Não faz tanto tempo que a cidade de Santa Vitória do Palmar, no sul do Estado, era iluminada pela metade. Luz elétrica? Da calçada do Teatro Independência em direção à zona norte, só de manhã; da Praça Central em direção à zona sul, só à tarde. A década era 1950 – e ninguém imaginava que os ventos que estremeciam as janelas iriam se transformar, algumas décadas depois, em fonte de energia não só para os quase 40 mil habitantes da cidade, mas para todo o Brasil.
O Complexo Eólico Geribatu, em implementação pela Eletrosul, representa investimento de R$ 1,5 bilhão, cifra inédita na economia da cidade cujo comércio ainda conserva ares do século 19. O projeto promete desenvolvimento, suscita dúvidas sobre o futuro do município e, à medida que vão sendo erguidos os cata-ventos próximos ao Balneário Hermenegildo, atrai olhares de quem transita pela BR-471.
É tanta novidade que a própria prefeitura já tratou de anunciar no pórtico de entrada: "Os ventos daqui vão gerar energia para o Brasil". Sentem o impacto das obras, principalmente, o comércio e o setor de imóveis. Corretor e dono de uma imobiliária há mais de 30 anos, Vulmar Dinegri diz que os preços dos aluguéis mais que dobraram em relação ao ano passado. Um apartamento de um quarto que antes era locado por R$ 400 ao mês, hoje pode chegar a R$ 950.
– É pouca oferta de imóveis pra muita gente – justifica.
Nas lojas, o movimento aumentou. Bruna Bueno, gerente de uma padaria no centro da cidade, conta que nunca vendeu tanto prato-feito. Do outro lado da rua, em uma loja de confecções, as proprietárias Naifa e Samira Hasan e a atendente Valesca Vernetti sabem até o dia de pagamento dos funcionários da obra.
– Eles recebem por quinzena. A cada dia 15 e a cada dia 30, eles vêm aqui e fazem a festa – conta Valesca.
Mas se o comércio celebra o acréscimo de quase mil pessoas na população urbana (estimativa da prefeitura), a qualidade de vida dos mergulhões – apelido carinhoso dos vitorienses –, não tem mudado, dizem as lojistas. Os serviços de saúde e transporte ainda são, na opinião delas, os gargalos de Santa Vitória do Palmar. Diretor administrativo da Santa Casa de Misericórdia, Édio Acosta observou um leve aumento no número de atendimentos no hospital desde julho, quando os trabalhadores dos parques eólicos começaram a se instalar na cidade. Nada significativo, afirma:
– Não aumentamos o número de leitos nem fizemos processo seletivo para contratação de profissionais.
Como cidadão, entende que o município não estava preparado para receber um empreendimento do porte do Complexo Geribatu.
– Tudo encareceu. Todos os serviços. A gente espera que, quando acabe, pelo menos venha a energia.
E virá, garante o diretor da Eletrosul, Ronaldo Custódio. Os parques estão conectados a uma subestação coletora no meio do parque, ligada à primeira subestação Santa Vitória do Palmar, que dará conta de abastecer a região – consumidora de, no máximo, 50 megawatts (MW) dos 258 MW de potência do Complexo.
– Primeiro, vamos atender ao consumo local. O excedente vai para o restante do Estado e do país.
Números do empreendimento
O Complexo Geribatu soma 258 megawatts de potência elétrica
... distribuídos em uma área de 4 mil hectares
... onde serão instalados 129 aerogeradores
....cada um com altura de 78 metros
... cada pá dos cata-ventos mede 47 metros
... tudo isso empregando 600 funcionários
Um acerto com décadas de atraso
– Os melhores ventos do mundo ficam aqui – diz o historiador e professor universitário aposentado Homero Vasques Rodrigues, 77 anos.
É por isso que ele acredita que Santa Vitória, depois da construção e operacionalização do Complexo Eólico Geribatu, jamais será a mesma. Afirma com a certeza de quem estudou a evolução da energia elétrica no município desde o tempo em que as lamparinas eram abastecidas com óleo de baleia, no fim do século 19. O primeiro motor elétrico foi adquirido em 1908 – tão precário que as lâmpadas só podiam ficar acesas das 15h às 23h30min. Mas, segundo Rodrigues, eram motores pouco eficientes e, além disso, muito caros. Vinham da Alemanha. Podiam abastecer a cidade toda apenas entre as 21h e as 23h30min.
– Antes de ligar a energia, a usina fazia soar uma buzina para avisar a população. Assim, quem estava mexendo nos fios era alertado a parar.
