Receba notícias em seu email

MSC

Artigo - Tecon Santos 10 e o argumento geopolítico do momento

Há tempos, os principais doutrinadores de direito administrativo criticam o uso retórico de princípios muito vagos como elemento facilitador e legitimador da superficialidade e do voluntarismo. Isso acontece, segundo a doutrina, porque ninguém tem coragem de refutar “belos princípios”. Na prática, muita gente se sente autorizada a tirar conclusões concretas apenas recitando fórmulas um tanto “poéticas”.

A crítica dos estudiosos é que motivações e discussões que ficam nesse plano de generalidades são insuficientes para a adoção de conclusões concretas. A razão é óbvia: nesse plano, quase todo mundo tem alguma razão no que diz.


PUBLICIDADE



A conclusão é que o “status principiológico” de certas expressões e frases tem servido demais para ocultar uma falta de critérios. Mas, segundo os estudiosos, ideias soltas não podem servir de motivação para decisões.

A crítica doutrinária se aplica com perfeição quando se trata de atos administrativos.

A Administração Pública deve se pautar pela impessoalidade e pela objetividade. Qualquer ato administrativo que não observar esses critérios mínimos, dentre outros, será inválido. Isso provoca ao administrador público um ônus argumentativo da maior relevância: suas decisões precisam ser adequadamente motivadas, e tal motivação deve estar calcada em elementos concretos, e não em simples achismos. Do contrário, o ato administrativo, que deveria ser impessoal e pautado pela objetividade, será mero produto da subjetividade, que é incompatível com o agir administrativo.

Essas ideias são especialmente relevantes no âmbito das licitações públicas. Por se tratar de um procedimento competitivo, todos os critérios de participação numa licitação devem ser previstos com base em evidências concretas acerca da sua necessidade e proporcionalidade. A previsão de requisitos restritivos à participação sem embasamento em evidências e sem a participação ampla de muitos agentes do mercado pode provocar o esvaziamento do certame.

Nesse sentido, o art. 9º da Lei 14.133 estabelece que é vedado ao agente público admitir, prever, incluir ou tolerar situações que comprometam, restrinjam ou frustrem o caráter competitivo do processo licitatório, ou que sejam impertinentes para o objeto específico do contrato.

Essa longa introdução é necessária para contextualizar o leitor a respeito da licitação do Tecon Santos 10.

Trata-se do certame destinado a escolher a empresa que terá o direito de explorar o maior terminal portuário do país, no principal porto da América Latina, pelos próximos 25 anos (podendo chegar a 70 anos). Nesse contexto, cogita-se criar uma proibição à participação das empresas que já operam terminais no Porto de Santos. Ainda que tais empresas estejam dispostas a abrir mão de seus empreendimentos atuais caso vençam a licitação, a restrição constante da minuta do edital submetida ao TCU, na prática, simplesmente proíbe tais empresas de participar do certame.

O fundamento para tal (inédita) restrição seria de ordem concorrencial. Permitir que os atuais incumbentes pudessem operar outro terminal no Porto de Santos supostamente proporcionaria uma concentração indevida de mercado, com a qual os mecanismos regulatórios ex post de controle não teriam como lidar.

Essa foi a conclusão da Diretoria da ANTAQ (apesar do entendimento dos técnicos da Agência em sentido diverso).

Aliás, a Secretaria de Acompanhamento Econômico e Regulação (“SEAE”) do Ministério da Fazenda, responsável pela advocacia da concorrência no Brasil, e o CADE, que é o órgão responsável pela defesa da concorrência no país, reconheceram que não há justificativa concorrencial para a restrição cogitada. Tanto é que, no painel de referência realizado pelo TCU em 29 de julho, o Presidente do CADE defendeu que restringir a participação de empresas no leilão poderia inviabilizar modelos de negócios mais eficientes para o setor. Além disso, mais recentemente, o Superintendente-Geral do CADE, em resposta a ofício do TCU, concluiu que restrições à participação devem ser proporcionais e que, no caso, se em tese houver alguma justificativa para elas, será de outra natureza “que não concorrencial”.

