Importações brasileiras e COVID-19: dificuldades e medidas legais de enfrentamento

O contexto do tema – COVID-19 – é bastante conhecido, estampa a maior parte das notícias diárias em qualquer meio de comunicação, dos mais tradicionais e respeitados aos mais informais. A pandemia de efeitos globais, identificada pela primeira vez em dezembro de 2019, na cidade de Wuhan, China – epicentro do surto do vírus, se tornou uma realidade pulsante no Brasil.

Por aqui, os efeitos do coronavírus foram sentidos com maior impacto pela população em geral a partir de março de 2020, quando foram adotadas medidas mais drásticas para o enfrentamento da emergência de saúde pública, a exemplo das determinações de cunho sanitário para isolamento e quarentena, autorizadas pela Lei 13.979/2020 e regulamentadas pelos Decretos 10.282/2020 e 10.288/20.

Os intervenientes do comércio internacional brasileiro, no entanto, vivenciam os reflexos da pandemia desde janeiro, quando o surto se concentrava em países asiáticos, devido ao peso da China para as importações e exportações nacionais – segundo o Ministério da Economia, o país é o maior parceiro comercial brasileiro, ocupando a primeira posição como o principal destinatário de exportações do Brasil e, também, o que mais vende para o mercado doméstico. Daí que, quando o governo chinês decretou a extensão do feriado de Ano-Novo Lunar para contenção da propagação do vírus, como amplamente noticiado na mídia e, consequentemente, paralisação das fábricas por período superior ao ordinariamente previsto para as festividades, a medida atingiu o mercado brasileiro em cheio como um efeito dominó.

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Os atrasos de produção e embarque na China geram risco iminente de desabastecimento e desaceleração da produção brasileira, como apontou o relatório da consultoria global Oxford Economics. Tal como na importação de manufaturados para revenda, a indústria doméstica é igualmente dependente de insumos (básicos e elaborados) de origem chinesa. Cerca de 20% dos insumos que servem como matéria-prima para os produtos que são fabricados nas indústrias nacionais vêm da China, de acordo com o relatório.

O transporte internacional foi (e está sendo) igualmente afetado, como noticiou o Valor Econômico em 5 de março de 2020 [1]. Há escassez de contêineres vazios para exportação, especialmente os do tipo reefer e 20’. Com a diminuição de navios partindo da China, contêineres se acumulam no país asiático, gerando carência global do equipamento. Outros reflexos foram noticiados no transporte marítimo em menor proporção, como omissões de escala, alterações de rotas de navios e de portos de descarregamento. O modal aéreo também registra dificuldades, pois embora algumas companhias tenham noticiado aumento de capacidade da frota cargueira (caso da LATAM, que aumentou em 15% [2]), o transporte permanece prejudicado, diante da relevância do transporte misto (ou seja, passageiros e cargas) para a demanda de importações, somado à redução das operações de passageiros em face da queda na demanda e fechamento de fronteiras por conta da pandemia.

Em meio a este cenário de incertezas, a cotação do dólar se elevou a patamares recordes, superiores a R$ 5,00 nas últimas semanas, arrebatando o importador brasileiro que ainda se mantinha produtivo, inobstante as dificuldades logísticas e de fornecimento enfrentadas.

Com o desembarque definitivo da COVID-19 no país, com maior força a partir do mês de março de 2020, o mercado nacional passou a compartilhar as mesmas dificuldades e incertezas já experimentadas pelos intervenientes do comércio internacional, o que desencadeou uma atuação mais enérgica do Governo Federal para combater a grave crise de saúde e econômica que se alastra, inclusive com medidas voltadas especificamente aos importadores brasileiros, em aspectos logísticos, tributários, de defesa comercial, sanitários e de facilitação aduaneira.

Para a proteção logística às importações (e exportações), foi publicado o Decreto 10.282/2020, contendo a lista de serviços públicos e atividades essenciais, para fins de ininterrupção de prestação, ainda que em caso de determinação de isolamento ou quarentena, nos termos da Lei n. 13.979/2020. A lista contempla, dentre outros, os serviços necessários à continuidade das importações e exportações brasileiras, como embarque e desembarque de cargas, despachos aduaneiros de importação e exportação, inclusive vigilância agropecuária internacional, transporte e entrega de cargas em geral e fiscalização tributária e aduaneira.

