Introdução
As indústrias marítima e portuária são consideradas de rede, vez que há muitos prestadores de serviços (armadores, NVOCC, agentes marítimos, freight forwarders, terminais portuários, despachantes aduaneiros, dentre outros), interdependentes e muito próximos nas suas relações operacionais e comerciais.
Muito antes de janeiro de 2013, temos observado o aumento das omissões de portos por navios, ou melhor, dos portos programados em rotas de navios que prestam serviços para usuários brasileiros, prejudicando esse grupo de empresas que dependem do modal marítimo para transportar seus produtos.
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Essa conduta ensejou denúncias pelos exportadores, que não conseguiram embarcar suas cargas, com perda de prazo de entrega, ao site Usuários dos Portos do Rio de Janeiro (www.uprj.com.br) e as matérias Omissões de Portos: A farra em um país sem fiscalização (Partes 1 e 2), de autoria de André de Seixas, publicadas, respectivamente, em 16.10.2013 e 21.10.2013.
As omissões de portos, segundo os exportadores que fizeram um levantamento nos portos do Brasil até setembro de 2013, chegaram a 264 vezes, cerca de 30 omissões por mês. São milhares de contêineres que não puderam embarcar bem como prejuízos e perda da credibilidade dos produtos brasileiros no exterior. Não é por acaso que o Brasil é um dos mais fechados do mundo em termos de comércio exterior.
Isso se dá porque, tout court, não há organização nem comunicação dos prejudicados aos órgãos competentes, acerca dessa prática abusiva, nem punição.
O mesmo ocorre com a sobre-estadia (demurrage) de contêiner acima de valor razoável (que configura enriquecimento ilícito), aumentos de preços e tarifas em percentuais bem acima do IGP-M, cobrança de armazenagem ad valorem (e não por espaço/unidade) e por período (e não por dia, a partir de 48 h), bem como THC2, dentre outras cobranças ilegais.
Como já temos sustentado com base na teoria econômica do setor, essa indústria possibilita condutas oportunistas e preços predatórios, que se agravam quando o Estado não exerce regulação econômica eficaz, como no caso do Brasil. Onde o Estado não regula, não fiscaliza e não pune; o mercado regula. Nesse caso, estamos no pior dos mundos.
Na verdade, a empresa de navegação, ao analisar economicamente que a entrada naquele porto programado dará prejuízo e, a fim de maximizar o lucro, decide 'dar uma rasteira ' no porto programado, prejudicando os usuários com carga naquele porto, que ficam sem ver navios... É o predador em ação.
Segundo o site dos usuários dos portos do Rio de Janeiro (UPRJ), duas empresas de navegação, responderam aos seus clientes que 'se tratou de caso fortuito e força maior, que é considerado imprevisível e inerente à nossa vontade. (...) A comprovação de caso fortuito ou força maior é o comunicado que segue em anexo'. O comunicado supra, segundo a informação, ironicamente, é a única prova da excludente da responsabilidade.
De acordo com a matéria acima (Omissões de Portos (...) - Parte 1:
A verdade é que os exportadores estão desesperados. Existem relatos de empresas que estão com suas mercadorias paradas em terminais há mais de 15 dias, pois o armador contratado omitiu o porto por duas semanas consecutivas. Um deles relatou que está deixando de receber cerca de USD 4.800.000 por não conseguir embarcar os containers. Dois exportadores relataram que, para não ver seus contratos rompidos, precisaram embarcar cerca de 260 toneladas de produtos pelo modal aéreo, gastando mais de R$ 400.000,00 de frete, porque as mercadorias fabricadas por eles fazem parte de linhas de montagens e, se não chegarem a tempo, paralisam as fábricas dos compradores no exterior.
Para justificar tais omissões de porto, segundo a nota, alguns armadores alegam problemas na infraestrutura portuária. Tal argumento justifica essa prática? Acreditamos que não, pois embora a omissão de porto tenha natureza eminentemente comercial, possui implicações administrativas e civis.
