“O novo player é bem-vindo se for mais eficiente; caso contrário, a permanência do incumbente é a expressão do próprio interesse público.”
A síntese é de autoria da Área Técnica do TCU no processo de acompanhamento da licitação do TECON 10 e não poderia ser mais apropriada. Ao mesmo tempo em que reflete o apurado trabalho do corpo técnico, que investigou a dinâmica setorial em detalhes, abordando todos os argumentos manifestados no processo, diz muito sobre o quanto se avançou para que a licitação do TECON 10 siga em frente, sem atrasos e sem restrições à competição, dirigida pelos parâmetros legais e pela eficiência econômica, gerando o máximo de bem-estar à sociedade e ao país.
O TECON Santos 10 mobilizou a mais abalizada burocracia técnica estatal em matéria de concorrência e regulação. A Superintendência Geral e o Departamento de Estudos Econômicos do CADE, a Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda e a Auditoria especializada no setor portuário do TCU se manifestaram sobre a restrição à participação de incumbentes na licitação.
PUBLICIDADE
Duas teses centrais foram enfrentadas sobre o tema: a primeira, a de se haveria fundamento concorrencial (jurídico e econômico) para se restringir a participação de incumbentes na licitação; a segunda, a de se haveria uma política pública de favorecimento de novos entrantes para operar o maior terminal de contêineres do Porto de Santos (e da América Latina).
Algumas passagens selecionadas dessas manifestações servem muito bem a sintetizar os entendimentos técnicos afirmados.
Sobre a absoluta inexistência de fundamento concorrencial para sustentar uma restrição à competição na licitação, concluiu:
i) a SEAE que “o efetivo desinvestimento do ativo já detido por parte do eventual incumbente vencedor do certame já seria medida suficiente” e a vedação à participação de incumbentes na fase inicial “aparenta ser excessivamente gravosa e ultrapassar o necessário para mitigar o risco identificado”;
ii) o CADE que “seria inadequado uma intervenção antitruste diante, apenas, de um apontamento de risco potencial”. Além disso, que a participação das atuais incumbentes apenas em uma segunda etapa “parece não atender aos princípios e diretrizes preconizados no Guia de Remédios Antitruste do Cade. Em especial, o princípio da proporcionalidade (...)”; e
iii) o TCU que “a ausência de “estudos concorrenciais que indiquem que a solução proposta é a mais eficiente” a situam “no campo do “achismo”, [pelo que] considera-se irregular a restrição à licitação defendida pelo poder concedente”.
“(...) ao optar pela vedação integral sem considerar de forma detida os remédios menos gravosos nem demonstrar a suficiência concorrencial da medida adotada, a decisão da Agência carece de fundamentação técnica compatível com os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e ampla competitividade exigidos pelo ordenamento jurídico”.
Ora, tendo a discussão em torno da vedação à participação de incumbentes na licitação sido feita, integralmente, sob a ótica concorrencial, e tendo sido esse fundamento afastado por todas as entidades técnicas, o debate sobre a restrição à participação de incumbentes na licitação deve ser tido como superado. Não há, aqui, espaço para escolhas meramente discricionárias.
Todavia, recentemente, o Ministério de Portos e Aeroportos inovou no discurso. Passou a argumentar que haveria uma política pública de promoção de novos entrantes no setor de contêineres em Santos. Seria uma política pública bastante específica, parece. Não indicou que problema essa política pública buscaria endereçar. Não indicou qual seria sua base normativa e sua legitimidade. Não indicou se a forma de endereçar o indefinido problema, favorecendo empresas não incumbentes, seria a mais eficiente. Nem tampouco indicou os resultados que se espera alcançar com isso, para que fosse possível medir seu sucesso. Apenas aludiu haver uma política pública, que por razões geopolíticas, em nome do interesse público, sustentaria restringir a competição na licitação para evitar riscos concorrenciais futuros.
Não há qualquer sinal de que a referida política pública, de fato, exista. Ainda assim, por dever de ofício, vale consultar a literatura especializada sobre o tema.
Entre nós, Maria Paula Dallari Bucci, dedicada ao estudo do tema há mais de 3 décadas, é clara ao definir as políticas públicas como “programas de ação do governo, para a realização de objetivos determinados, num espaço de tempo certo.” ( BUCCI, Maria Paula Dallari. As políticas públicas e o direito administrativo. RTDP 13, 1996, p. 140). Para a autora, as políticas públicas revelam a escolha de prioridades pelo governo, por meio de planos públicos como “o programa do material escolar, o programa do álcool”. E esses planos públicos exigem a edição de atos legais e infralegais.
