A Indústria Naval é indiscutivelmente um dos setores mais estratégicos para desenvolvimento econômico e até mesmo de autonomia e sustentabilidade nacional. Embarcações e outras estruturas navais são utilizadas (a) para transporte interno e externo de grande volume de pessoas e cargas, com muito mais capacidade de escoamento (e custo unitário) do que outros modais; e (b) na realização de atividades econômicas fora da plataforma continental, como por exemplo a extração de petróleo, geração de energia e até mesmo a viabilização da internet por cabos subaquáticos.
Uma Indústria Naval nacional forte é imprescindível para o equilíbrio e estabilidade econômica de qualquer país, evitando uma indevida dependência estrangeira em atividade que afeta diretamente a produção, circulação e principalmente o custo de bens em solo nacional e a competitividade dos bens brasileiros no cenário internacional. A eficiência (custo, velocidade e capacidade de operação) e a confiabilidade do bens navais são vetores de definição de custo produtivo e viabilidade do negócio.
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Além disso, o setor é de elevada empregabilidade e consumo de insumos, o que gera o aquecimento da economia e o incremento da arrecadação tributária. Em seu auge, com o aquecimento dos investimentos no pré-sal brasileiro, o setor gerava diretamente 80 mil empregos diretos e 400 mil indiretos, a maioria deles com remuneração base superior à média no setor agrícola, de serviços e em outros ramos do próprio setor industrial.
A Primeira Equiparação – o Drawback-Embarcação e a Construção de Embarcações
Em 1992, foi editada a Lei nº 8.402/92 para reestabelecer em seu art. 1º diversas regras especiais aduaneiras (algumas cuja inexistência ou inobservância representava uma ilegalidade por parte da União Federal), como (a) o Regime de Drawback previsto nos arts. 78 do Decreto-Lei nº 37/66; (b) a manutenção e utilização do crédito de IPI relativo aos insumos empregados na industrialização de produtos exportados e de bens adquiridos no mercado interno e importados; (c) diversas isenções do II e IPI previstas na Lei nº 8.032/90 e decorrentes de acordos internacionais firmados pelo Brasil.
Aliado a tal movimento, a União Federal reconheceu a inviabilidade de concorrência da Indústria Naval brasileira, com os elevados custos produtivos nacionais (com destaque para custo energético, logístico, trabalhista e, principalmente, previdenciário), contra os estaleiros estrangeiros no fornecimento interno, caso ela contasse apenas com o Imposto de Importação como medida de ajuste mercadológico.
Para viabilizar a sobrevivência da Indústria Naval brasileira, a União Federal, em linha com a sua autorização constitucional contida nos arts. 22, inciso VIII e 237 da CF/88, segundo os quais respectivamente “compete privativamente à União legislar sobre comércio exterior” e “a fiscalização e o controle sobre o comércio exterior, essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais, serão exercidos pelo Ministério da Fazenda”, atuou controladora da balança comercial brasileira e como indutora do desenvolvimento nacional como já fizera em outras oportunidades (v.g. Zona Franca de Manaus) e interviu na concorrência através da ficção jurídica de exportação através do art. 1º, §2º da Lei nº 8402/92.
A equiparação à exportação e a extensão dessas normas permitiu a criação de uma modalidade especial de Drawback denominada “Drawback-Embarcação”, que permite a suspensão dos tributos incidentes na aquisição de insumos empregados na construção de embarcações a serem posteriormente vendidas.
A Segunda Equiparação – Ampliação para as demais atividades da Indústria naval
Embora extremamente pertinente, a primeira equiparação legal concedida à Indústria Naval padecia de dois grandes problemas que impedia o total atingimento dos objetivos da União Federal: (a) os efeitos da equiparação legal à exportação se limitavam aos benefícios de II e IPI previstos na Lei nº 8.402/92 e consequentemente não impediam a cobrança de ICMS (embora os Estados tivessem editado o Convênio ICMS nº 33/77 que desonerava parcialmente a atividade); e (b) sua aplicabilidade, pelo escopo das normas, estava limitada às atividades de construção das embarcações, deixando de fora diversas outras atividades tão relevantes quanto (v.g. conservação, modernização, reparo, conserto e reconstrução).