Alguns poderiam sustentar, tal como na justificativa acima, que se trata de caso fortuito ou força maior, consideradas excludentes de responsabilidade civil no transporte marítimo, embora haja entendimento jurisprudencial de que tais argumentos não se coadunam com o contrato de transporte marítimo.
Mas aqui não cabe, pois é evidente a quebra de contrato, ou da sua expectativa, pelos armadores ao gerar uma possibilidade de embarque aos clientes que se frustrou. Evidente, portanto, a responsabilidade civil pré-contratual (com base na teoria do point du non retour), contratual ou extracontratual, a depender do caso concreto.
As omissões de portos (itinerary changes), com fundamento em greves, problemas climáticos, dentre outros, não são incomuns em outros países, todavia, há uma grande diferença: o respeito aos usuários e o ressarcimento dos danos.
As empresas de navegação informam tais mudanças aos clientes (passageiro e carga) com antecedência, inclusive indicando o porto/armazém em que embarcará o passageiro ou carga e pagando, caso haja, as despesas para que isso ocorra.
Nesse cenário de caos e ausência de Estado, o que pode ser feito para combater tal prática e recuperar os prejuízos causados aos usuários que contratam de boa fé dos intermediários do armador tais serviços e fazem a sua programação logística contando com aquele navio naquele porto e data? Quais são as responsabilidades administrativa e civil dos transportadores?
Com o objetivo de orientar os usuários, esse artigo tem a intentio, em duas partes, de apresentar os principais aspectos desse instituto, diferenciando-o da arribada, bem como discorrer sobre o que pode/deve ser feito para acabar/reduzir tal prática e exigir a indenização pelos prejuízos causados, se houver plausibilidade. Trata-se de uma singela contribuição ao debate, que ora se inicia.
Para atingir seu escopo, a Parte 1 trata da responsabilidade administrativa e dos aspectos destacados da arribada e da omissão do porto, e quando aquela é justificável (justifiable deviation).
A Parte 2 discorre sobre a responsabilidade civil do transportador, por meio de aspectos jurídicos no direito comparado e brasileiro.
Por fim, na conclusão são feitas algumas sugestões para que tal prática, cuja tendência é aumentar, possa ser regulada no Brasil, em benefício do usuário, sem, contudo, violar a segurança jurídica que os bons prestadores de serviços possuem. Analisa-se, também, a possibilidade que os prejudicados possam ser ressarcidos dos danos causados.
Parte 1. Da responsabilidade administrativa - Arribada e Omissão de Porto
Como visto, embora alguns pretendam confundir, arribada e omissão de porto são institutos distintos. Há muitas especificidades nesse tema, vez que o Direito Marítimo tem suas particularidades e cada caso deve ser analisado individualmente.
Nesse ramo do direito, o desvio de rota ou arribada pode ser definido como ‘an intentional and unreasonable change in the geographical route of the voyage as contracted’.
De acordo com o Black's Law Dictionary: 'deviation is a departure from the terms expressed in a bill of lading or other transportation contract.' (1)
Portanto, é um instituto do Direito Marítimo e sua ocorrência sem justificativa causa dano e possibilita indenização.
Para os Comandantes Wesley Collyer e Marco Collyer:
Deviation – Desvio de rota. Sem a autorização dos interessados na carga, pode resultar em perda do seguro, tornando o transportador responsável por ele. É justificável, sob circunstâncias especiais, como salvamento de vidas ou propriedades (Hague-Visby Rules, art. 4º, § 4º).
Deviation Clause – Cláusula que protege os direitos do armador/fretador, permitindo o desvio de rota do navio em casos como: navegar com ou sem prático (onde a praticagem é opcional), assistir navio em perigo, desviar para salvar vida ou propriedade etc. Exclui a responsabilidade por danos e perdas decorrentes desses eventos e não os considera como infringentes da C/P.