A explicação é suficiente para demonstrar que não existe um “Programa de favorecimento a operadores portuários de terminais de contêineres não incumbentes no Porto de Santos e que não sejam armadores nem integrem grupos econômicos americanos ou europeus”. Convenhamos, seria curioso se existisse.
De todo modo, a área técnica do TCU se dedicou ao tema com seriedade. Sobre a suposta política pública de favorecimento de novos entrantes, restou clara a dubiedade sobre sua existência, bem como, admitindo-se em hipótese que existisse, a sua falta de maturidade e legitimidade para restringir a competição em detrimento da legalidade, da isonomia e da proporcionalidade. Para o TCU, a quem propositalmente referencio de modo extensivo, em 12 passagens:
I. “Rotular a medida como “opção de política pública” não dispensa essa demonstração; ao contrário, exige motivação técnica reforçada, sob risco de nulidade por vício de proporcionalidade e de motivação”;
II. “Não há em nenhum lugar a formalização pelo Ministério de uma política pública motivada e fundamentada para a entrada de um novo player em Santos. No ato justificatório (peça 64) não há qualquer menção descritiva dessa política pública”;
III. “ainda em 2024 se cogitava o adensamento e expansão de áreas dos incumbentes, sem nenhuma preocupação com a concentração ou com a urgência na licitação da área, o que torna altamente questionável a afirmação do Mpor, mais abaixo, de que existiria uma política pública madura de atrair novos players.”
IV. “a utilização de exemplos e conceitos sem a devida contextualização e desenvolvimento à luz do caso concreto não só os tornam desprovidos de qualquer utilidade para a análise como também indica a falta de maturidade da “política pública”, a qual não teria seguido os ritos e procedimentos típicos de um processo decisório adequado, momento em que as evidências, metas e indicadores seriam apresentados e discutidos.”
V. “a própria atuação recente da Antaq e do Mpor choca-se com a ideia defendida de que a existência de um player independente no Porto de Santos é altamente desejável. O Acórdão-Antaq 771/2024 aprovou sem ressalvas a compra da Santos Brasil (independente) pela CMA-CGM. Se fosse efetivamente desejável o cenário ilustrado pelo Mpor, a proibição da aquisição de um terminal independente por um armador seria uma medida muito mais efetiva para concretizar esse objetivo do que a restrição aos incumbentes na licitação. Cabe deixar claro que o Referencial para Avaliação de Governança em Políticas Públicas do TCU (RAGPPT) ressalta de maneira inequívoca que a política pública deve ter coesão interna, de modo que “os objetivos e as metas definidos devem se relacionar com as intervenções escolhidas”. Portanto, se política pública indica ser desejável um entrante independente, não há coerência com as escolhas recentemente tomadas por Mpor e Antaq”;
VI. “a ideia externada pelo Mpor revela mais um desejo recente sobre a entrada de um novo player, marcado por várias inconsistências, do que uma política pública formalmente instituída e desenvolvida, como se pode depreender do Referencial de Controle de Políticas Públicas do TCU (RCPPT)”.
VII. “a existência de uma política pública para a entrada de um novo player na documentação originalmente encaminhada não foi explicitada em nenhum momento e só agora o Mpor apresentou uma manifestação mais focada nesse ponto. As referências à política pública ao longo da documentação original são laterais e a maior parte das análises do Mpor e da Antaq focam-se unicamente em aspectos técnicos concorrenciais”.
VIII. “a inclusão dessa política na agenda não foi transparente, pois não constou do ato justificatório, não foi submetida à audiência pública e em nenhum lugar encontra-se formalmente institucionalizada com a devida exposição de motivos, tornado frágeis os “arcabouços legais para a sua sustentação”;
IX. “Não há, pelas manifestações do Mpor, nenhum elemento que permita concluir que a decisão foi tomada com base em evidências que demonstram sua capacidade de solucionar os problemas públicos e gerar valor ao menor custo possível. Ao revés, o relatório deixou claro que remédios menos gravosos podem ser impostos para reduzir os riscos concorrenciais, em homenagem ao princípio da proporcionalidade e isonomia”;
X. “Destarte, pelos critérios do RCPPT, a “política pública” citada pelo Ministério não tem maturidade suficiente para justificar uma decisão pela quebra do princípio da isonomia com a vedação aos incumbentes”;
XI. “em nenhum momento o Mpor e a Antaq conseguiram apresentar e justificar vedações com base em questões não concorrenciais. Foram até suscitados problemas de natureza geopolítica, mas sem nenhum tipo de desenvolvimento das ideias, de diagnóstico baseado em evidências e de suas implicações, ou mesmo comparação de possíveis soluções. Se for efetivamente necessária a presença de um novo player na armação, o caminho correto é diagnosticar as causas do desinteresse de novos entrante e traçar as soluções mais seguras e efetivas para atingir esse objetivo. Não foi apresentado nenhum diagnóstico com esse objetivo e nem de que forma as regras da licitação permitiriam atingir os objetivos pretendidos, bem assim a avaliação de alternativas”; e
XII. “Permitir a proibição aos incumbentes com base em uma política pública deficiente, sem seguir os procedimentos e etapas do ciclo de política pública, não só compromete o êxito da licitação do Tecon10 como também cria um precedente perigoso que poderá ser seguido em outros certames do setor portuário e até de outros modais”.
