Há mais de uma semana, o mundo assiste ao navio Diamond Princess em quarentena no porto japonês de Yokohama, com seus 3.600 passageiros e tripulantes presos e o número de pessoas infectadas pelo coronavírus chegando a pelo menos 175.
Um segundo navio singra o Mar do Sul da China como uma versão moderna do Holandês Voador, recusado em cinco portos por temores de que uma pessoa a bordo esteja infectada.
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Policiais com roupas de proteção entram no navio Diamond Princess, que está em quarentena, ancorado em porto no Japão, para transferir passageiros com coronavírus para hospital
Até a milhares de milhas náuticas do surto, em Bayonne, Nova Jersey (EUA), quatro passageiros chineses em um navio de cruzeiro foram postos num breve período de quarentena depois que autoridades de saúde verificaram mais de duas dúzias de passageiros. Afinal, eles não tinham o coronavírus.
As linhas de cruzeiro já enfrentaram outras crises, desde as batalhas em curso com o norovírus, que pode atacar um número enorme de passageiros com problemas gastrointestinais, ao naufrágio em 2012 do Costa Concordia, cujo capitão o jogou contra a costa italiana, matando 32 pessoas. Mas o COVID-19, como foi batizado o vírus, poderá ser o maior desafio até hoje. Sua disseminação pelo mundo todo ainda é desconhecida.
"Quanto mais navios como o Diamond Princess saírem no noticiário, mais pessoas que nunca fizeram um cruzeiro passam a vê-lo como férias arriscadas", disse James Hardiman, diretor-gerente de pesquisa de investimentos na Wedbush Securities, que acompanha a indústria.
As companhias de cruzeiros relutam em divulgar dados sobre se houve um impacto nas reservas nessa indústria global de US$ 45,6 bilhões nas semanas desde o início do surto na cidade chinesa de Wuhan. Mas alguns agentes de viagens dizem que elas caíram de 10% a 15%.
As empresas, incluindo as maiores linhas como Norwegian Cruise Lines e Carnival Corp., que inclui os navios Princess, ou não quiseram comentar ou divulgaram comunicados reiterando que sua prioridade é a segurança dos passageiros. Cada companhia também enumerou as precauções que está tomando nesse sentido: como geralmente elas têm milhares de pessoas em um pequeno espaço durante um período prolongado, os navios de cruzeiro são conhecidos como incubadores de doenças.
A Royal Caribbean deu um vislumbre da situação em um comunicado em 4 de fevereiro, mas só chegou a dizer que "o coronavírus de Wuhan e os esforços para contê-lo deverão afetar negativamente nossos resultados". A empresa, cujo navio ficou brevemente detido em Bayonne, anunciou que ninguém com passaporte chinês poderá embarcar em um de seus navios, decisão mais tarde cancelada devido à reação negativa.
Mas Erika Richter, diretora sênior de comunicações da Sociedade Americana de Agentes de Viagem, um grupo setorial, disse que a demanda por cruzeiros, que estava em trajetória ascendente antes da notícia do surto virótico, diminuiu de 10% a 15%, segundo alguns agentes.
Não é de surpreender que os cruzeiros na Ásia e no Pacífico foram mais duramente atingidos. Alex Sharpe, presidente e executivo-chefe da Signature Travel Network, consórcio de 7.000 agentes de viagens, disse que "a nova demanda por esses cruzeiros está muito baixa atualmente" e que as viagens na primavera "não deverão vender muito em nosso mercado".
"Se a indústria não agir para proteger isso, poderá afetar a confiança do consumidor na China em relação a cruzeiros durante muito tempo", disse Hardiman, da Wedbush Securities.
A China tem sido um dos mercados de maior crescimento na indústria de turismo nos últimos anos, e viagens na região Ásia-Pacífico formam cerca de 10% do setor, segundo a Associação Internacional de Linhas de Cruzeiro, outro grupo setorial. Entre 8% e 9% dos passageiros nas linhas de cruzeiro representadas pelo grupo são da China, Macao ou Hong Kong, e o número de navios mobilizado na Ásia cresceu 53% entre 2013 e 2017.
