Os números de 2020 já são extraordinários: PIB nominal, US$ 15,9 trilhões; exportações globais, US$ 2,5 trilhões; importações, US$ 2,1 trilhões. Os investimentos externos somaram US$ 2,2 trilhões e os vindos do exterior, US$ 1,8 trilhão. Nas últimas décadas, a China também tirou 800 milhões de pessoas da linha da pobreza, mandou astronautas para a sua estação espacial e aterrissou um veículo de exploração em Marte. Mas o gigante asiático quer mais. Se o projeto do presidente chinês Xi Jinping vingar e trouxer o esperado crescimento entre 6% e 7% ao ano, em 2035 o PIB chinês terá dobrado e, bem antes disso, em 2028, o país terá ultrapassado os Estados Unidos como maior economia do mundo.
Há barreiras gigantes a serem vencidas, como o ambiente de hostilidade nas relações com vários países, especialmente os Estados Unidos, mas a capacidade do país de lidar com pandemia, vacinar a população com sua própria vacina e ainda voltar a crescer, enquanto a economia da maioria dos países encolhia, tem levado o Ocidente a enxergar a China menos pelo seu complexo lado político e mais como parceiro imprescindível de negócios.
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É o caso do Brasil, segundo instituições que acompanham de perto as relações entre as duas nações. Apesar do tratamento hostil que o atual governo tem dispensado à China, o Brasil exibe hoje os números mais impactantes desde o início da parceria entre os dois países há 47 anos, graças, em grande medida, à complementaridade existente entre ambos, notadamente no agronegócio, na área de minérios e na de petróleo.
Maior parceiro comercial do país, a China é destino de 32,4% das exportações brasileiras e origem de 21,4% das compras internacionais do Brasil. O comércio bilateral, que no ano passado superou a marca de US$ 100 bilhões – quase um terço da corrente comercial total brasileira de 2020 –, já alcançou no primeiro semestre de 2021 US$ 68,2 bilhões, uma alta de 33% em relação ao mesmo período do ano passado, e contribuiu com dois terços do superávit comercial brasileiro no período.
Os dados indicam que o comércio Brasil-China, que era de US 1 bilhão no início dos anos 2000, movimenta agora esse valor a cada 60 horas, destaca Marcos Troyjo, presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, na sigla em inglês), o banco dos Brics. “A cada dois dias e meio o comércio Brasil-China vale o que valia 20 anos atrás”, calcula. Nas últimas duas décadas, segundo o embaixador Luiz Augusto Castro Neves, presidente do Conselho Empresarial Brasil-China (CBEC), o país representava cerca de 2% das exportações brasileiras e não aparecia entre os dez principais destinos de vendas ao exterior. Em 2009, ultrapassou os Estados Unidos e desde então está na primeira posição. “Só na última década o saldo comercial com a China chegou a US$ 170 bilhões, quase metade do saldo comercial total do Brasil”, ressalta.
Protagonista na constituição das reservas internacionais e na estabilidade do setor externo brasileiro, em termos absolutos a China importa apenas 4% do Brasil. Parece pouco, mas o embaixador do Brasil na China, Paulo Estivallet de Mesquita, lembra que em 2020 o Brasil forneceu 22% dos produtos agrícolas importados pela China. “Fomos o principal fornecedor chinês de soja, carne bovina e de frango, celulose e açúcar; a segunda maior fonte de minério de ferro e a quarta fonte de petróleo, produtos indispensáveis para o desenvolvimento econômico chinês”, afirma. Neste ritmo, se em dez anos a China tiver importações acumuladas de US$ 25 trilhões e o Brasil mantiver inercialmente sua participação nas compras chinesas, o país exportará US$ 100 bilhões por ano para a China – US$ 1 trilhão em uma década, projeta Troyjo.