Liberties Clause – Cláusula que estabelece os direitos do navio/armador, dando-lhe liberdade para tomar determinadas atitudes com a finalidade de proteger o navio e/ou a carga, de reter sua entrega, reembarcá-la etc. Dá liberdade também para cumprir determinações governamentais e, assim, considerar cumprido o contrato.(2)
Por sua vez, para o Maritime Dictionary, deviation é:
An intentional departure from the set or agreed course of the voyage. The ship is not permitted to leave this route for any purpose without justification. To protect themselves the shipowners enter a clause in the charterparty called the “deviation clause” which allows them to deviate to save or attempt to save life and/or property at sea and to give the owners the right to deviate for bunkering purpose (by inserting another clause called the “P & I Bunkering Clause”).(3)
A arribada como acidente da navegação, pode ser justificada, ocasião em que será dispensada de IAFN (Inquérito sobre acidentes e fato da navegação), desde que solicitado à autoridade marítima.
Assim, a arribada que caracteriza acidente da navegação é a arribada não justificada e que, por tal motivo, causa danos aos interesses da carga, conforme preceito do art. 742 do Código Comercial, que assim dispõe:
Art. 742 - Todavia, não será justificada a arribada:
l - se a falta de víveres ou de aguada proceder de não haver-se feito a provisão necessária segundo o costume e uso da navegação, ou de haver-se perdido e estragado por má arrumação ou descuido, ou porque o capitão vendesse alguma parte dos mesmos víveres ou aguada;
2 - nascendo a inavegabilidade do navio de mau conserto, de falta de apercebimento ou esquipação, ou de má arrumação da carga;
3 - se o temor de inimigo ou pirata não for fundado em fatos positivos que não deixem dúvida.
Em caso de arribada, em face da imprescritibilidade da sanção, cabe denúncia à Autoridade Marítima para que instaure o IAFN que investigue e apure os fatos e, se for o comprovado que a arribada não é justificada, o Tribunal Marítimo poderá determinar a aplicação de multa juntamente com um das seguintes sanções: suspensão de pessoal marítimo; interdição para o exercício de determinada função; cancelamento da matrícula profissional e proibição ou suspensão do tráfego da embarcação, no caso de embarcação estrangeira, além de outras sanções que constam no legislação que regula o tema.
Na ocorrência de omissão de porto, além da possibilidade da responsabilidade civil, cabe denúncia à Antaq, competente para apurar as infrações de empresas de navegação marítimas nacionais e estrangeiras que cometam danos aos usuários desses serviços, inclusive com fundamento na ilicitude do fato com fundamento na deviation clause, e exigir a indenização como adiante será mostrado.
A alteração de rota, tal como menciona o Código Comercial de 1850, deve ser tomada após deliberação conjunta dos oficiais a bordo, tal como exige o art. 509, in verbis:
Art. 509 — Nenhuma desculpa poderá desonerar o capitão que alterar a derrota que era obrigado a seguir, ou que praticar algum ato extraordinário de que possa provir dano ao navio ou à carga, sem ter precedido deliberação tomada em junta composta de todos os oficiais da embarcação, e na presença dos interessados do navio ou na carga, se algum se achar a bordo. Em tais deliberações, e em todas as mais que for obrigado a tomar com acordo dos oficiais do navio, o capitão tem voto de qualidade, e até mesmo poderá obrar contra o vencido, debaixo de sua responsabilidade pessoal, sempre que o julgar conveniente.
Um aspecto relevante a destacar é que as empresas de navegação estrangeiras que operam no Brasil, com base numa interpretação da Antaq da qual divergirmos, vez que não protege o interesse nacional, em relação ao art. 178 da Constituição Federal, inacreditavelmente, atuam sem outorga de autorização, ao contrário das empresas brasileiras de navegação. Ou seja, a Antaq não sabe quem são, o que fazem, quais rotas e o que cobram dos usuários brasileiros.
Para resolver esse imbróglio, é preciso que a Antaq passe a autorizar e fiscalizar as empresas estrangeiras e, no caso de dano aos usuários, inclusive cassar tal licença. Enfim, é preciso registro e acompanhamento dos preços e tarifas de tudo que se cobra, tal como nos EUA (ver www.fmc.gov). A inexistência de tal autorização não impede que a Antaq fiscalize e aplique sanções em caso de conduta que prejudique o interesse nacional.