Outras curiosidades aparecem nos estudos de Rodrigues:
– Em 1960, a energia seguia precária. Quando tinha baile, a prefeitura levava ao local um gerador e deixava a luz ligada a noite inteira, para que as pessoas pudessem dançar.
Não demorou muito para que Santa Vitória do Palmar triplicasse a oferta de energia. Foi em 1962, quando o governador Leonel Brizola importou dois motores suecos. Porém, em pouco mais de 20 anos a eletricidade – que era considerada farta – dava sinais de que não daria conta do desenvolvimento da região em decorrência da explosão da indústria do arroz: a população havia aumentado de 20 mil para 45 mil habitantes.
Amazônia ficou com usina local
A conclusão é que as condições de abastecimento de eletricidade em Santa Vitória do Palmar nunca foram suficientemente boas. Foi só perto da virada do século, em 2000, que a região finalmente foi incluída no Sistema Interligado Nacional, como o restante do Estado, por meio da construção de uma linha de transmissão e de duas novas subestações.
Na época, como uma espécie de símbolo do isolamento que ainda marcava a cidade, foi transferida para a Amazônia a usina – na verdade, um pouco mais do que um gerador – alimentada a óleo combustível que garantia o fornecimento de energia. Hoje, relatam os moradores, as quedas de luz podem até ser frequentes, mas para a situação normalizar, não demora mais de duas horas. Porém, é agora, conforme o historiador, que a cidade está de fato esperançosa.
– A expectativa é grande. As estradas devem melhorar, os serviços também. A gente só espera que, ao cair nas mãos da gestão pública, se saiba administrar os investimentos em benefício da população.
Principal dúvida é se obra vai deixar legado
Dificuldades com falta de infraestrutura e oportunidades em Santa Vitória do Palmar são um consenso.
– Aqui, as pessoas têm ideia de que, para evoluir, é preciso sair da cidade. Com os parques eólicos, há migração de mão de obra, gente buscando emprego. Os supermercados vendem mais, o dinheiro circula. O município está bombando – diz Ronaldo Custódio, diretor da Eletrosul.
Samira Hasan, da loja de confecções, está otimista com a chance para cidade onde nasceu, mas receia que, depois de concluída a obra – o prazo da Eletrosul é agosto –, reste pouco ou nada. Custódio contrapõe:
– Quando o parque entrar em operação, muitos funcionários voltam para suas cidades ou vão para outra obra. Outros ficam, pois há demandam serviços de limpeza, vigilância e manutenção. Esses, se têm família, podem matricular os filhos nas escolas, contratar domésticas. Mas independente de qualquer coisa, a energia começa a ser gerada e, com isso, a receita do município se eleva.
Esse benefício vem com o índice de retorno do ICMS, que terá aumento de 20% a 30% quando passar a contar com o volume de energia vendida, a partir de 2016. É um momento de grandes mudanças, avalia o prefeito Eduardo Morrone. Boas e ruins. Há geração de empregos – ainda que dos 600 funcionários diretos do Complexo Geribatu menos de 200 sejam locais, conforme dados da Eletrosul – e luta para adequar a cidade à nova condição urbana. Trânsito de carga pesada, por exemplo, não tem vez no centro.
Morrone afirma que está negociando, também, a permanência de uma ambulância do Samu. Além disso, sonha com um futuro em que a cidade, valorizada, receba investimentos grandes para qualificar o empreendedor da agropecuária e as lavouras de arroz, tradição da economia local. A obra até sanou um descontentamento do comércio com a prefeitura, quando, no ano passado, o lado direito do estacionamento na Rua Barão do Rio Branco, a principal da cidade, deu lugar a uma ciclofaixa.
– Reclamaram de queda nas vendas, mas o giro proveniente das obras dos parques eólicos já compensou – afirma o prefeito.
Com Chuí, América Latina terá um gigante
A pouco mais de 20 quilômetros de Santa Vitória do Palmar está Chuí, onde a população pode, literalmente, colocar um pé no Brasil, outro no Uruguai. O município de fronteira deve receber, ainda neste início de ano, um investimento de R$ 800 milhões em outro empreendimento eólico com capacidade de 144 megawatts, distribuído em sete parques.
A fase atual é de espera pela licença da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) – o que deve ocorrer, segundo a Eletrosul, nas próximas semanas. Em seguida, informa a Eletrosul, a obra começa. Somados, os parques do Chuí e Geribatu, em Santa Vitória do Palmar – que já têm projeto de ampliação, com a implantação de mais 11 parques (154,7 megawatts) – cobiçam um título imponente: o de maior complexo de geração eólica da América Latina, com um total de 573,7 megawatts.
Fonte: ZERO HORA/Luísa Martins
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