Essas são apenas algumas, das muitas passagens do Relatório Técnico, comprovando a inexistência da famigerada política pública e a impropriedade do argumento.
Na síntese do TCU, portanto: “943. (...) Em linha com a Seae e a própria SG do Cade, concluiu-se que não há justificativas concorrenciais (ou extra concorrenciais) para a vedação aos armadores incumbentes. Pode-se aproveitar os benefícios da competição em conjunto com a mitigação dos riscos de concentração com remédios menos extremos do que a mera vedação”.
É bom que se diga, aliás: a análise feita pela Nota Técnica ANTAQ nº 51/25 revela a mesma conclusão, ao equiparar o resultado concorrencial dos cenários em que se obriga o desinvestimento - caso um dos incumbentes vença o certame -, ou se veda a participação de incumbentes. Isso evidencia a desproporcionalidade deste último.
Esse arranjo de coisas comprova a existência de um amplo consenso técnico entre todos: ANTAQ (NT 51), SEAE, CADE e TCU, de que não há fundamento juridicamente defensável para fasear a licitação e restringir a participação de incumbentes. Não por outro motivo o TCU afirmou que “essa total incongruência entre meios (restrição à licitação) e fins (objetivo da política), torna ilegal a decisão tomada.”
Esse caráter ilegal, revelando a nulidade da cláusula restritiva do edital, é inclusive o que afasta a possibilidade de se argumentar que o TCU estaria se substituindo à vontade do gestor público, por mera subjetividade. O caso é de regular exercício de controle de segunda ordem, como revelam as seguintes passagens: “884. Com efeito, ao Tribunal sempre cabe deferência aos atos dos jurisdicionados quando praticados em sua esfera de atuação. No caso das decisões finalísticas das agências reguladoras, esse entendimento está consolidado na jurisprudência do TCU de que seu controle é de segunda ordem, “vocacionado para exarar determinações apenas quando for constatada a prática de atos ilegais”, conforme o Acórdão 620/2008-TCU-Plenário, da relatoria do Ministro Benjamin Zymler. 885. Assim, a discricionariedade do gestor é respeitada quando, diante de alternativas técnica e legalmente justificadas, a decisão tomada, ao tecer juízo de conveniência e oportunidade sobre cada uma delas, sopesando prós e contras, opta por uma em detrimento das demais. No caso concreto, à livre concorrência, amparada pelos princípios constitucionais da isonomia e ampla competição, não foi oposta qualquer alternativa que pudesse ser ancorada em critérios legais e técnicos objetivamente fundamentados.”
Seguir em frente com a restrição, contra o interesse público, contra a legalidade, contra a proporcionalidade e contra toda a sorte de evidências técnicas que impõem a licitação ampla e irrestrita, acessível a qualquer interessado, resultará no descumprimento do parágrafo único do art. 20, da LINDB, segundo o qual “a motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta”, e do art. 2º da Lei de Ação Popular, que caracteriza nulo o ato administrativo em função da ilegalidade do objeto, que ocorre “quando o resultado do ato importa em violação de lei, regulamento ou outro ato normativo”, e em função da inexistência dos motivos “quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido”.
Amadurecidos todos os temas, e alcançado o consenso técnico em torno deles, é boa hora, portanto, de rever a rota. Excluir a cláusula restritiva do edital, mantendo-se apenas a obrigação de desinvestimento, no caso de um incumbente se sagrar vencedor, a essa altura já seria algo esperável do ‘administrador médio’, em linha com a jurisprudência do TCU. Então, a maturidade de todo o processo, e as condições isonômicas e amplas de competição, se encarregarão, por si, de imprimir velocidade à licitação e conduzir à contratação efetiva do TECON10.
Leonardo Coelho Ribeiro é autor do Livro Regulação e concorrência nos Portos, Ed. Fórum, 2025 (com Rafael Véras). Professor da Pós de Regulação e Desestatização do ISC-TCU. Mestre em Direito Público pela UERJ. Sócio de Braz, Coelho, Véras, Lessa e Bueno Advogados.