A rigor, todas as omissões de portos deveriam ser comunicadas à Antaq e às Autoridades Marítima e Portuária, acompanhada da motivação em termo no Diário de Navegação e prova documental. É preciso, enfim, uma fiscalização pela Antaq nas embarcações que omitiram portos brasileiros nos últimos cinco anos.
Parte 2. Da responsabilidade civil: A arribada no Direito Comparado e brasileiro e a omissão de porto
Os danos causados aos usuários decorrem da relação contratual de transporte marítimo (que pode ser de consumo) como obrigação de resultado e de entregar a carga no porto de destino ou de receber (embarcar) a mesma no porto de embarque acordado. Aqui, portanto, se trata da responsabilidade civil contratual e objetiva.
A título ilustrativo, cabe mencionar que as cortes inglesas têm limitado o conceito de arribada ao desvio geográfico, enquanto, as cortes norte-americanas ampliaram o uso para outras situações que materialmente aumentam o risco da carga tal como aquela transportada no convés sem autorização.(4) Reitera-se que as denúncias acima decorrem de omissão de porto e não de arribada.
No direito anglo-saxônico as arribadas justificáveis podem ocorrer para (a) salvar a vida humana ou se comunicar com uma embarcação em perigos nos casos em que a vida humana corra risco; (b) para evitar perigo à carga ou ao navio.
Nesse cenário, o único dispositivo das Regras de Haia e Haia-Visby (não ratificadas pelo Brasil) que tratam do tema é o Art.IV, 4, da seguinte forma:
‘Any deviation in saving or attempting to save life or property at sea, or any reasonable deviation shall not be deemed to be an infringement or breach of these Rules or of the contract of carriage, and the carrier shall not be liable for any loss or damage resulting therefrom.’
Assim, de acordo com as Regras de Haia (1924) e Haia-Visby (1968), que embora constem na maioria dos conhecimentos de embarque, não foram ratificados pelo Brasil, há duas possibilidades de justificar a arribada ‘deviation in saving or attempting to save [...] property at sea’, e ‘any reasonable deviation’.
Outro problema surge quando, de modo frequente, o contrato de afretamento padrão incorpora expressamente as Regras acima, especialmente porque esse dois regimes prescrevem proteção muito pequena ao dono da carga e que não possibilita maior redução por acordo entre as partes.
Dessa forma, em que medida tais cláusulas de liberdade (liberty and deviation clause) reguladas pela exigência do Art IV, regra 4, de que uma arribada, que não seja para salvar vida ou propriedade, deve ser razoável?
As cortes norte-americanas possuem uma interpretação rígida no sentido de que tais cláusulas (incorporadas ao contrato de subafretamento e ao conhecimento de embarque) só possuem eficácia se a arribada for razoável. Mas o que é razoável?
Todos os métodos de controle do direito anglo-saxônico se inclinam para a exigência de razoabilidade, de modo que a interpretação é sempre contra proferentem, de modo que um competente juiz ou árbitro terá pouca dificuldade para não aceitar uma arribada cause dano, pois na prática equivale a uma cláusula de exoneração.
Sobre o tema, Greer LJ na Corte de Apelação, assim decidiu: ‘I think the words [reasonable deviation] mean a deviation whether in the interests of the ship or the cargo-owner or both, which no reasonably minded cargo-owner would raise any objection to.’ (5)
Ademais, apesar das tentativas para esclarecer o conceito de arribada razoável, no Reino Unido há uma interpretação limitada do termo ‘reasonable deviation’, de modo que há poucos casos em que o conceito foi usado com sucesso para o transportador.
Nos EUA, onde as cortes são mais rigorosas na defesa do dono da carga (shipper), especialmente porque a regulação setorial é eficiente (www.fmc.gov), ao contrário do Brasil, a versão do art. IV, regra 4, das Regras de Haia inclui o dispostivo que ‘if the deviation is for the purpose of loading or unloading cargo or passengers, it shall, prima facie, be regarded as unreasonable’.