No cenário tributário, as alíquotas de Imposto de Importação de determinados produtos, relacionados ao combate à pandemia do coronavírus, foram reduzidas a zero até 30 de setembro de 2020, de acordo com a Resolução CAMEX 17/2020. Dentre os itens alcançados pela redução, incluem-se álcool em mais de uma variação, desinfetantes, vestuários de proteção, produtos médicos, hospitalares, de laboratório, farmacêuticos. A redução foi, posteriormente, ampliada para mais produtos variantes do álcool, medicamentos, kits de teste, dentre outros inúmeros de natureza farmacêutica e médico-hospitalares, conforme Resolução CAMEX 22/2020.

O mesmo se deu com o Imposto sobre Produtos Industrializados. Produtos como álcool 70%, desinfetantes, vestuários de proteção, produtos médicos e hospitalares, tiveram suas alíquotas de IPI reduzidas a zero até 1º de outubro de 2020, por força do Decreto 10.285/2020. Com a publicação do Decreto 10.302/2020, a abrangência da redução tributária pelo mesmo período foi ampliada para incluir, ainda, artigos de laboratório e farmácia, luvas, mitenes e semelhantes e, termômetros clínicos.

A intervenção do Governo Federal foi promovida, ainda, no âmbito de medidas de defesa comercial, mediante a suspensão, por interesse público, dos direitos antidumping aplicados às importações de seringas descartáveis de uso geral, de plástico e de tubos de plástico para coleta de sangue a vácuo, originários da China, tendo por objetivo facilitar o combate à pandemia da Covid-19, nos termos da Resolução CAMEX 23/2020.

Sob aspectos sanitários, destaca-se a dispensa da Autorização de Funcionamento de Empresa (AFE) exigida pela ANVISA para importadores e fabricantes de máscaras cirúrgicas, respiradores particulados N95, PFF2 ou equivalentes, óculos de proteção, protetores faciais, vestimentas hospitalares descartáveis, gorros e propés, válvulas, circuitos e conexões respiratórias para uso em serviços de saúde, conforme previsão contida na Resolução RDC ANVISA 356/2020. O ato flexibiliza, ainda, a importação de produtos novos e não regularizados pela ANVISA.

Contudo, foi no tocante à facilitação aduaneira que se produziram as alterações mais acentuadas, com abrangência, inclusive, para importadores de produtos não relacionados ao combate da doença pandêmica.

Diante da determinação de isolamento e quarentena, com impedimento dos atendimentos presenciais em alfândegas e terminais alfandegados, a Receita Federal alterou entendimento antigo acerca da apresentação física da documentação aduaneira. A alteração foi veiculada pela Notícia Siscomex n. 18/2020, a fim de esclarecer que os documentos originais instrutivos do despacho aduaneiro de importação em meio físico (via original do conhecimento de carga, via original da fatura comercial etc.) que forem digitalizados conforme o disposto no Decreto n. 10.278/2020 terão os mesmos efeitos legais dos documentos originais, sendo dispensada a sua apresentação em meio físico para fins de despacho de importação.

Com a dificuldade de remessas postais internacionais no atual cenário, bem como episódios diversos do passado de perda da documentação original, atrasos de recebimento e afins – já que o exportador apenas a remete após quitação de eventuais obrigações pelo importador, a aceitação das vias digitais, ainda que mediante condições, tende a agilizar o procedimento de despacho aduaneiro.

Com o mesmo espírito de comemoração foi recebida a Notícia Siscomex n. 17/2020, a qual esclareceu que a via original do conhecimento de carga que for digitalizada conforme o disposto no Decreto n. 10.278/2020 terá os mesmos efeitos legais do documento original, sendo que a sua apresentação em meio digital ao recinto alfandegado considerar-se-á como suficiente para a entrega da carga, considerando-se atendida a previsão contida no art. 54, IV, da Instrução Normativa SRF n. 680/2006.

Dentre as demais medidas de facilitação aduaneira, a Receita Federal do Brasil ampliou hipóteses de entrega antecipada de mercadoria importada, para momento anterior à conclusão da conferência aduaneira, através das Instruções Normativas RFB 1.927/2020 e 1.929/2020. As normativas preveem duas hipóteses de entrega antecipada, (a) uma que independe de autorização da Autoridade Aduaneira, tampouco de canal de seleção e, (b) outra condicionada à autorização prévia.

As mercadorias para as quais se prevê a entrega antecipada independentemente de autorização ou canal de seleção estão indicadas em uma lista taxativa, constante no Anexo II da Instrução Normativa SRF 680/2006, incluindo produtos farmacêuticos e médico-hospitalares específicos ao tratamento da COVID-19. Admite-se, inclusive a utilização econômica destes produtos, pelo importador, antes da conclusão da conferência aduaneira. As Declarações de Importação que se enquadrem nesta hipótese, bem como sua armazenagem, deverão ser processadas e tratadas de forma prioritária pela Receita Federal do Brasil e pelo armazém depositário, respectivamente.