Do lado dos investimentos, a proporção é parecida. De acordo com dados do China Global Investment Tracker (CGIT), dos US$ 1,27 trilhão de investimentos feitos pela China no mundo entre 2005 e 2020, US$ 58,1 bilhões (4,6%) tiveram como destino o Brasil. Também não é pouco, levando em conta que o país tem sido destino de 47% das inversões chinesas na América do Sul, conforme aponta o relatório “Investimentos chineses no Brasil: histórico, tendências e desafios globais (2007-2020)”, do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC). O estudo mostra que entre 2007 e 2020 a China se consolidou como um dos principais investidores estrangeiros no Brasil, com estoque de US$ 66,1 bilhões investidos em 176 empreendimentos. Houve ainda 64 projetos não concretizados, com valor estimado de US$ 44,5 bilhões.
De acordo com Túlio Cariello, diretor de conteúdo e pesquisa do CEBC e autor do relatório, houve nesse período mudanças no perfil de empreendimentos que atraíram o interesse das empresas chinesas e oscilações no valor investido, em razão das políticas domésticas adotadas por Pequim ou de turbulências no cenário internacional. “O fluxo dos investimentos no período foi irregular, com um pico de US$ 13 bilhões em 2010, ano que considero como o de descoberta do Brasil pelas empresas chinesas”, diz ele. Em 2019, houve outro crescimento, de 117%, mas em 2020, com a pandemia e o esfriamento dos fluxos de investimentos internacionais, os aportes da China no Brasil caíram 74%, para US$ 1,9 bilhão. Dados da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad, na sigla em inglês), indicam que no ano passado os investimentos globais caíram 35% (61,5% só para o Brasil).
Segundo o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, apesar dos impactos negativos da pandemia, vários grandes projetos bilaterais de investimento em energia e infraestrutura estão em execução, “o que ilustra a forte resiliência das relações entre os dois países”. São projetos como o da State Grid, que venceu o leilão da empresa gaúcha CEEE em julho, depois da construção de duas linhas de ultra-alta tensão que transmitem a eletricidade gerada pela hidrelétrica de Belo Monte. Ou o da CTG Brasil, concessionária das usinas hidrelétricas de Jupiá e Ilha Solteira. Um consórcio formado por empresas chinesas também investe na construção da ponte marítima Salvador-Itaparica, na Bahia.
“Uma tendência que vale a pena salientar é que cada vez mais empresas chinesas estão investindo em projetos de energia limpa, como fotovoltaicos e eólicos, dando um positivo impulso ao desenvolvimento verde da economia brasileira. Em 2019, a CGN investiu mais de R$ 2,6 bilhões na aquisição do projeto Gamma de nova energia, tornando-se a quinta maior geradora de energia limpa do Brasil.” Empresas chinesas que atuam no agronegócio brasileiro, como a Cofco, também atribuem, segundo ele, grande importância ao desenvolvimento verde e à sustentabilidade, fortalecendo a rastreabilidade de seus produtos e o investimento na proteção dos recursos naturais.
A parte chinesa, segundo o embaixador, “está disposta a unir forças com a parte brasileira para expandir a cooperação pragmática em todos os campos e trazer benefícios aos dois povos”. Da parte brasileira, revigorar as relações bilaterais passa pela necessidade de estabelecer com a China o mesmo olhar de longo prazo que ela tem para o Brasil. “Não é só vender tudo o que está com preço bom no mercado internacional e vender rápido”, diz Castro Neves – a propósito, foi o forte crescimento, de 36%, nos preços dos bens exportados para o país asiático, no primeiro semestre do ano, que explica o aumento de 37,7% no valor das exportações para a China. Em volume, cresceram 2,7% no período.
Há, porém, que se levar em conta o atual perfil da demanda chinesa. “A mudança do padrão de crescimento do país, voltado mais para o aumento do consumo interno e menos dependente de investimentos, repercutiu fortemente em uma maior demanda externa do país, sobretudo por commodities em geral”, diz Roberto Fendt, titular da Secretaria Especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais (Secint). Mas as possibilidades vão muito além das commodities. “A China está agora numa nova fase, começa a abrir seu mercado, a permitir, por exemplo, a presença de fundos e bancos americanos em seu mercado sem a necessidade de joint venture, o que aponta para uma participação chinesa intensa nos fluxos financeiros internacionais”, diz o embaixador Marcos Caramuru, conselheiro consultivo internacional do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). Segundo ele, começa também no mundo uma nova área, a da economia de baixo carbono, que abre oportunidades de cooperação para o Brasil.