Um número crescente de portos em todo o Pacífico, de Busan, na Coreia do Sul, aos portos de Lifou, Mare e Isle of Pines, na Nova Caledônia, estão proibindo navios de cruzeiro. Hong Kong está fechado desde 6 de fevereiro.
Os passageiros disseram que em vez de tentar acomodá-los as companhias de cruzeiro falharam em comunicação e ajuda. Maranda Priem, 24, de Washington, D.C.., e sua mãe de 53 anos, de Minnesota, deveriam embarcar no navio Norwegian Jade, para 2.200 passageiros e operado pela Norwegian Cruise Lines, com partida de Hong Kong em 17 de fevereiro, para um cruzeiro com escalas em Cingapura, Vietnã e Tailândia.
Conforme aumentaram suas preocupações com o coronavírus, Priem enviou vários e-mails e fez telefonemas à empresa perguntando se poderia mudar para outro cruzeiro ou receber reembolso ou crédito. Seus pedidos foram negados. Em um e-mail de 4 de fevereiro, Roxane Sanford, coordenadora de relações com hóspedes da companhia, lembrou a Priem que "a China continental não inclui Hong Kong, Macao ou Taiwan" e que "lamentavelmente, não podemos proceder com o cancelamento e reembolso".
Quando o porto de Hong Kong foi fechado, a companhia mudou a escala para Cingapura, o que alterou o itinerário e exigiu que Priem e outros passageiros modificassem suas reservas de voos e tivessem custos extras. Na quarta-feira (12), ela decidiu cancelar, sem saber se receberia os cerca de US$ 1.700 que pagou pelo cruzeiro.
"É uma espécie de pesadelo lidar com a Norwegian", disse ela. "A companhia não nos diz se vai reembolsar, e não foi nada prestativa."
A Norwegian Cruise Lines não respondeu a pedidos de comentários.
Quando o itinerário de um navio é alterado, "os passageiros têm pouco recurso, na prática", disse Jim Walker, advogado marítimo que representa pessoas que processam empresas de cruzeiro. "As companhias podem modificar à vontade seus itinerários, e se você não tiver seguro está emperrado, e o problema do seguro é que muitas vezes tem exceções em relação a epidemias e coisas do tipo."
Walker disse que recebeu um volume "significativamente maior" de ligações de viajantes que procuram orientação sobre como lidar com as companhias de cruzeiros que mudam itinerários sem oferecer reembolso ou a possibilidade de remarcar a viagem.
Os cruzeiros geralmente são caros —em média, nove dias de navegação na Ásia chegam a aproximadamente US$ 1.800, segundo agentes— e ficam lotados muito tempo antes. Angela Jones, 56, de Canton, na Geórgia, passageira do MS Westerdam, navio da Holland America que ficou no limbo procurando um porto que o aceitasse, marcou sua viagem há um ano e meio.
Quando surgiu a notícia do coronavírus, disse sua filha, Jordan Jones Dorman, na terça-feira, "ela pensou em cancelar, mas a companhia respondeu diversas vezes que não faria reembolso. Ela esteve poupando para fazer essa viagem. Por que o cruzeiro foi mantido?"
Sihanoukville, no Camboja, finalmente concordou em deixar o navio atracar na quarta. A Holland America Line disse que arranjaria e pagaria para todos os passageiros voarem para casa, além de dar o reembolso total do cruzeiro.
Hardiman, da Wedbush Securities, estimou que custará à Royal Caribbean cerca de US$ 4 milhões cancelar um cruzeiro recente de quatro dias, número que pode variar dependendo do tamanho do navio e outros fatores.
"As companhias de cruzeiros nunca viram isso antes, e simplesmente não sabem o que fazer", disse Ross Klein, sociólogo na Universidade Memorial de Newfoundland que estuda a indústria de cruzeiros. "Para as linhas de cruzeiros e a indústria, muitas dessas decisões se baseiam na economia. Eles estão perguntando a si mesmos: 'Como vamos sair disso gastando a menor quantia de dinheiro e perdendo a menor quantia?"
Fonte: Folha SP