Há alguns anos o setor de transporte marítimo de contêineres era visto por alguns observadores como comoditizado, previsível e até um pouco inerte. Para entender sua dinâmica muitos acreditavam que bastava mapear algumas poucas variáveis, tais como: crescimento do comércio internacional, encomendas de novos navios e custos de combustíveis e afretamento.
Naquele tempo, preparar as almejadas analises fundamentalistas do setor ou decifrar os famosos planejamentos estratégicos das empresas era quase que uma “receita de bolo”, normalmente ratificadas pelos comentários, previsões e justificativas contidos nos balanços financeiros publicados por alguns dos principais armadores.
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Evidente que num momento de ruptura como o que o mundo está passando em virtude da pandemia causada pelo Covid-19, onde ao mesmo tempo que se recebe uma enxurrada de informações nas mídias e redes sociais – muitas delas difusas, polarizadas, politicamente contaminadas e nem sempre verdadeiras –, há uma enorme escassez de indicadores econômicos oficiais atualizados que possam embasar previsões responsáveis e, portanto, a capacidade de realizar uma rápida interpretação dos “sinais do mercado”, assim como uma pronta adaptação às novas realidades vêm se tornando mais necessárias do que as próprias análises fundamentalistas, baseadas em dados oficiais defasados, ou do que planejamentos estratégicos engessados calcados em cenários que já não mais existem.
O fato é que recentemente poucos setores parecem ter incorporado tanto essa agilidade na interpretação dos “sinais do mercado” quanto o setor de transporte marítimo em contêiner, o que até lhes rendeu na última semana uma publicação dura e atípica da respeitada consultoria internacional Drewry Maritime Research: "When big profits look bad".
As rápidas ações/reações dos armadores na gestão da oferta & demanda em meio a essa crise de forma a “estancar” a queda dos fretes são inquestionavelmente a maior prova dessa mudança de perfil dos armadores, até porque contrastam bastante com a postura catastrófica adotada pelo setor durante e após a crise de 2009. No entanto, antes mesmo do recrudescimento da crise atual, pode-se dizer que outras “catástrofes” conjecturadas mais recentemente já haviam sido contornadas por essa nova postura dos armadores como, por exemplo, as enormes incertezas causadas pelo IMO 2020 e que foram motivo de debates acalorados ao longo de todo o ano de 2019. No fim, os congestionamentos nos estaleiros para instalação de scrubbers em dez.19 e jan.20 acabaram não acontecendo, os muitos blank sailings no 1ºtri/20 por conta dos navios parados nos estaleiros também não aconteceram e o preço do LSFO caiu tanto que atualmente já há fábricas de scrubbers dispensando pessoal (claro que o Covid-19 e a disputa entre russos e árabes influenciaram bastante nesse caso).
Com o lockdown na China logo no início de fevereiro, outra “catástrofe” que não se confirmou foi a de que isso poderia encerrar a sequência de resultados positivos dos armadores. E o que vimos no 1ºtri/20 deste ano? A esmagadora maioria dos armadores reportando resultados positivos, com a Hapag Lloyd apresentando um EBIT de 6,5%, Maersk com 5.8%, CMA CGM com 5,4%, Zim com 3,3%, Wan Hai com 3,6%, Cosco 3,2%, Evergreen 0,8%, Yang Ming 0,3%.
Posteriormente, falou-se que os resultados do 2ºtri/20 seriam terríveis para os armadores diante da queda sem precedentes dos volumes, das receitas e, consequentemente, da liquidez, mas nas últimas semanas a reação dos fretes nas rotas Leste <> Oeste já tem levado muitas empresas e analistas a reverem suas expectativas. De acordo com SCFI – Shanghai Container Freight Index, nas primeiras semanas de julho os fretes nas rotas Leste <> Oeste estavam mais de 30% acima do mesmo período de 2019.
Claro que nem todos esses resultados são mérito apenas de uma melhor estratégia ou maior habilidade na gestão da capacidade por parte dos armadores e que a principal explicação é sem dúvida a consolidação vivida por esse setor ao longo dos últimos anos, que reequilibrou o poder de barganha entre as duas principais “forças” desse microambiente competitivo: armadores e grandes embarcadores.