No que toca às entregas antecipadas que dependem de autorização prévia, as hipóteses são mais amplas e se subdividem entre (a) as aplicáveis apenas enquanto perdurar a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) declarada pelo Ministério da Saúde (Portaria MS 188/2020) e, desde que utilizadas no combate à doença e, (b) as aplicáveis em definitivo, não necessariamente relacionadas ao enfrentamento da pandemia.

No grupo das primeiras – temporárias, enquanto perdurar a ESPIN, incluem-se bens de capital e matérias-primas em geral, desde que, como mencionado, destinados ao combate da doença provocada pelo coronavírus. Estes deverão ser processados de forma prioritária pela Receita Federal do Brasil, bem como pelo armazém depositário até ser submetida a despacho aduaneiro e poderão ser utilizados economicamente pelo importador antes mesmo da conclusão da conferência aduaneira.

No segundo grupo – das medidas definitivas e recentemente incluídas dentre as hipóteses de entrega antecipada, mediante autorização, estão (a) a importação ou reimportação de bens da União, destinados ao emprego militar ou ao apoio logístico, que tenham sido utilizados pelas Forças Armadas brasileiras em missões de paz no exterior; (b) importação por importador certificado como Operador Econômico Autorizado (OEA), na modalidade OEA - Conformidade Nível 2, e; (c) outras hipóteses estabelecidas em ato da COANA – até o momento não estabelecidas. Estas vêm a complementar outras seis hipóteses de entrega antecipada já previstas na Instrução Normativa SRF 680/2020, dentre as quais, cabe citar – pela pertinência ao tema, a situação de calamidade pública ou para garantir o abastecimento da população, atender a interesse da ordem ou saúde públicas, defesa do meio ambiente ou outra urgência pública notória.

Sabe-se que o Congresso Nacional reconheceu o estado de calamidade pública por meio do Decreto Legislativo 6/2020. Neste cenário, cabe pleitear a autorização de entrega antecipada, antes da conclusão da conferência aduaneira, dos bens necessários à garantia de abastecimento da população, atender a interesse da ordem ou saúde públicas, defesa do meio ambiente ou outra urgência pública notória, no que se insere uma infinidade de produtos, não necessariamente relacionados ao tratamento da COVID-19.

A respeito do reconhecimento do estado de calamidade pública, há um último reflexo aduaneiro-tributário de saliente importância, que diz respeito à possibilidade de reimportação de bens nacionais ou nacionalizados exportados que retornarem ao país em virtude da calamidade pública, os quais não serão considerados estrangeiros para fins de tributação sobre a importação, desonerados, portanto, da incidência de Imposto de Importação (art. 1º, § 1º, d, Decreto-Lei n. 37/1966), de IPI (art. 38, I, d do Decreto n. 7.212/2010) e de PIS/PASEP-Importação e COFINS-Importação (art. 1º, § 2º, d, Lei n. 10.865/2004), cujo despacho aduaneiro poderá ser processado com base em declaração simplificada (DSI) (art. 3º, VI, d, Instrução Normativa SRF n. 611/2006).

Diariamente e à medida em que novas necessidades exsurgem, mais medidas são editadas. De fato, o cenário exige medidas drásticas. As dificuldades dos importadores, responsáveis por manter parte do comércio interno ativo e o fornecimento ininterrupto de insumos à indústria nacional, se vislumbram sob as mais diversas frentes. Os prejuízos, ainda incalculáveis, mas certamente exorbitantes. Embora adotadas inúmeras medidas de desoneração, simplificação e facilitação aduaneira voltadas ao enfrentamento da crise de saúde e tratamentos da COVID-19, o próximo passo que se espera é a propositura de novas medidas, agora, voltadas ao enfrentamento da crise econômica que já atinge a importação brasileira, independentemente de setor.

[1] Disponível em https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/03/05/coronavirus-deve-provocar-falta-de-conteineres-e-afetar-exportacao.ghtml

[2] Disponível em https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/04/02/grupo-latam-airlines-reduz-operaes-em-95-pontos-percentuais-em-abril.ghtml

Gabrielle Brüggemann SchadrackGabrielle Brüggemann Schadrack é advogada aduaneira no escritório Menezes Niebuhr Advogados Associados. Especialista em Direito Aduaneiro e Comércio Exterior pela Universidade do Vale de Itajaí (UNIVALI). Pós-graduada em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBET).



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