A crescente movimentação de contêineres nos portos brasileiros, impulsionada pelo avanço das operações marítimas, trouxe consigo desafios operacionais que afetam diretamente os usuários dos serviços portuários. Embora o volume transportado tenha aumentado significativamente, a infraestrutura disponível não acompanhou o mesmo ritmo, o que gerou sobrecarga em pátios, limitações de agendamento e gargalos logísticos com reflexos especialmente sensíveis para exportadores e importadores.
Nesse contexto, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) passou a receber um número crescente de denúncias relativas à cobrança de sobrestadia de contêineres, nas modalidades conhecidas como demurrage e detention. As reclamações giram, em sua maioria, em torno de situações alheias ao controle dos usuários, como reprogramações de escalas ou omissões por parte dos armadores, indisponibilidade de janelas para entrega de cargas nos terminais e dificuldades para devolução de contêineres vazios nos depósitos indicados pelos transportadores.
Com o intuito de responder de forma técnica e institucional a esse cenário, a ANTAQ consolidou novos entendimentos regulatórios destinados a uniformizar a interpretação da Resolução nº 62/2021 e a oferecer maior clareza quanto à legitimidade ou não das cobranças. A análise realizada pela Agência revelou que a finalidade original da sobrestadia — qual seja, incentivar a devolução ágil dos equipamentos — vinha sendo desvirtuada em muitos casos. O instrumento, concebido como estímulo à eficiência, passou a ser aplicado mesmo quando o atraso decorre de falhas imputáveis ao próprio sistema logístico, o que afronta a razoabilidade contratual e o interesse público.
A ANTAQ passou, então, a adotar como critério orientador o chamado “Princípio do Incentivo”, consagrado pela Federal Maritime Commission (FMC) nos Estados Unidos, segundo o qual a sobrestadia apenas se justifica quando a retenção do equipamento decorre de uma decisão ou responsabilidade do próprio usuário, no curso de sua atividade comercial. Em linha com esse princípio, a cobrança torna-se indevida quando a permanência do contêiner além do prazo de livre estadia (free time) é causada por falhas operacionais do transportador, do terminal portuário ou do depósito indicado para devolução.
Dentre os entendimentos agora consolidados, destaca-se que a contagem da sobrestadia deve ser suspensa a partir da primeira tentativa frustrada de entrega ou devolução do equipamento, mesmo que já iniciada, sempre que houver impedimento logístico não atribuível ao usuário. Ademais, eventos de caso fortuito ou força maior que ocorram durante o free time também devem suspender sua contagem. A Agência reconheceu que, em casos de indisponibilidade de depósito que gerem prejuízos extraordinários ao usuário, poderá haver inclusive a instauração de processo sancionador contra os responsáveis. Por outro lado, reafirmou que a retenção de carga pelo armador somente se justifica nas hipóteses de inadimplemento de frete ou de valores relacionados à avaria grossa. Também esclareceu que a recusa de novos embarques por inadimplência do usuário não se aplica a contratos de prestação de serviço já iniciada. Por fim, reiterou que a empresa mandatária de transportador NVOCC estrangeiro está sujeita à regulação da ANTAQ, na qualidade de agente intermediário.
Dois avanços importantes foram introduzidos nesse novo entendimento. O primeiro diz respeito à flexibilização do princípio tradicionalmente invocado nas disputas marítimas — “once on demurrage, always on demurrage” — cuja aplicação, segundo a ANTAQ, deve ser relativizada sempre que a demora decorrer de causas externas à vontade do usuário. Nesses casos, a contagem da sobrestadia deve ser suspensa a partir da primeira tentativa frustrada de devolução do contêiner, retomando-se apenas quando restabelecidas as condições logísticas adequadas para o recebimento.
O segundo avanço consiste na criação de um rito sumário para o tratamento das denúncias, com foco na solução célere e estruturada das controvérsias. A proposta busca fomentar a composição entre as partes, com base em parâmetros já consolidados pela própria Agência. A atuação técnica da ANTAQ, nesses casos, permitirá apontar com clareza as responsabilidades envolvidas, facilitando a identificação de cobranças legítimas e o cancelamento daquelas consideradas abusivas.
Como medida complementar, a ANTAQ determinou o sobrestamento de análises sancionatórias em curso até a efetiva implantação do rito sumário e estabeleceu a necessidade de tentativa prévia de composição antes da análise de pedidos de cautelares. Ao consolidar tais entendimentos e implementar um modelo ágil de resolução de disputas, a Agência contribui para a previsibilidade das relações comerciais, a redução da litigiosidade e o fortalecimento da segurança jurídica nos contratos de transporte marítimo.
Essas mudanças, além de refletirem uma postura regulatória alinhada às melhores práticas internacionais, têm o potencial de beneficiar diretamente os usuários e de elevar o grau de eficiência logística do comércio exterior brasileiro. Trata-se de um passo importante no amadurecimento das relações entre regulador, armadores e usuários, com impactos positivos sobre a competitividade portuária e a racionalidade contratual no setor marítimo.
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Bernardo Mendes Vianna e Frederico Moreira Alcântara de Siqueira são sócios da área Marítima do Vieira Rezende Advogados