Suplantado o argumento concorrencial, agora se deduziu um outro possível fundamento para a indevida restrição. Em ofício encaminhado ao TCU no dia 26 de setembro, respondendo a um pedido de informações, a Secretaria de Portos afirmou que a restrição à participação seria baseada num fator geopolítico. Tratar-se-ia de um remédio estrutural para não fechar o país para novas rotas, o que poderia “vulnerabilizar o país diante da complexidade de nova reconfiguração da geopolítica mundial”.

Se for isso mesmo, trata-se da primeira vez que um argumento de natureza geopolítica é levantado para justificar uma restrição à participação de interessados numa licitação para o arrendamento de um terminal portuário. No entanto, o argumento é claramente equivocado.

Primeiro, a própria sucessão de fundamentos (inicialmente o concorrencial, agora o geopolítico) já enfraquece a nova justificativa levantada. Se havia um argumento de natureza geopolítica, por que levantar esse assunto só agora, quando os órgãos competentes para avaliar temas concorrenciais afastaram essa possibilidade? Fica a impressão de que primeiramente se decidiu pela restrição e agora tenta-se encontrar um elemento a mais para sustentá-la, já que o fundamento concorrencial inicialmente invocado foi suplantado pelas análises dos órgãos antitrustes competentes.

Segundo, será que temos realmente no Brasil uma política pública voltada a restringir a participação de grupos dotados de integração vertical? Se a temos, houve justificativa para a instituição de uma política que é contrária a uma tendência observada em todo o mundo, que é a da integração logística? Tais questões são relevantes, uma vez que nunca houve restrição com esse fundamento em outras licitações de terminais portuários. Na realidade, parece evidente que não há no Brasil uma política pública de restrição à verticalização. Tanto é que houve ao longo dos últimos anos um movimento de integração vertical no setor portuário brasileiro, por meio de alterações de controle societário que foram devidamente aprovadas pelo CADE e pela ANTAQ, inclusive muito recentemente. Jamais se invocou qualquer fundamento geopolítico para restringir esse movimento.

Terceiro, se há realmente uma política pública no país de restrição à integração logística, isso representa um significativo fechamento do Estado Brasileiro a players importantes do comércio exterior. Será uma guinada no relacionamento internacional do Brasil e de sua inserção no mercado global. No entanto, não há nenhuma notícia, por exemplo, de que o Ministério das Relações Exteriores tenha participado dessa definição, apesar de ser uma política diretamente relacionada às suas competências (art. 44 da Lei 14.600), e não às do Ministério de Portos e Aeroportos (art. 41 da mesma lei). O MPOR trata das políticas portuárias, mas se há uma questão geopolítica envolvida, não é ele o competente para defini-la.

Quarto, qual a efetiva relação entre a alegada reconfiguração geopolítica mundial e a participação de empresas que já operam terminais no Porto de Santos? Essa suposta política será empregada em todas as licitações e autorizações de terminais portuários pelas próximas décadas, ou só no Tecon Santos 10?

A conclusão é uma só: o argumento de natureza geopolítica não é real. Os fatos demonstram que não temos efetivamente uma política de restrição a integrações verticais no Brasil. E, como demonstrado pelas manifestações dos órgãos concorrenciais competentes, nem tampouco faria sentido que tal política existisse. Na prática, o fundamento “geopolítico” parece uma fórmula abstrata e desproporcional, que não pode servir de embasamento para provocar restrições à participação numa licitação tão relevante.


250930-rafael-wallbach-schwind-divulgacao.jpgRafael Wallbach Schwind é Doutor em Direito do Estado (USP) e sócio do escritório Justen, Pereira, Oliveira e Talamini Advogados.






   ICN    Zmax Group    Antaq
       

 

 

Anuncie na Portos e Navios

 

  Cluster Tecnológico Naval do Rio de Janeiro   Assine Portos e Navios
       
       

© Portos e Navios. Todos os direitos reservados. Editora Quebra-Mar Ltda.
Rua Leandro Martins, 10/6º andar - Centro - Rio de Janeiro - RJ - CEP 20080-070 - Tel. +55 21 2283-1407
Diretores - Marcos Godoy Perez e Rosângela Vieira