Essa limitação da eficácia econômica da norma foi agravada pelo fato de que a concorrência sob as regras tributárias comuns tornou-se totalmente inviável a partir da possibilidade de admissão temporária dos bens com pagamento proporcional dos tributos incidentes na importação criada a partir da edição do art. 79 da Lei nº 9.430/96 (que afastava a tributação pelo ICMS) e até mesmo suspensão completa (posteriormente convertida em isenção/alíquota zero) através do Repetro.
Assim, num contexto de um grande pacote de incentivos econômicos (v.g. marítimos, aduaneiros, cíveis, comerciais etc.) visando à garantia da viabilidade do setor, a União estabeleceu no 11, §9 da Lei nº 9.432/97 uma nova equiparação à exportação, dessa vez abrangendo “a construção, a conservação, a modernização e o reparo de embarcações pré-registradas ou registradas no REB” e gerando “todos os efeitos legais e fiscais” próprios dessas operações.
Como consequência, passaram a ser aplicadas as normas imunizantes da Constituição Federal (arts. 149, §2º, inciso I, 153, §3º, inciso III e 155, §2º, inciso X, “a”) e da legislação federal (v.g. Leis nº 10.637/02 e 10.833/03) que afastam a incidência de tributos (v.g. IPI, PIS/COFINS/CPRB, ICMS etc.) sem prejuízo da manutenção do crédito relativo às operações antecedentes no caso de tributos não-cumulativos.
Com ambas as equiparações, a União Federal garantiu a equalização dos custos da aquisição/produção nacional de embarcações àqueles aos quais tais atividades estão sujeitas caso fossem prestadas por empresas estrangeiras (naturalmente desoneradas de tributação por serem exportações), prevenindo a saída de divisas e atividades nacionais por uma concorrência inviável e injusta com empresas estrangeiras. Tais equiparações são, até hoje, a matriz viabilizadora de diversas atividades nacionais, sem as quais simplesmente não haveria mais produção de embarcações brasileiras.
A Reforma Tributária e a Natureza Jurídica das Equiparações à Exportação
Como amplamente divulgado, a Emenda Constitucional nº 132/2023 implementou uma ampla reforma no sistema constitucional tributário brasileiro, com a substituição total ou parcial de diversos tributos incidentes na circulação de bens, prestação de serviços e operações com intangíveis (v.g. IPI, ICMS, ISS, PIS/COFINS etc.) por novos criados com hipóteses de incidência e regras constitucionais relacionadas à regra matriz de tributação completamente novas e muitas vezes distintas das anteriores (v.g. IS, CBS e IBS).
Dentre as diversas regras novas, merecem destaque para os fins deste artigo: (a) a manutenção da imunidade das operações de exportação (continuidade do art. 149 §2º, inciso I e introdução dos arts. 155, §6º, inciso I, 156-A, §1º inciso III na CF/88); (b) a determinação de que o IBS e a CBS deveriam observar as mesmas regras quanto a hipóteses de não incidência, imunidades e regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação (art. 149-B, incisos I a III da CF/88); (c) a previsão de que não seriam concedidos incentivos e benefícios financeiros ou fiscais ou regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação salvo os previstos explicitamente na Constituição Federal, dentre os quais não estão as atividades promovidas pela Indústria Naval (arts. 156-A, §1º, inciso X e 195, §16 da CF/88); e (d) a previsão de que Lei Complementar preveria as hipóteses de desoneração dos tributos aplicáveis a regimes aduaneiros especiais (art. 156-A, §5º, inciso VI e 195, §16 da CF/88).
