Reforma portuária para quem?

A revogação integral da Lei dos Portos — Lei nº 8.630/93 —, a transformação da administração do porto em autoridade portuária, a quase extinção do CAP e a possibilidade de investir em terminal privativo sem necessidade de carga própria, dentre outras mudanças feitas pela MP 595/2012, causaram surpresa a todos. Não tanto pelo conteúdo, mas pela forma como foi feita: sem consultar todos os interessados do setor.

O objetivo do governo é aumentar os investimentos no setor, com a difusão/criação de mais terminais privativos, e estimular a competitividade, mas não se esperava que a reforma viesse através de MP. Tenho sustentado, todavia, que a atração de investimentos para terminais portuários no setor, com aumento da oferta de serviços, é condição necessária, mas não suficiente, para a redução de custos da logística.

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Como exemplo, pode-se citar a tarifa portuária para a movimentação de contêiner/capatazia, no porto de Salvador que, entre março de 2000 e março de 2012, segundo dados da Usuport-Bahia, aumentou cerca de 600%, enquanto o IGP-M acumulado foi de 163%.

Em abril de 2013, segundo o Gazeta do Povo, sem concorrência, o TCP (Terminal de Contêineres de Paranaguá), único terminal de contêiner e o principal do porto paranaense, reajustou em 509% a taxa paga por importadores nas operações de trânsito aduaneiro.

Nesse tipo de operação, o importador deve apresentar uma declaração para que possa transferir o contêiner carregado para outro terminal onde será liberado pela Receita Federal. Segundo despachantes aduaneiros que trabalham em Paranaguá, o valor da taxa era de R$ 93,76 e passou, no último dia 24, para R$ 478.

“O valor mudou de uma hora para outra, sem aviso e sem negociação. De repente afixaram um aviso dizendo que o valor havia subido”, afirma Luciano Ribeiro Vernize, despachante aduaneiro. A empresa de Vernize movimenta cerca de 200 contêineres por mês. O valor passou de R$ 18.752 para R$ 95.600.

Em países com alto grau de institucionalização na logística, não se revoga uma lei que foi debatida durante dois anos no Parlamento por meio de uma medida provisória.

Tenho certeza que o foco da reforma é aumentar os terminais privativos que movimentam contêineres, contudo, sem aumento de escala, registro e acompanhamento dos preços e fretes, não haverá redução de custos. Como se trata de um monopólio natural, a tendência dos prestadores de serviços, com venda casada, será aumentar os custos predatórios, pois se trata de indústria de rede, ambiente propício às condutas oportunistas.

Parece-nos que o efeito será o contrário, pois sem registro e acompanhamento crítico eficaz (pela Antaq e CAP) dos preços cobrados num setor altamente concentrado. No comércio marítimo, 70% do mercado mundial de transporte de contêineres são feitos por poucas empresas (oligopólio). Assim, com o aumento da privatização, a tendência será aumentar a venda casada (frete e tarifa portuária cobradas por um mesmo grupo) e os custos do setor.

Nesse quadro, sabemos que as despesas com frete e armazenagem correspondem a cerca de 2/3 dos custos logísticos e não é incomum oportunismo em cobranças ilegais. Por isso, essas mudanças, embora relevantes, não necessariamente reduzirão custos para o usuário.

É preciso, portanto, pressionar o governo para implementar a nova legislação, mas com regulação econômica, ou seja, registro e acompanhamento de preços e fretes, tal como determinado pelo TCU em 2009. Enquanto o governo não faz o seu dever de casa, é preciso que o usuário do serviço saiba o que está pagando e a legalidade de tais custos.

Ansiosamente aguardada há vários meses e elaborada sem transparência e maior participação dos usuários dos portos, governos estaduais e municipais, academia ou audiência pública pela Antaq, a reforma portuária proposta pela MP 595/2012 e Decretos nºs 7.680/2012 (cria a Comissão Nacional para assuntos de Praticagem) e 7.681 (cria a Comissão Nacional das Autoridades nos Portos - Conaportos) merece muita atenção, especialmente porque inexiste qualquer incentivo da Antaq para reduzir a assimetria entre o associativismo de usuários (quase inexistentes) e prestadores de serviços (extremamente articulados).

A MP supra recebeu quase 650 emendas de parlamentares e a forma rápida como tramitou no Congresso merece críticas.  Após a sanção (com ou sem vetos) pela presidenta Dilma do projeto de lei de conversão nº 09/2013, é preciso acompanhar a regulamentação por decreto e resoluções da Antaq, bem como a sua fiscalização para que a Reforma saia do papel (tenha efetividade).

Acredita-se que sejam priorizados a meritocracia, a garantia dos contratos, a defesa da concorrência e a proteção dos usuários/consumidores.

Ademais, não basta criar uma nova lei, é preciso que a SEP e a Antaq façam com que a mesma saia do papel. Na estrutura portuária revogada, o órgão mais relevante é o Conselho de Autoridade Portuária - CAP.

