Precisamos falar sobre o Ogmo

Quando se diz que o modelo de exploração de atividades portuárias adotado no Brasil é o "landlord port", ou seja, aquele em que o poder público é responsável pela administração da infraestrutura e áreas comuns, cabendo ao setor privado os investimentos na superestrutura e a operação em si, se está fazendo um diagnóstico parcial.

A rigor, devemos considerar que no Brasil temos um modelo híbrido para o setor, pelo qual nos Portos Organizados (públicos) adota-se o regime "landlord port", enquanto nos terminais de uso eminentemente privado (os chamados TUPs) temos algo parecido com aquilo que na doutrina especializada se convencionou chamar de "fully privatized port", ou terminal totalmente privado.

O reexame desses conceitos é oportuno no momento em que o Tribunal de Contas da União (TCU) acaba de divulgar relatório de auditoria que aponta uma grande taxa de ociosidade nos Portos Organizados, ao mesmo tempo em que o governo avança nos processos de licitação de algumas áreas e pretende flexibilizar regras relativas à exploração dessas instalações.

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O regime "fully privatized port" puro é pouco utilizado no mundo, tendo como principais representantes a Inglaterra e a Nova Zelândia. A sua menor adoção se deve à relevância dos portos em termos de soberania, o que faz com que a maioria das nações prefira regimes de maior controle, considerando que os terminais portuários em geral são a principal porta de entrada e saída de mercadorias, além de receberem um grande fluxo de pessoas, ingressando no país ou em trânsito para o exterior.

Eis porque o regime mais comum, adotado em portos como Hamburgo, Roterdã, Barcelona, Valência, Antuérpia, Le Havre e Marselha, é o "landlord port".

Além do "landlord port" e do "fully privatized port", tem-se ainda os regimes "tool port", em que o porto é público, mas estabelece contratos com operadores portuários (prestadores de serviços que atuam dentro da área pública, sem grande autonomia), e "service port", em que tudo está a cargo do setor púbico, desde a administração até a operação. No Brasil, tivemos um modelo eminentemente público até 1993, quando foi promulgada a Lei de Modernização dos Portos (Lei nº 8.630), que permitiu o arrendamento, mediante licitação, de áreas dentro dos Portos Organizados destinadas a terminais operados pela iniciativa privada.

Antes disso, em 1990 (Lei nº 8.029), um primeiro passo em direção à desestatização do setor, visando à sua maior eficiência, já havia sido dado com a extinção da Portobrás, estatal criada em 1975, e sua consequente substituição pelas companhias docas, que passaram a exercer, na maior parte do país, a função de Autoridade Portuária, dentro do modelo "landlord port", sendo que em alguns estados esse papel foi delegado aos entes federados. Hoje, dos 34 portos organizados distribuídos pelos 7,5 mil km de litoral brasileiro, 16 têm como autoridade portuária uma companhia docas vinculada à União e os demais foram delegados a estados ou municípios.

A partir da década de 1990, portanto, uma grande leva de investimentos privados, feitos pelos arrendatários de áreas públicas localizadas dentro dos Portos Organizados, garantiu ao setor um significativo avanço em termos de eficiência e competitividade. Foi um salto considerável que evitou um colapso no comércio exterior, tendo em vista o aumento vertiginoso das trocas globais nos anos seguintes. Antes disso, terminais privativos, localizados fora das áreas dos Portos Organizados (públicos), já eram autorizados a operar, desde que para movimentar carga própria de forma preponderante.

Em 2013, um novo marco regulatório (Lei nº 12.815 e Decreto nº 8.033) garantiu um novo salto ao permitir que os terminais de uso privado (TUPs) movimentassem cargas de terceiros, o que foi decisivo para o setor, pois propiciou outra onda de investimentos em novas instalações, bem como a ampliação e a modernização das existentes. Hoje, os TUPs somam dezenas de instalações, que respondem por quase 70% da carga movimentada nos portos brasileiros.