Essas novas regras impõem a perquirição acerca da natureza jurídica das equiparações legais à exportação de maneira a definir: (a) se a equiparação à exportação deve ser considerada como um incentivo ou benefício financeiro e fiscal ou um regime diferenciado de tributação para aplicação da vedação geral à concessão no âmbito da IBS e CBS; e (b) caso positivo, se a sua concessão não poderia ocorrer através da permissão à concessão de desoneração no âmbito de regimes aduaneiros especiais.
Talvez de maneira surpreendente ao leitor, o Poder Judiciário já teve a oportunidade de se debruçar sobre o primeiro tema e estabeleceu que a equiparação à exportação não deve ser considerada como uma matéria de âmbito tributário e muito menos como um benefício fiscal quando alguns entes federativos argumentaram que as equiparações à exportação implementadas pela União Federal equivaleriam à concessão de uma “isenção heterônoma”, o que é vedado pelo art. 151, inciso III da CF/88.
O Poder Judiciário majoritariamente não aceitou tal linha argumentativa, ponderando que a equiparação não representa a concessão de uma isenção tributária ou uma violação ao pacto federativo, mas sim um ajuste econômico efetivado pela União na qualidade de representante da federação brasileira e controlador do comércio exterior e que teria consequências muito além apenas da esfera tributária1.
A posição do Poder Judiciário é absolutamente irretocável, especialmente diante da competência privativa especial outorgada à União Federal para regulamentar o comércio exterior e adotar as medidas necessárias para proteção da economia e do setor produtivo brasileiro, que em momento algum foi modificada (e nem deveria ser) no contexto da Reforma Tributária. Vale destacar que os efeitos tributários, com aplicação das normas de imunidade, são apenas uma de diversas consequências jurídicas desta equiparação e muitas vezes sequer são os mais importantes (v.g. obtenção de financiamentos especiais).
Portanto, a interpretação que nos parece juridicamente correta é no sentido de que as equiparações legais à exportação atualmente vigentes na legislação deveriam permanecer produzindo seus regulares efeitos a despeito da entrada em vigor dos novos tributos e das novas regras vedando a concessão de tratamentos tributários benéficos e especiais, atraindo a aplicação das regras de imunidade outorgadas às exportações.
Noutro giro, é importante ponderar que não há atualmente na legislação interna brasileira uma definição legal para o conceito jurídico indeterminado de “regimes aduaneiros especiais”. A despeito disso, há manifestações de doutrinadores brasileiros se arriscando a conceituá-los, mediante a interpretação do sentido jurídico de cada um dos seus vocábulos como “conjunto de regras jurídicas passíveis de aplicação em substituição ao tratamento jurídico padrão previsto na legislação para a operação relacionada ao comércio internacional de mercadorias, serviços e intangíveis/demais direitos”.
A posição acima ressoa com a do art. 100 do Código Aduaneiro do Mercosul2 de que “regimes aduaneiros especiais são regulações específicas dentro de um regime aduaneiro que permitem o ingresso, a circulação no território aduaneiro ou a saída dele de mercadorias, meios de transporte e unidades de carga, sem pagamento ou com pagamento parcial dos tributos aduaneiros e com sujeição a um despacho aduaneiro simplificado, em razão da qualidade do declarante, da natureza das mercadorias, da forma de envio ou do destino”, embora mais consentânea ao racional de que o direito aduaneiro não se limita à arrecadação.
Nesse contexto, é bastante controverso o enquadramento do tratamento tributário do REB e do Pré-REB como um “regime aduaneiro especial”, existindo argumentos a favor e contra tal enquadramento. De um lado, ele se alinha ao conceito do Código Aduaneiro do Mercosul, mas de outro ele é o único tratamento previsto na legislação para operações relacionadas a embarcações dessa natureza e consequentemente compulsório, sem necessidade de adesão optativa e não se alinha ao conceito doutrinário acima.