Como visto, o CAP, que era deliberativo, passa a ser consultivo, mas no PLC nº 09/2013 não há prazo para criação do regulamento, nem competências, o que gerará insegurança jurídica. Além disso, é possível sobreposição das competências do CAP com as comissões locais, criadas pelo Decreto nº 7.681.

É no CAP e na Antaq, por meio da organização dos usuários dos portos, ainda débil no Brasil (quase inexistentes), exceto a exercida pela Usuport na Bahia, que devem ocorrer os questionamentos dos usuários dos preços de praticagem, demurrage abusiva de contêineres, frete e outras tarifas, como THC2 e armazenagem.

Num setor em que a regulação não é eficaz, vez que não há registro de frete e o acompanhamento dos preços é ineficiente, o mercado dita as regras e pode capturar o CAP, tornando-o refém do interesse privado. Uma das formas de atingir a competitividade é reduzir os preços extorsivos de alguns prestadores de serviços,  especialmente quando há oligopólios/cartéis, tal como ocorre em parte do transporte marítimo internacional.

Como exemplo, podemos citar a cobrança de uma sobre-estadia de contêiner seco de 20 TEUs no valor de U$ 17.500, ou seja, R$ 35.000. Nesse caso, é evidente que há enriquecimento ilícito do transportador, tendo em vista que o valor desse contêiner no mercado é de R$ 4.500.

Há casos absurdos: dentre vários, pode-se citar o armador que cobra do exportador, que vendeu FOB, a sobre-estadia de R$ 110 mil de um contêiner frigorificado de 40 TEUS, que custa R$ 16 mil no mercado. Tal cobrança, abusiva, viola os princípios básicos da boa fé objetiva e da razoabilidade. Algo precisa ser feito pelos órgãos reguladores, pois o Judiciário, regra geral, conforme pesquisa realizada por Beckman Saraiva (2012) não está capacitado para enfrentar tais problemas.

Na atividade portuária, considerada indústria de rede, não é diferente, porque a competitividade tem relação direta com a qualidade do ambiente institucional regulador como, por exemplo, a concorrência entre os agentes econômicos e a modicidade das tarifas.

Assim, são relevantes as competências do CAP do art. 30 da Lei dos Portos, especialmente as dos incisos adiante, bem como: § 2°, quais sejam: “Art. 30. Será instituído, em cada porto organizado ou no âmbito de cada concessão, um Conselho de Autoridade Portuária; § 1° Compete ao CAP IV - promover a racionalização e a otimização do uso das instalações portuárias; V - fomentar a ação industrial e comercial do porto; VIII - homologar os valores das tarifas portuárias; XIII - estimular a competitividade; XVI - pronunciar-se sobre outros assuntos de interesse do porto; § 2° Compete, ainda, ao CAP estabelecer normas visando ao aumento da produtividade e a redução dos custos das operações portuárias (...)”

É fundamental, ainda, que a presidência do CAP ocorra por rodízio, com um mandato de cada classe, e que todos os conselheiros sejam portadores de certificado de capacitação, com carga de no mínimo 40 h/a em disciplinas relacionadas à atividade portuária, outorgado pela SEP ou Antaq, que comprove a sua qualificação para exercer essa relevante função pública.

Na assessoria jurídica de usuários, temos identificado vários problemas, dentre os quais tarifas ilegais, exemplo de externalidade negativa a ser evitada com regulação eficaz da Antaq e do CAP. Assim, dentre várias, podemos citar a cobrança da armazenagem pátio de 0,41% ad valorem pelo período de até 15 dias ou 0,32% - até 10 dias - por alguns terminais.

Essa tarifa, a pedido do MPF em Ação Civil Pública, foi declarada ilegal pelo TRF 4 da seguinte forma: “3. É abusiva a cobrança de ‘tarifa de armazenagem de carga de 15 dias’ por parte da empresa que explora serviço portuário em regime de concessão ou permissão, pois não se pode cobrar por um serviço que não foi prestado. (...); 5. Os valores cobrados indevidamente devem ser restituídos ou compensados”. Em que pese o STJ ter mantido o entendimento do julgado acima. Segundo o MPF no caso acima, vários terminais cobram tarifa semelhante.

Por fim, espera-se que, para aperfeiçoarem a MP, os usuários saibam a composição e a base legal dos custos que pagam, bem como se organizem e cobrem dos parlamentares, da SEP e da Antaq a valorização do CAP, a fim de que este atue com eficácia na busca da redução de custos.

Afinal, se mantido o compromisso dos governos com a eficiência na gestão portuária, não adianta mudar a legislação, pois a experiência recente mostra que o modelo tem privilegiado os prestadores de serviços, sempre bem organizados, em detrimento dos usuários, que precisam se organizar, identificar a legalidade das cobranças a eles impostas, sem qualquer registro e acompanhamento eficaz por parte da Antaq e SEP, em que pese a determinação do TCU. Enfim, é preciso não repetir a história: reforma portuária para quem? Para os usuários? Com certeza, não. n

*Sócio do J Haroldo & Agripino Consultoria Jurídica, pós-doutor em Regulação de Transportes - Harvard University (www.jharoldoagripino.com.br)



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