Não restam dúvidas de que o fim das restrições à carga de terceiros nos terminais eminentemente privados foi benéfica para o país, pois tornou o setor mais atrativo para os investidores - e o próprio desempenho dos TUPs nos últimos anos, em termos de eficiência e produtividade, comprova o acerto. Contudo, o que parece claro é que o modelo híbrido adotado no Brasil implica uma assimetria concorrencial entre os regimes dos Portos Organizados ("landlord port") e dos portos de uso privado ("fully privatized port"), com vantagem para esses em relação àqueles.

Ainda que o desempenho dos terminais arrendados possa ser tão bom quanto o dos TUPs, a taxa de ociosidade de algumas áreas é reveladora de obstáculos maiores. A mencionada auditoria do TCU identificou que, dentro dos Portos Organizados, essa taxa é, em média, de 56%, chegando a 90% em alguns extremos (Docas do Ceará), e as razões apontadas para a distorção são as regras mais rígidas a que os arrendatários da infraestrutura pública estão sujeitos, em especial a exigência de contratação de pessoal por intermédio do Órgão Gestor de Mão de Obra (Ogmo).

Na época da edição do novo marco regulatório de 2013 houve intensa discussão acerca da possibilidade de surgimento dessa assimetria. Muitos chegaram a propor que os Terminais de Uso Privado também permanecessem adstritos à intermediação do Ogmo, o que seria um contrassenso, pois o que se pretendia com a nova modelagem dada aos TUPs era o aumento da eficiência, não a reprodução de um "handcap" (desvantagem).
Portanto, a queixa de arrendatários quanto à assimetria procedia (e a taxa de ociosidade constatada hoje é a prova disso), o que estava errado era a proposta de solução. Se o debate chegou a ser acalorado, faltou transparência e coragem para tocar no ponto crucial: o fim do Ogmo, esse ente que pode ser considerado o último traço de anacronismo do setor portuário brasileiro, na prática, um monopólio de caráter para-sindical que define como uma empresa privada deve contratar mão de obra, quem deve contratar e de que forma devem ser capacitados, treinados e organizados (incluindo cadastro e escala de trabalho) os profissionais que lhe prestam serviços.

Só a burocracia que envolve essa intermediação - e os custos inerentes a ela - já seria razão suficiente para justificar o seu fim, sem contar a questão de fundo, ainda mais importante: por que uma empresa privada deve ser obrigada a recorrer a terceiros para fazer algo essencial à sua atividade, qual seja, a gestão de pessoal especializado? Portos são elementos fundamentais para a cadeia produtiva de um país e representam um elo integrador da logística de transportes (navegação com ferrovias e rodovias). A necessidade de sua expansão física e sua modernização é permanente, tendo em vista a competitividade da economia em face do irrefreável aumento de demanda ao longo do tempo.

Não é razoável que infraestruturas portuárias públicas fiquem ociosas, ainda que tenhamos, cada vez mais, a possibilidade de expansão de instalações privadas. Vale dizer que os Portos Organizados constituem um formidável ativo público, e os TUPs não vieram substituí-los, mas, sim, acrescer capacidade ao setor, a fim de prevenir gargalos geradores de ineficiência. Para superar o problema da ociosidade, o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, está propondo modelos de arrendamento menos rígidos e contratos temporários (cinco anos de exploração, ao invés dos 35 dos arrendamentos regulares).

A questão é saber se essa solução paliativa não gerará novas assimetrias, além de não resolver o problema de base. O modelo híbrido brasileiro (regimes "landlord port" e "fully privatized port" conjungados) é viável. Portos Organizados e TUPs não são excludentes, mas complementares. Porém, a redução de assimetrias em prol da concorrência deve ser uma meta.

Considerando a evolução do arcabouço legal que disciplina o setor portuário desde a década de 1990, chegou a hora de se falar sobre o fim do Ogmo, mesmo que isso represente um grande desafio político.

Afinal, todos os demais importantes obstáculos à modernização do setor já foram removidos. O que não se pode é assistir inerte à progressiva ociosidade de áreas portuárias públicas em função da manutenção de um anacronismo.
Nilson MelloNilson Mello é advogado e jornalista



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