Nessa linha, a agência reguladora de transporte marítimo nos EUA, a United States Shipping Board, (antecessora da Federal Maritime Commission, que exerce papel semelhante à Antaq),(6) em processo na defesa do usuário há quase um século, foi bem sucedida no caso adiante mencionado.
Uma cláusula de arribada num contrato de afretamento do Rio da Prata para Málaga e Sevilha deu liberdade para ir a qualquer porto ou portos em qualquer ordem com o objetivo de carregar carvão combustível ou outros suprimentos.
O óleo foi embarcado no Rio de Janeiro e, após descarregar em Málaga, o navio tinha combustível suficiente para viajar a Sevilha, mas isso não ocorreu, de modo que o navio teve que se desviar para Lisboa.
A decisão não acolheu a cláusula acima, pois a mesma deveria ser aplicada somente aos portos programados na rota, e os proprietários do navio não compraram óleo combustível suficiente para a viagem. Dessa maneira 'the deviation could not be said to be reasonably necessary in a business sense'. (7)
Pesquisa realizada nos tribunais brasileiros, contudo, não encontrou precedente sobre o tema, exceto processo no Tribunal de Justiça do Paraná envolvendo cláusula de alteração de itinerário, em transporte marítimo de passageiro, adiante mencionado. Trata-se de julgado relevante, especialmente porque, na verdade, ocorreu omissão de porto e não arribada. Vejamos:
TJ-PR. 1. 533719-5 (Acórdão). Relator: Arquelau Araujo Ribas. Processo: 533719-5. Data Publicação: 17/12/2009
Órgão Julgador: 10ª Câmara Cível. Data Julgamento: 26/11/2009.
EMENTA. Apelação cível. Responsabilidade civil. Danos morais. Cruzeiro Marítimo. Mudança de itinerário. Alteração de duas cidades incluídas no pacote turístico. Punta Del Este por Montevidéu. Congestionamento do Porto. Irrelevância. Florianópolis por Itajaí. Venda de pacote turístico com itinerário previamente estipulado. Previsão contratual. Cláusula Abusiva. Falha na prestação de serviço. Sentença mantida. Recurso desprovido.
[...] 3. Para que se configure dever de indenizar, é necessária uma conduta ilícita praticada por um agente, que cause dano de ordem patrimonial ou extrapatrimonial a outrem, amarrada por um nexo de causalidade.
3.1. O cerne da questão a ser escrutinada é se a alteração de dois pontos do itinerário de viagem marcado, é conduta que caracteriza falha na prestação do serviço e, se assim considerada, foi suficiente para causar abalo na psique dos autores.
3.2. De antemão é de se destacar que existe previsão expressa na contrato celebrado entre as partes, cláusula que autoriza a ALTERAÇÃO DE ITINERÁRIO (fls. 87) '[....] em caso de greves operárias ou patronais, bloqueios, desordem pública, impedimentos climáticos ou dificuldades mecânica, ou por qualquer outra razão [...]', prevendo a possibilidade da companhia marítima, '[...] sem notificação prévia, cancelar, adiantar, atrasar ou evitar qualquer porto de escala por outro, desvio de rota ou substituir navios [...]' (fls. 87).
3.3. Ocorre que, conforme decidiu o magistrado de primeiro grau, a referida cláusula, onde prevê alteração de itinerário 'por qualquer outra razão', é abusiva na medida em que causa insegurança ao consumidor, permitindo que as tais mudanças se dêem ao alvedrio do requerido, por qualquer motivo [...]
De qualquer forma, como o Brasil não ratificou qualquer convenção de limitação da responsabilidade no transporte de mercadoria e de pessoas (8), há plausibilidade, após análise de cada caso, para aplicar legislação brasileira para exigir a reparação do dano, devendo-se atentar para o prazo prescricional para ajuizamento da ação, que poderá ser de três anos (em caso de relação civil) ou de cinco anos (relação consumerista).
Conclusão: o que fazer?
Diante de tais argumentos, é cristalina a existência de instrumentos legais a serviço dos usuários, que se organizam através de shippers's associations (Usuport Ba, RJ e SC) para combater tais práticas abusivas, inclusive, com o apoio do Ministério Público Federal.