Esses novos passos no caminho de mais abertura estão previstos no 14º Plano Quinquenal lançado neste ano, em que a China celebra os 100 anos do Partido Comunista Chinês. Grande norte da estratégia chinesa, o plano estabelece objetivos e metas econômicas, sociais, tecnológicas e ambientais capazes, conforme os especialistas, de transformar governos, empresas e a sociedade de forma geral, além de abrir inúmeras oportunidades de investimento.
A estratégia prevista no plano, de priorizar seu imenso mercado interno, por exemplo, cria possibilidades de investimentos em negócios voltados ao consumo dos chineses. Com 1,4 bilhão de habitantes, a China avançou no combate à pobreza e estima-se que a classe média do país, hoje de 400 milhões de pessoas seja de 800 milhões em uma década. De acordo com o estudo “Plano Quinquenal da China: Perspectivas para a cooperação sino-brasileira”, do Núcleo Ásia do Cebri, há estimativas de que a urbanização e o aumento da renda per capita na China incorporem mais centenas de milhões de pessoas à classe média na China até 2050.
É essa nova China que norteia as propostas que a Secretaria de Negociações Bilaterais na Ásia, Pacífico e Rússia do Ministério das Relações Exteriores vem costurando junto com outros 23 atores de diversas esferas. “Estamos trabalhando na elaboração de duas estratégias, o Plano Estratégico Brasil-China 2022-2031 e o Plano Executivo Brasil-China 2022-2026, que esperamos sejam aprovados na próxima reunião da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban), prevista para acontecer ainda neste ano, em novembro ou dezembro, em Brasília”, afirma a titular da secretaria, embaixadora Márcia Donner.
Segundo ela, além de estabelecer os princípios gerais de colaboração, benefícios e respeito mútuos, igualdade e não intervenção, os planos se baseiam em três eixos: político e de cooperação; de economia, comércio e investimentos; e o de ciência, tecnologia e inovação. Entre as metas do eixo de economia e comércio está a de ampliar e diversificar a pauta comercial. “Já vendemos avião para a China; hoje, soja, petróleo, minério. É importante também explorar outras áreas, como produtos de maior valor agregado no agronegócio”, diz ela. Cooperação financeira e industrial, nova economia, indústria 4.0, novos meios de pagamento e simplificação alfandegária são outros temas listados como pontos em que é possível avançar.
Evandro Menezes de Carvalho, coordenador do Núcleo de Estudos China-Brasil da FGV Direito Rio, também defende a diversificação da pauta brasileira. “Eu veria com cuidado a compreensão de que a dependência chinesa da soja brasileira é eterna; a China está investindo para ficar cada vez menos dependente de um ou dois países no fornecimento de produtos que sejam estratégicos”, diz. Em sua opinião o Brasil poderia tirar proveito desse movimento para aprofundar o relacionamento com a China em outras áreas. A nova Lei de Investimento Estrangeiro é outro ponto que estimula investimentos, afirma Adriana Piraíno, responsável pelo China-Desk do Velloza Advogados. “A China também reduziu a chamada ‘lista negativa’ para investimentos externos, expandindo o acesso a mais atividades”, acrescenta.
De seu lado, o Brasil também tem de fazer sua lição de casa: “Investir em infraestrutura e capital humano, fortalecer e tornar mais ágil o ambiente de negócios, pré-requisitos essenciais para habilitar o Brasil a ser mais competitivo e eficiente no aproveitamento sustentável das janelas de oportunidade que a China oferece”, diz Castro Neves. A volta de um diálogo positivo é, na opinião de Anna Jaguaribe, conselheira do Cebri, a melhor forma de evitar embates como os evidenciados nos episódios de atraso de vacinas, durante a pandemia. “A guerra é deles; não temos a ver com isso e não devemos tomar partido, para evitar desgastes”, avalia Castro Neves. O que importa, segundo ele, é centrar atenções no imenso campo de cooperação que a China representa para o mundo.
Fonte: Valor