'Bandeira de conveniência' e ações navais criminosas

Prática de usar os 'registros abertos', que não vinculam o navio ao país de origem, é adotada por 60% dos expedidores marítimos

Quatro iatistas americanos mortos; uma família dinamarquesa de cinco e dois membros da tripulação sequestrados: esses eventos no espaço de uma semana no início deste ano poderiam, enfim, provocar um consenso de que alguma coisa precisava ser feita sobre a pirataria no Oceano Índico e no Golfo de Áden. E alguma devia ser feita: além dos iatistas, quase 700 marinheiros, na maioria filipinos, bengalis e russos, estão sendo mantidos reféns. Obrigados com frequência a operar seus navios capturados sob a mira de armas, com pouca comida ou água, alguns deles são prisioneiros há meses.

Mas a ilegalidade marítima não se resume aos piratas. Graças a um sistema de registro de navios conhecido como "bandeiras de conveniência", é muito fácil donos de navios inescrupulosos livrarem-se de comportamentos criminosos. Eles se livram de acusações por danos ambientais como vazamentos de petróleo, e também de impor condições de trabalho precárias quando obrigam tripulações a trabalhar como escravos sem pagamento ou descanso adequado. Mas, diferentemente da pirataria, que parece intratável, as condições estarrecedoras de alguns navios mercantes podem ser evitadas.

Proteção. Antigamente, os navios costumavam representar seu país. Eles eram pedaços flutuantes de seu país natal em mares ingovernáveis, com todas as vantagens e desvantagens da supervisão governamental: se as coisas dessem errado, os marujos eram protegidos por seus governos. Se agissem mal, podiam ser punidos.

Mas, no início do século 20, isso começou a mudar. O Panamá, procurando atrair navios americanos que evitavam as leis da Proibição, permitiu que não panamenhos usassem a sua bandeira por um preço. A Libéria e outros países seguiram o exemplo. Hoje, esses "escritórios de registro abertos" são usados por cerca de 60% dos expedidores marítimos, ante 4% nos anos 50.

No sistema das bandeiras de conveniência, os registros foram divorciados da fiscalização governamental. A Coreia do Norte tem um próspero registro, assim como a Mongólia, que não tem saída para o mar.

O registro da Libéria, o segundo maior do mundo, prosperou mesmo durante uma dezena de anos de guerra civil. Alguns registros permitem que os donos de navios mudem as bandeiras que registraram num prazo de 48 horas; alguns exigem pouco mais que uma assinatura ou o preenchimento de um formulário online pelo proprietário. Muitos nem sequer pedem que os donos revelem suas identidades.

Esse anonimato fácil é perigoso Em 1999, um petroleiro de nome Erika encalhou na costa da Bretanha e poluiu 400 quilômetros do litoral da França. O governo francês não conseguiu penetrar numa rede de empresas de fachada em sete países que se erguia entre o navio e seu dono. O dono acabou se apresentando voluntariamente e, quando questionado pela BBC sobre os complexos acordos de propriedade, disse: "Essa é a prática padrão no transporte marítimo". Não deveria ser.

Muitos registros estatais não têm a capacidade ou a vontade de monitorar a segurança e as condições de trabalhos em navios, ou de investigar acidentes.

Ao contrário, os certificados de segurança de navios são concedidos por sociedades de classificação privadas. Os proprietários podem escolher a sociedade que quiserem - e os piores, previsivelmente, escolhem as menos exigentes. Esse autopoliciamento foi comparado a registrar um carro em Bali para dirigi-lo na Austrália com freios defeituosos.

Abusos. O custo humano desse sistema é inaceitavelmente alto. Longas horas e cronogramas portuários extenuantes raramente permitem que os marinheiros tenham tempo suficiente para descansar; alguns regulamentos internacionais permitem jornadas semanais de 98 horas.

Os salários, com frequência, não são pagos: a International Transport Workers Federation, que representa os marinheiros, recuperou US$ 30 milhões em salários não pagos no ano passado. Quando o Most Sky, um navio turco registrado no Panamá, atracou num porto britânico em novembro, sua tripulação não recebia pagamento havia meses.

Eles tiveram de fazer uma "vaquinha" para comprar pão e não havia luz nem aquecimento em suas cabines.

Há muitos navios administrados por proprietários decentes. Mas a delinquência é fácil demais com os registros abertos, quando os donos podem sair impunes e sem nenhuma a responsabilidade. O mundo da marinha mercante é inegavelmente complexo. Quase a metade de todas as tripulações é formada atualmente por quatro ou mais nacionalidades. Em um navio de contêineres no qual naveguei por cinco semanas no último verão, me sentei no refeitório dos oficiais ao lado de um engenheiro birmanês, na frente de um romeno e um moldavo. Os homens na mesa atrás da nossa eram chineses, filipinos e escoceses. O refeitório da tripulação na porta ao lado só abrigava filipinos. Tínhamos um retrato da rainha Elizabeth II na parede.

Mas a globalização não é uma razão para países não assumirem a responsabilidade pelos navios que registram. No papel, a Convenção das Nações Unidas sobre a Lei do Mar especifica que deve haver um "vínculo genuíno" entre o navio e sua bandeira. Mas o debate prossegue sobre qual deve ser esse vínculo. No mínimo, ele deveria envolver a possibilidade de o país fazer inspeções e monitoramentos efetivos de seus navios, em vez de tolerar os formulários de pedido online e a política de não fazer perguntas. Mas, mesmo que a ONU definisse um vínculo, não está claro se seus membros estariam dispostos ou seriam capazes de aplicá-lo quando bandeiras de conveniência são tão lucrativas tanto para os países quanto para os donos de navios, que com isso podem economizar milhões de dólares anuais em salários e impostos.

Uma solução mais imediata, embora parcial, seria as autoridades portuárias, que têm o poder de reter navios inseguros ou infratores, dar uma atenção extra a navios registrados sob países notoriamente complacentes. Para evitar esse escrutínio extra e a possibilidade de taxas de detenção, os navios poderiam pressionar os registros a elevar seus padrões.

Por fim, o escrutínio público não faria mal. Nós boicotamos alimentos produzidos por companhias que maltratam seus trabalhadores, mas sabemos pouco sobre as condições por vezes atrozes sobre os navios que carregam os alimentos. Uma campanha chamada Salvem Nossos Marinheiros, organizada por sindicatos e expedidores para aumentar a consciência sobre pirataria, também poderá lançar luz sobre as mazelas do próprio setor.

Mas os membros da tripulação de meu navio, que vivem em padrões superiores em comparação com muitos, não estavam muito esperançosos.

"Ninguém liga para a marinha mercante", disse o capitão. "Somos a escória da terra, Sempre fomos, sempre seremos."


Fonte:O Estado de S.Paulo/Rose George, do The International Herald Tribun/ TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

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