No Brasil, o governo federal, apesar de alguns importantes avanços como a edição da Lei de Liberdade Econômica e a Lei Geral das Agências Reguladoras, vem reduzindo as funções estratégicas do Estado em setores vitais da atividade econômica, por meio dos Ministérios da Economia e da Infraestrutura, refiro-me aqui à Secretaria Nacional de Portos e Transportes Aquaviários, com a sua política de “desestatização” sem considerar a relação porto-cidade, apesar da retórica das audiências públicas, que teve muitas perguntas, contribuições e sugestões sem resposta, ou resposta sem evidências empíricas.
A Secretaria Nacional dos Portos tem sido contra as Autoridades Portuárias Públicas que deveriam servir de modelo, como é o caso do Porto Municipalizado de Itajaí, que não teve a prorrogação do seu convênio de delegação por pelo menos 25 anos, ao contrário da Autoridades Portuária do Paraná e do Rio Grande Sul, que tiveram a antecipação da prorrogação. A violação do tratamento isonômico é flagrante.
Isso se dá sem considerar a questão da soberania, de modo que a Secretaria, com base em uma retórica neoliberal, e sem evidências empíricas, procura destruir, através da transferência de funções exclusivas de Estado para um concessionário privado, parcela dos avanços no setor portuário, por meio da privatização de Autoridades Portuárias Públicas estratégicas como Santos e Itajaí, que foram incluídas no PPI, ao contrário do que se faz em 90% dos portos do mundo e há 800 anos, onde as Autoridades Portuárias são públicas.
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Cito aqui os dois maiores portos de contêineres dos EUA, Los Angeles e Long Beach, onde pude operar como piloto de navios mercantes nos anos 80, e a Autoridade Portuária é pública municipal, há mais de um século. Cada um deles movimenta quase o total de TEUs que todos os portos brasileiros movimentaram em 2021, ou seja, cerca de 10 milhões. Obviamente que ninguém é contra mudanças, mas daí a entregar a duas jóias da Coroa para grupos privados, que podem contribuir como arrendatários, há um abismo.
Não é por acaso que a nossa Constituição Federal considera a soberania o primeiro fundamento da República (art. 1º, I), e somente a cidadania (inc. II), a dignidade da pessoa humana (inc. III) e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (inc. IV). Ou seja, tais fundamentos são posteriores ao da soberania. Sem soberania, nenhuma Nação poderá ter os demais fundamentos.
Nesse contexto, países do Leste Asiático, como Coreia do Sul, Vietnã, Singapura, Japão e China, há mais de 50 anos, e os Estados Unidos, o país mais capitalista do mundo, desde antes da fundação da Nação, empoderam o Estado em funções estratégicas como portos e navegação, e caminham no sentido contrário ao que se faz no Brasil. Nos EUA, diante dos abusos mais do que comprovados por parte de um pequeno grupo de armadores, o Estado norte-americano empodera a regulação setorial do transporte marítimo através de alterações em lei e de mais recursos do orçamento à Federal Maritime Commission (FMC).
O projeto de lei bipartidário (Democratas e Republicanos), chamado Ocean Shipping Reform Act of 2022, objetiva resolver as demandas dos exportadores e importadores norte-americanos através de ferramentas que aumentem a regulação econômica dos armadores internacionais, diante dos abusos com aumentos de frete e de cobranças extra-frete.
A nova legislação teve imenso apoio de todos os setores da economia norte-americana, até dos bancos. Dentre eles, podemos citar a American Association of Port Authorities, que representa mais de 130 autoridades portuárias de Norte ao Sul das Américas, e de mais de 100 entidades associativas dos EUA, dentre as quais a Agriculture Transportation Coalition (AgTC), a National Retail Federation, a American Trucking Association, a California Association of Port Authorities, a American Bankers Association e a International Warehouse Logistics Association.
