, a reforma promete modernizar o país: simplificar tributos, eliminar distorções e destravar a economia. No papel, o novo modelo é promissor. Mas, na prática, ele deixa pontos em aberto, especialmente para setores estratégicos como o de óleo e gás.
Como este setor desenvolve projetos bilionários, com ciclos longos e alto risco, cada mudança de regra pode ter um custo alto para as empresas da cadeia. E é aí que entra o Repetro: um regime aduaneiro que suspende tributos sobre equipamentos e bens importados para exploração de petróleo. Parece incentivo, mas, na verdade, é uma compensação; uma forma de neutralizar a carga tributária que recai logo na aquisição dos bens no Brasil, ao contrário do que acontece em países desenvolvidos. Sem o Repetro, investir no Brasil fica mais caro. Muito mais.
Mas a reforma trouxe uma novidade: a ideia de que regimes como o Repetro poderiam simplesmente perder a razão de existir. Não por decisão política, mas porque deixariam de ser necessários. A criação do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) é a unificação de diversos impostos no Brasil, o que reduziria a necessidade de regimes especiais.
“Se a lógica do IVA funcionar bem, após 2040 o próprio Repetro pode acabar”, diz o tributarista Tiago Severini, sócio da Vieira Rezende Advogados. Num sistema não cumulativo, o imposto pago vira crédito. E o que hoje exige uma ginástica tributária, seria resolvido automaticamente.
Ainda se Tornam Necessários os Regimes Especiais?
O problema é que o Brasil continua longe desse cenário ideal. A complexidade federativa, a lentidão na devolução de créditos e a insegurança jurídica seguem firmes. Um mesmo equipamento pode ser tratado de formas diferentes por aduanas distintas. E isso assusta investidores.
Além disso, há uma narrativa crescente que coloca o setor de óleo e gás como vilão climático. A criação de um Imposto Seletivo sobre bens específicos, introduzido pela reforma tributária e com foco potencial em derivados fósseis, reforça essa percepção. A ideia de que “uma indústria rica deve pagar mais” ignora um fato essencial: essa é a indústria que banca boa parte da transição para fontes renováveis. Sem ela, não há futuro verde.
O Repetro pode, sim, tornar-se desnecessário: um dia. Mas, hoje, ele ainda é o que separa investimento de retração.
Além disso, há um aspecto temporal que merece atenção. A reforma tributária está faseada: o período de transição para o novo modelo se estende até 2033, enquanto a legislação que garante o Repetro permanece vigente até 2040. Isso significa que, entre 2033 e 2040, o setor de óleo e gás enfrentará um hiato regulatório, potencialmente marcado por insegurança jurídica, especialmente relevante para decisões de investimento de longo prazo. Destacar essa linha do tempo é fundamental para compreender os riscos e as escolhas estratégicas que empresas e formuladores de política precisarão enfrentar na próxima década.
Se a reforma tributária quiser cumprir sua promessa de modernização, precisará ser mais do que técnica. Terá que reconhecer as especificidades de setores que mantêm a economia de pé. Porque sem segurança jurídica, neutralidade econômica e coerência regulatória, a reforma pode se tornar mais um capítulo na longa história da incerteza brasileira.
Kenyth Freitas é Doutor em Administração e Professor no Mestrado do Ibmec Rio.
Charles Lopes é Mestrando em Administração no Ibmec Rio, Gestor em Logística Internacional na Indústria de Óleo e Gás e Membro da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB Rio de Janeiro.