Situação bastante diferente é aquela do Regime do Drawback, que em todas as suas modalidades padrão (isenção, suspensão e restituição) e especiais (embarcação e intermediário) indiscutivelmente representa um “regime aduaneiro especial” e consequentemente está incluso na possibilidade de manutenção da desoneração através de Lei Complementar em relação ao IBS e a CBS, não se aplicando a vedação geral.
Conclusão
A manutenção das equiparações legais à exportação mesmo com a Reforma Tributária, seja como normas econômicas ou como “regimes aduaneiros especiais” é absolutamente indispensável para a sobrevivência da Indústria Naval brasileira, já que além da concorrência internacional desleal que motivou a sua concessão original ainda estar presente, não há como deixar de avaliar que todo o setor vem sofrendo com grandes dificuldades com a desaceleração das demandas de embarcações. O quinto país que mais possui território marítimo não pode e nem deve deixar sua Indústria Naval naufragar, tornando-se dependente do estrangeiro em um aspecto tão estratégico para a economia nacional.
Como visto, há margem para defender o enquadramento de ambos os tratamentos (Drawback-Embarcação e REB/Pré-REB), como “regime aduaneiro especial” (que, como visto, podem receber “diferimentos” e “desonerações” na Reforma Tributária), com maior facilidade quanto ao Drawback-Embarcação. Assim, o setor deve atuar junto aos Grupos de Trabalho da elaboração de Lei Complementares para que tais regimes aduaneiros sejam contemplados na nova legislação.
Mesmo que isso não ocorra, o setor terá bons fundamentos jurídicos e respaldo na jurisprudência atual para defender que as equiparações legais à exportação não devem ser consideradas como regras tributárias para fins de aplicação de óbices constitucionais tributários, inclusive os da Reforma Tributária, o que faria com que ele ainda estivesse economicamente protegido a despeito das Leis Complementares.
Contudo, não há como negar que o debate anteriormente travado para as “isenções heterônomas” provavelmente será reacendido com a nova vedação e que muito provavelmente os entes tributantes tentarão argumentar que a equiparação não se aplica aos novos tributos. Caso suas equiparações não sejam contempladas nas Leis Complementares, a judicialização será o único caminho restante ao setor.
1Sobre o tema, destacamos os seguintes julgados: TJPE, Embargos de Declaração na Apelação Cível nº 40060146-54.2003.8.17.0001, DJ 27.09.2018; TJSP, Apelação Cível nº 0011880-60.2014.8.26.0337, DJ 26.10.2017; TJRJAgravo de Instrumento nº 0020010-70.2017.8.19.0000, DJ 14.11.2017; TJMG, Apelação Cível nº 1.0313.10.025000-7/001, DJ 05.04.2016; TJMG, Apelação Cível nº 1.0313.09.292580-6/001, DJ 31.01.2012; TJRJ, Apelação Cível nº 0145370-95.2006.8.19.0001, DJ 11.08.2009.
2Que ainda não está em vigor, tanto por não ter sido promulgado pelo Poder Executivo Brasileiro apesar do referendo pelo Congresso Nacional, quanto por similar internalização só ter sido feita pela Argentina.
Thales Belchior Paixão é Sócio Fundador do Veras Belchior Advogados. Especialista em Direito Tributário pela FGV/RJ. Professor Convidado de Direito Aduaneiro no IBDT/SP e de Direito Tributário na EMERJ, FBT/SP e APET/SP. Diretor de Contencioso no Instituto de Pesquisas em Direito Aduaneiro (IPDA).
Daniella Maria Alves Tedeschi é Sócia Fundadora do DMAT Advogados e Membro da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB/RJ.
Taissa Meira Coelho Arruda Aragão é Gerente do Departamento Jurídico da MS Logística Aduaneira, Legal Partner da IGAPÓ ADVISORS. Membro da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB/RJ. Especialista em Direito Fiscal pela PUC/RJ, em Direito Aduaneiro pela AVM/RJ e em Compliance pela BRA Certificadora.