Os maiores obstáculos à operação dos terminais portuários brasileiros, com reflexos negativos no transporte marítimo e, portanto, no comércio exterior, não estão, na verdade, nos portos. A sentença parece paradoxal, mas, a rigor, exprime uma realidade que merece ser assimilada como lição, sob o risco de continuarmos a estabelecer metas equivocadas, ou nos esquecermos de estabelecê-las, negligenciando as medidas certas e retroalimentando problemas que afetarão a retomada de nosso crescimento econômico. Os obstáculos são externos e têm dupla natureza: estrutural e legal-institucional.
Nas últimas décadas, em especial a partir da Lei 8.630 de 1993, quando ocorreram as primeiras licitações nos portos, o setor recebeu um considerável aporte de investimentos. Calcula-se que de lá para cá mais de R$ 35 bilhões foram investidos em novos terminais e na modernização de instalações já existentes, tanto as do segmento de contêiner quanto as de graneis líquido e sólido, o que garantiu ao setor um novo patamar de eficiência e produtividade.
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Esse processo de revitalização foi fundamental para evitar que houvesse um gargalo estrutural, ou até mesmo um colapso na movimentação de cargas, pois a dinâmica do comércio global no médio e no longo prazos, a despeito de crises conjunturais ou pontuais — como a que se enfrenta hoje decorrente da Covid-19 —, é de crescimento. Tornou-se mais relevante ainda se considerarmos que 95% do comércio exterior brasileiro passam pelos nossos terminais portuários, espalhados por três dezenas de portos ao longo de 7,3 mil km de litoral.
A necessidade de permanentes investimentos no setor pode ser confirmada pelo aumento da tonelagem das embarcações que transportam todo tipo de mercadoria ao redor do mundo, fenômeno que decorre não apenas da incessante expansão das trocas internacionais, como da busca de economia em escala em meio a esse crescimento. No início dos anos 1980, os maiores porta-contêineres em operação no mundo eram de 1,2 mil TEUs (medida padrão para contêineres de 20 pés), enquanto hoje essas embarcações já chegam aos 23 mil TEUs de capacidade — um aumento de porte de mais de 700%, em três décadas.
Aqui e no mundo, a infraestrutura portuária precisa ser continuamente adaptada para receber navios maiores, algo incontornável. Por isso, mesmo com os significativos avanços feitos nos terminais nas últimas décadas, novos investimentos devem ser realizados, a fim de prevenir gargalos, principalmente tendo em vista a retomada do crescimento no Brasil e no mundo. De acordo com o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), o Brasil precisa investir R$ 25 bilhões nos seus portos nas próximas duas décadas, de modo a acompanhar o inexorável crescimento do tráfego marítimo e evitar possíveis restrições que geram ineficiências e comprometem a competitividade de sua cadeia produtiva.
O setor privado está pronto a fazer esses investimentos. Somente o segmento de contêineres, que compreende cerca de 20 modernas instalações nos 15 principais portos brasileiros, gerando dez mil empregos diretos, tem projetos de instalação, modernização e ampliação da ordem de R$ 5 bilhões nos próximos cinco anos, de acordo com entidades que representam o setor. Contudo, para que esses investimentos efetivamente se concretizem, é imperativo que se tenha um ambiente institucional estável, com clareza e previsibilidade nas normas que disciplinam o setor. Esse ambiente de estabilidade, com segurança jurídica, porém, nem sempre tem sido a tônica nos últimos anos, e eis aí obstáculo de ordem legal referido de início.
As fontes dessa insegurança são muitas, entre elas, o excesso de obrigações acessórias de nosso sistema tributário, com quase 80 tributos de diferentes naturezas, cada qual com uma infinita gama de normas, bem como o alto grau de burocracia resultante da atuação, nos portos, de uma dezena de órgãos públicos, das três esferas, com distintas competências e, não raro, atribuições sobrepostas, sem a devida uniformização. As normas suplementares atinentes à tributação e às atividades de regulamentação, regulação e fiscalização do Poder Público, emanadas desses vários órgãos, nem sempre trazem a clareza, a objetividade e, principalmente, a padronização que um ambiente de negócios saudável requer.
A própria morosidade do Judiciário contribui para aumentar a instabilidade e a insegurança institucional, sendo ela também, em grande parte, resultado — é preciso salientar — desse arcabouço legal excessivamente detalhista, de caráter nitidamente dirigista, que potencializa os litígios. Contribui sobremaneira para este quadro desfavorável aos negócios e, claro, para elevar o número de conflitos administrativos e sobrecarregar o Judiciário, a atuação muitas vezes desmedida dos diferentes entes federados que, na sua voracidade arrecadatória, tomam decisões em desacordo com o ordenamento jurídico.