Ainda que a mencionada publicação da Drewry possa soar parcial para alguns, ela é bastante feliz ao concluir dizendo que: "Vai demandar alguns esforços de ambos os lados. As linhas podem fazer um trabalho melhor em termos de antecedência e justificativas ao fazer alterações na capacidade, assim como um contato mais próximo com os clientes quanto a sinais de recuperação que possam ajudar a evitar possíveis gargalos. Já os donos de carga devem estar cientes de que as transportadoras precisam manter um nível mínimo de receita ou então serão forçadas a retirar os serviços".
O mais interessante, contudo, é perceber que as “receitas de bolo” e a morosidade do setor se foram e que o transporte marítimo em contêiner precisa ser encarado atualmente por todos os seus stakeholders como um setor cada dia mais ágil, dinâmico, adaptável e ávido para recompor os prejuízos da última década (US$ 110bi de acordo com a McKinsey).
Efeitos para o Brasil
Felizmente, algumas dessas “catástrofes” também não chegaram a ocorrer por aqui como, por exemplo, ainda no 1ºtri/20 quando começaram a faltar equipamentos e navios para as exportações brasileiras em razão dos blank sailings provocados pelo lockdown na China e os armadores se apressaram em otimizar seus inventários, ofertar rotas alternativas e trazer extraloaders à costa brasileira para reposicionar equipamentos vazios e levar carnes para a Ásia.
A mesma “catástrofe” de falta de equipamentos e navios para as exportações brasileiras também foi evitada no 2ºtri/20 com a mesma “receita” (extraloaders e rotas alternativas). Contudo, dessa vez em razão dos blank sailings causados pela queda da demanda no Brasil, diante das medidas de isolamento social adotadas para conter a pandemia por aqui e que levaram a quedas expressivas nos volumes, e, consequentemente dos fretes, das importações brasileiras da Ásia.
Interessante notar que, ainda que os fretes de importação da Ásia tenham caído de uma média de US$ 1.600 no 1ºtri/20 para em média US$ 800 no 2ºtri/20 e iniciado o 3ºtri/20 abaixo dos US$ 400, os armadores estão aparentemente “mudando a receita” nessa rota, já que até o momento não foram identificados novos blank sailings para o mês de agosto (exceto um do serviço da PIL que na prática significa a prorrogação em uma semana do retorno desse serviço à configuração semanal após três meses rodando quinzenal).
Possivelmente a conta de reposicionar 16 extraloaders apenas nos meses de junho e julho para atender a demanda dos exportadores brasileiros para Ásia ficou mais alta do que tentar segurar a queda dos fretes de importação e, como a demanda e os fretes de exportação seguem aquecidos nessa rota, os armadores provavelmente estão “virando a chave” e tirando das importações a responsabilidade de “main leg” ou “headhaul”. Em outras palavras, estão dando à exportação a incumbência de “pagar a conta”.
A se confirmar, essa nova estratégia não deixa de ser uma boa notícia não apenas para os donos da carga – que terão escalas e disponibilidade de equipamentos mais previsíveis —, mas também para os terminais portuários brasileiros que, em intensidades diferentes, foram bastante afetados pelos cancelamentos dos últimos meses – muito embora, por outro lado, Portonave, TCP e BTP tenham conseguido capturar boa parte das escalas dos extraloaders que passaram pela costa brasileira e, com isso, praticamente não sentiram os efeitos da crise.
Em suma, nunca houve ninguém muito ingênuo ou incompetente nesse mercado e, portanto, a enorme volatilidade dos fretes observada nos últimos anos foi fruto do já superado overcapacity e da velha cultura do “quem pode mais, chora menos”. Com esse maior equilíbrio da oferta & demanda e entre principais forças do mercado pós consolidação dos armadores, o desejável seria que as “armas fossem baixadas” e finalmente se passasse a construir uma parceria verdadeira entre todos os elos da cadeia logística – com um buscando de fato entender as “dores”, as necessidades e os limites do outro.
Leandro Carelli Barreto e Robert Grantham são sócios da Solve Shipping Inteligence