O El Niño é um fenômeno da natureza que já vem sendo registrado e estudado há mais de um século e se caracteriza pela mudança no padrão dos ventos que sopram no Oceano Pacífico, causando, entre outros fatores, um aquecimento das águas na costa oeste da América do Sul. Já se sabe que esses eventos ocorrem com intervalos (de dois a sete anos) e intensidades (fraca, moderada e forte) variadas.
Em 2023 esse fenômeno deverá ser classificado como um dos mais fortes da série histórica e está demonstrando o quão significativos e generalizados podem ser seus impactos: ondas de calor, incêndios florestais, inundações e secas, em várias partes do mundo:
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EUA: clima mais seco e quente no norte do país, enquanto no sul observam-se chuvas intensas e inundações;
Europa: inverno mais frio e seco ao norte, enquanto o sul enfrenta invernos mais úmidos;
África: redução das chuvas na África do Sul e muitas chuvas e inundações na África Oriental;
América Central: redução na chuvas – que vem impondo significativas limitações de carga aos navios que cruzam o Canal do Panamá;
No Brasil o El Niño se caracteriza por um período de fortes chuvas nos estados do Sul e seca no Norte e também não tem passado despercebido esse ano. Há algumas semanas que acompanhamos pelos noticiários:
Rio Grande do Sul: temporais inundaram centenas de municípios e causaram sérios danos à população;
Santa Catarina: as fortes chuvas já provocaram perdas de mais de R$ 1,6 bi na agricultura, o cancelamento do último desfile da tradicional Oktoberfest em Blumenau e o fechamento do porto de Itajaí/Navegantes por 16 dias no início de outubro (em virtude da cheia do Rio Itajaí Açu);
Paraná: mais de 7 mil pessoas foram desalojadas pelas fortes chuvas em diferentes regiões do estado.
No Amazonas a situação é oposta, mas não menos desoladora. O estado enfrenta uma das secas mais severas de sua história, resultando em níveis historicamente baixos do Rio Negro, que tem isolado muitos municípios e vilarejos onde o rio é o único meio de escoar a produção e obter produtos para subsistência (alimentos, bebidas, materiais de higiene, medicamentos etc).
E como isso tudo tem impactado a Logística e o Comércio Exterior Brasileiro?
Há meses que parte das importações de peças e componentes oriundos da Ásia para a Zona Franca de Manaus vinham sendo afetados pelas crescentes limitações de calado na travessia do Canal do Panamá.
Contudo, a seca no rio Amazonas potencializou em muito o problema, já que a falta de calado acabou levando as empresas de navegação a cancelarem temporariamente suas escalas em Manaus, incluindo Aliança, Log-In, Mercosul Line, CMA CGM, ONE e MSC.
Embora os rios da Amazônia historicamente comecem a baixar em setembro (época conhecida como vazante) e voltem a encher logo no início de novembro, o gráfico seguinte mostra que esse ano os rios começaram a baixar muito antes e nesse outubro de 2023 já reportam o pior nível dos últimos 121 anos. Para piorar ainda mais, especialistas vêm dizendo que a situação não deve começar a melhorar antes de meados de novembro, o que além de prolongar o sofrimento de mais de 500 mil pessoas tem levado muitas empresas da Zona Fraca a decretar férias coletivas em razão da falta de insumos para a produção ou excesso de estoque (muitos produtos de Manaus deverão inclusive ficar de fora da Black Friday e do Natal desse ano).
Claro que são bem-vindos os investimentos emergenciais que estão sendo realizados pelo Governo Federal nos pontos mais críticos do rio Amazonas, mas seria ainda mais importante que nos próximos anos essas dragagens fossem feitas antes da época da vazante do rio.
Para além de Manaus, em nossas análises semanais também temos notado uma generalizada deterioração da integridade de schedule (pontualidade dos navios) ao longo da costa brasileira, sobretudo em razão do já mencionado prolongado período de fechamento do porto de Navegantes, que na prática tem levado a um redirecionamento de navios e cargas para outros portos:
Imbituba: recebeu ao menos seis escalas adicionais de navios porta-contêineres entre os dias 6/10 e 19/10, contudo já divulgou nota dizendo que estão fazendo o possível para lidar com o súbito aumento de carga;
BTP/DPW: a Santos Brasil “herdou” ao menos sete escalas planejadas para os seus “vizinhos”, já que esses estão com dos pátios lotados de algodão, açúcar e/ou com acumulo de cargas para Navegantes que tiveram que ficar no cais santista;
Paranaguá e Itapoá: embarcadores afirmam estar com dificuldade para depositar suas cargas dada a alta ocupação dos pátios dos terminais;
Vila do Conde: passou a oferecer conexão via barcaças com Manaus, porém também já está lotado;
Em outras palavras, esse El Niño deixou ainda mais evidente algo que nós da SOLVE estamos falando há tempos: “A movimentação de contêineres no Brasil está trabalhando no limite da capacidade, com tolerância zero a intercorrências!”
Esses eventos climáticos (que voltarão a acontecer) não seriam um problema tão complexo se a infraestrutura brasileira estivesse preparada para eles, mas para tanto é preciso “destravar” os muitos investimentos planejados em dragagem e expansão da capacidade dos portos brasileiros!
Importante: à medida que escrevia esse texto foi anunciado um novo fechamento do porto de Itajaí/Navegantes em decorrência das fortes chuvas que voltaram a castigar o Vale do Rio Itajaí no final de Outubro/23. Ou seja, o caos logística tende a perdurar a despeito do início do low season.
Leandro Carelli Barreto é sócio da Solve Shipping Intelligence
Ana Fragoso é formada em Comércio Exterior, com pós em Marketing Internacional e possui uma trajetória de mais de 10 anos no shipping, tendo trabalhado em grandes armadores e forwarders em diferentes países. Atualmente é Head of Marketing & Sales da SOLVE e uma das principais referências em “Slow Marketing” no Brasil