O bill teve como uma das líderes, a Senadora Amy Klobuchar, do Partido Democrata, representando Minnesota, advogada graduada magna cum laude na Yale University e na University of Chicago Law School. Klobuchar tem 62 anos, é neta de um imigrante da Eslovênia, trabalhador em minas de ferro do citado estado, filha de uma professora que lecionou até os 70 anos e de um jornalista, e antiga lutadora contra os monopólios e carteis nos EUA.
Aliás, a Declaração da Independência de 1776 decorre justamente de uma revolta contra o monopólio do chá inglês e a criação de um tributo no Parlamento inglês, portanto, sem que os colonos norte-americanos tivessem aprovado, que deu ensejo ao princípio da legalidade tributária (“no tax without representation”)
Ela é autora do já clássico Antitrust: taking on monopoly power from the Gilded Age to the Digital Age. New York: Alfred A. Knopf, 2021, 609 p, cuja leitura recomendo. A senadora construiu uma reputação em defesa da economia e apoio às famílias e trabalhadores e, em 2019, uma análise da Vanderbilt University considerou-a “the most effective” Senadora do Partido Democrata na 115ª. legislatura do Congresso.
A obra começa com trecho do Presidente Theodore Roosevelt, no discurso do State of Union de 1902, onde chama a atenção para a importância da regulação estatal (e não do bordão “o mercado regula”) para combater os carteis e suas alianças, o que não significa combater a riqueza:
Corporations, and especially combinations of corporations, should be managed under public regulation. Experience has shown that under our system of government the necessary supervision can not be obtained by State action. It must therefore be achieved by national action. Our aim is not to do away with corporations; on the contrary, these big aggregations are an inevitable development of modern industrialism….We are not hostile to them; we are merely determined that they shall be so handled as to subserve the public good. We draw the line against misconduct, not against wealth.
Durante a Covid-19 os consumidores começaram a comprar mais pela internet, o que resultou em gargalos portuários e intermodais, e prejudicou também os agricultores e a indústrias no acesso aos mercados globais devido à imprevisibilidade das partidas de navios, recusa a embarques, e aumentos de preços de frete de 1000%. Por exemplo, um frete de US$ 1.300, antes da pandemia, passou para US$ 11.000 em 21 de setembro de 2021.
Dentre os problemas causados aos consumidores e empresas norte-americanas, segundo o Congresso dos EUA, podem ser citados:
i) Exportadores agrícolas foram muito prejudicados pelos aumentos abusivos de custos e gargalos logísticos e perderam 22 % das vendas nos últimos dois anos em face dos atrasos nas operações de shipping.
ii) Ironicamente, os transportadores marítimos tiveram lucros de US$ 150 bilhões somente em 2021 em função do aumento da demanda na importação e dos altos preços para transportar contêiner.
iii) Relatórios comprovaram que produtos agrícolas ficavam nos portos enquanto os armadores retornavam contêineres vazios para a Ásia. Entre julho e dezembro de 2020, os armadores recusaram pelo menos US$ 1,3 bilhão de exportação de produtos agrícolas.
iv) Analistas do setor indicam que em 2020 e 2021, nos 20 maiores portos do mundo, os custos de demurrage e detention aumentaram 104%, e foram repassados para os consumidores.
A FMC, que inspirou a Reforma do Estado no anos 1990, e a criação da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) em 2001, tem como objetivo proteger os interesses da economia dos EUA por meio da regulação do transporte marítimo e da atividade portuária, tal como a Antaq, com base no Shipping Act, que foi emendado em 1998.
A norma autoriza a FMC a combater e eliminar cobranças abusivas, e evitar a negativa irrazoável de embarque de cargas a exportadores dos EUA, e o controle e execução das ferramentas para eliminar práticas abusivas aos empresários e usuários norte-americanos.
Osvaldo Agripino é advogado e consultor especializado em regulação de logística e comércio exterior, sócio do Agripino & Ferreira, Pós-Doutor em Regulação de Transportes e Portos – Harvard University (2007-2008)