Vai neste sentido a pretensão manifestada pelas secretarias municipais de Fazenda de cidades onde há terminais portuários de cobrar, conforme recente notícia veiculada pela imprensa, o Imposto sobre Serviços (ISS) das companhias de navegação (os armadores) pelos valores que estes recebem dos clientes (exportadores, importadores, consignatários de cargas), a título de ressarcimento, pelos serviços de movimentação e organização de contêineres nos terminais, a chamada THC (Terminal Handling Charge, em inglês).
A cobrança é flagrantemente ilegal, na medida em que representaria uma dupla tributação em cima de um mesmo fato gerador, considerando que os terminais portuários já recolhem ISS pela movimentação de contêineres em seus pátios de manobras e armazéns — os mesmos contêineres que são trazidos pelos navios e perfilados e empilhados nos terminais. Na verdade, o armador não presta serviços portuários e, portanto, não pode estar sujeito ao ISS. Não é contribuinte de fato ou de direito do imposto. Pela dinâmica, o operador portuário cobra a THC da empresa de navegação, e esta embute o ressarcimento em seu preço final, previamente ajustado com o cliente (importadores e exportadores).
Vale dizer que, além de outros tributos, em especial taxas, o armador recolhe ICMS no transporte de carga entre portos nacionais. Por sua vez, a cobrança da THC pelos terminais portuários é mais do que justa e legítima, uma vez que corresponde à prestação de um serviço complexo efetivamente realizado: a movimentação, organização e guarda de cargas.
À parte as questões de ordem legal-institucional, os portos e, por extensão, o transporte marítimo, enfrentam os obstáculos externos de natureza estrutural, como dito de início, os quais também podem desencorajar investimentos no setor. Por mais modernos e eficientes que nossos terminais possam ser hoje, em virtude dos significativos aportes de recursos feitos em ampliação, equipamentos, capacitação de pessoal e adoção de novos procedimentos, sua eficiência e produtividade ficam em parte comprometidas — não sendo aproveitadas pela cadeia produtiva — devido às restrições de acesso às suas instalações.
No acesso terrestre, a integração intermodal ainda incipiente é o maior problema. No acesso por mar, o recorrente atraso nas obras de dragagens, tanto as emergenciais como as de manutenção, constituem o maior óbice. Os navios porta-contêineres de maior porte em operação do mundo não acessam nossos portos. E isso ocorre, sobretudo, porque as dragagens nos canais de acesso aos modernos terminais são deficientes. Em alguns portos, devido a problemas nas vias navegáveis, as embarcações enfrentam restrições em suas manobras, inclusive a impossibilidade de operar com carga total, o que coloca em xeque a economia de escala.
O Programa Nacional de Dragagens prevê um total de R$ 3,8 bilhões em investimentos nessas obras nos principais portos brasileiros até 2022. Espera-se que este cronograma de fato possa ser mantido e que erros na contratação desses serviços no passado não mais se repitam. O ideal seria o envolvimento da inciativa privada nesse processo, analogamente ao que ocorre nas rodovias, participando da manutenção das vias navegáveis, do controle de acesso e na ampliação de canais.
Para o acesso terrestre, o empenho por parte do governo federal no sentido de tirar do papel importantes projetos rodoviários e ferroviários, a fim de garantir maior eficiência à circulação de cargas entre os centros produtores e os terminais, será bem-vindo. Tendo em vista as óbvias limitações do orçamento público, as parcerias público-privadas podem representar um caminho ágil e seguro na superação desses desafios. Vale ressaltar que grande parte dos obstáculos estruturais também decorre dos obstáculos legais e institucionais. Basta dizer que o país tem no momento 14 mil obras paradas devido a inadequações de ordem técnico-legal. Uma parcela significativa dessas obras é da área de infraestrutura e a sua retomada, certamente, teria reflexos positivos no setor portuário.
Considerando o que foi dito aqui, é imperativo que os Três Poderes, nas diferentes esferas, compreendam a importância de o país caminhar para um ambiente de mais estabilidade e segurança institucional, e se empenhem, dentro de suas competências, na consecução desse objetivo. Reformas que tornem o Estado mais eficiente, simplifiquem o nosso sistema tributário, reduzam a burocracia e garantam clareza à atuação de agências reguladoras, livrando-as de interferência indevida, são vértices do desenvolvimento portuário e brasileiro que não devem ser negligenciados.
Apesar do momento conjuntural adverso, que nos faz concentrar esforços em questões emergenciais relacionadas à pandemia do novo coronavírus, não podemos perder o foco nas medidas de médio e longo prazos que recolocarão o Brasil no rumo do crescimento. Há muito trabalho pela frente.
Nilson Mello é advogado e jornalista, pós-graduado em Economia e em Direito Tributário; é sócio diretor da Meta Consultoria e Comunicação e do Ferreira de Mello Advocacia