Não há faculdade da administração pública para agir, quando houver denúncia de usuário em relação a serviço inadequado. Esse tem direito de exigir e administração deve adotar todas as medidas para regularizar o serviço, sob pena de cassação da licença da empresa, além de outras sanções e multa.
Atuando a favor dos interesses dos seus usuários, juntos ou separadamente, tais atores devem proceder às medidas administrativas e judiciais competentes contra os responsáveis, inclusive representantes de tais prestadores de serviços no país.
Essa estratégia pode/deve ocorrer em cooperação com os usuários/prejudicados, especialmente suas associações, Antaq (que deve regular essa prática, dentre outras consideradas abusivas acima mencionadas), Conaportos e Autoridade Marítima para que, em cada caso concreto, possam identificar os abusos já denunciados, e separar os bons dos maus prestadores de serviços, punindo esses.
O Poder Judiciário também precisa se capacitar melhor para julgar tais demandas, assim como a Antaq e arbitragem poderia atuar em tais casos. Não acreditamos, contudo, que a lei somente mudará algo, é preciso ação.
Através da conscientização e organização dos usuários para defesa dos seus interesses em tal situação, poderemos iniciar um círculo virtuoso na regulação do setor, com redução de custos e aumento da competitividade dos produtos brasileiros.
À luz das boas práticas do exterior, poder-se-ia publicar e divulgar o nome das embarcações e empresas descumpridoras da lei nas páginas eletrônicas de tais órgãos, aplicar sanções e multas aos responsáveis e cobrar indenização pelos danos sofridos.
Ressalte-se que se deve ter cautela no ajuizamento de tais ações, que devem ser antecedidas de análise das particularidades decorrentes de cada omissão de porto.
Acredita-se, assim, que os órgãos de Estado e usuários poderão efetivamente contribuir para reduzir o custo Brasil no setor e, dessa forma, separar o joio do trigo, ou seja, os predadores dos bons prestadores de serviços.
(?) Agradeço os comentários feitos a esse artigo bem como envio das definições de deviation, deviation clause e liberty clause do seu Dicionário de Comércio Marítimo.(5a. edição, no prelo), pelo advogado e Comte. (CLC) Wesley O. Collyer, Ex-Inspetor Geral da Fronape (atual Transpetro).
Referências:
(1) GARNER, Bryan A. (Ed.) Black´s Law Dictionary. Ninth Edition. Saint Paul: West, 2009, p. 516.
(2) COLLYER, Marco Antônio; COLLYER, Wesley Oliveira. Dicionário de Comércio Marítimo. Termos e Abreviaturas usados no comércio marítimo internacional. 5a. ed. Rio de Janeiro: 2013 (no prelo).
(3)Maritime Dictionary. Deviation. Disponível em:< http://maritimedictionary.org/ASP/MarineDictionary.asp?WORD=deviation&Submit2=Search+Word>. Acesso em 21 out. 2013.
(4) Jones v Flying Clipper (1954) 116 Fed Supp 386.
(5) Greer LJ in Foscolo Mango v Stag Line [1931] 2 KB 48, p. 69.
(6) Sobre o tema, ver nosso relatório final de pesquisa de Pós-Doutoramento, em 2007/2008, no Center for Business and Government da Harvard University: CASTRO JUNIOR, Osvaldo Agripino de. Direito Regulatório e Inovação nos Transportes e Portos nos Estados Unidos e Brasil. Florianópolis: Conceito, 2009, 410 p.
(7) United States Shipping Board x Bunge y Born (1925) 3I Com. Cas. 118.
(8) Sobre o tema, ver: CASTRO JUNIOR, Osvaldo Agripino de; MARTÍNEZ GUTIÉRREZ, Norman Augusto. Limitação da Responsabilidade Civil no Transporte Marítimo brasileiro. 2014, No prelo.
*Advogado, Oficial de Náutica da Marinha Mercante (Ciaga, 1983), Pós-Doutor em Regulação de Transportes e Portos - Harvard University - www.jharoldoagripino.com.br-agripino@jharoldoagripino.com.br