Henrique Meirelles estava no comando do Banco Central em 2008, quando a quebra do Lehman Brothers interrompeu o crédito internacional e atingiu o Brasil em cheio. Ele diz que a crise hoje é bem diferente, com mais dificuldades para recuperar o crescimento global e possibilidade de recessão nos Estados Unidos, mas o problema ainda se restringe ao endividamento dos governos.
Na sua avaliação, não há uma contaminação do sistema financeiro, embora exista uma grande preocupação com os bancos, principalmente europeus. Por isso, a principal via de contágio para o Brasil hoje é o comércio, por meio de queda dos preços das commodities e da redução de demanda por produtos brasileiros no exterior. "Não há dúvida que o canal de transmissão é comercial. Mas, como em 2008, isso pode mudar a cada 24 horas."
Presidente mais longevo do BC, ocupando o cargo entre 2003 e 2010, Meirelles, que hoje é presidente do Conselho Público Olímpico, não quis responder perguntas sobre como a autoridade monetária deve agir nesse momento. Disse apenas que "não há dúvida" que a economia mundial hoje é mais "contracionista", mas que "a grande lição de 2008" é que o BC deve reagir "a situações reais e não ao que deveria ser". A seguir trechos da entrevista ao Estado.
Quais são as diferenças entre a crise atual e a de 2008?
Em 2008, tivemos uma crise de crédito, que foi provocada por uma alavancagem excessiva das famílias, das empresas e dos bancos nos EUA. O setor privado americano e de outros países europeus diminuiu gradualmente seu endividamento, mas foi substituído pelo aumento das dívidas estatais. Esse é o ambiente desta crise. Uma preocupação dos investidores com o endividamento público e programas de austeridade com toda a sua consequência contracionista. Paralelamente, uma preocupação de que, se houver problemas maiores na economia e nos bancos, os governos não poderiam mais intervir. É uma crise que sinaliza mais dificuldades de crescimento, mas não é como em 2008 depois da quebra do Lehman Brothers. Por enquanto, é um problema dos governos. As ações dos bancos caem, porque podem ser o canal de transmissão para a economia real.
Por que o mercado está tão preocupado com os bancos?
Os bancos americanos hoje, no geral, estão melhor capitalizados do que estavam em 2008. Aprenderam bastante com a crise. Ainda existe problemas, principalmente os herdados da crise hipotecária, mas não é da mesma dimensão. Também há processos judiciais que podem ameaçar essas instituições. Algumas dessas ações são grandes e podem prejudicar a rentabilidade futura dos bancos. Isso é que causa preocupação. Já na Europa, os bancos estão expostos aos governos de países problemáticos. Evidente que o Banco Central Europeu está atento. Não há sinais de alarme, mas sem dúvida existe uma preocupação. E 2008 mostra que as coisas podem acontecer numa velocidade incrível.
O senhor acredita em um duplo mergulho, em nova recessão, da economia americana?
Existe uma preocupação dos Estados Unidos entrarem em recessão e essa é a razão da instabilidade e do nervosismo dos mercados. O desemprego americano continua alto, as empresas não estão investindo. É uma economia com uma demanda privada fraca e com possibilidades limitadas de o governo fazer um estímulo fiscal maior.
O risco de crédito da dívida da França pode efetivamente ser rebaixado?
Sim, é possível. Mas tem uma série de componentes de julgamento subjetivo das agências de rating, cuja credibilidade está em jogo depois das críticas severas em 2008. É uma possibilidade, mas o cenário base da França não é esse.
Até pouco tempo, os emergentes estavam preocupados com a inflação. Com a desaceleração global, isso mudou?
A grande lição de 2008 é que a autoridade monetária deve reagir a situações reais e não ao que deveria ser. Em 2008, foram tomadas uma série de medidas no Brasil que restauraram a atividade rapidamente. Naquela época, faltava crédito e liquidez no mercado e houve uma crise nos derivativos de câmbio. O BC atuou diretamente nisso. Hoje temos que verificar como vai se desenrolar a situação. O BC tem que identificar situações reais e atacar problemas específicos.
Mas a preocupação com a inflação mudou de patamar hoje?
Não há dúvida que a tendência da economia mundial é hoje mais contracionista. Temos um cenário diferente do que há alguns meses, quando havia questões localizadas de preços de commodities. Temos que verificar como isso vai evoluir. O BC vai avaliar a economia brasileira e tomar a decisão mais adequada.
Em 2008, o contágio da economia brasileira ocorreu via crédito. Hoje quais são as ameaças?
Hoje o primeiro movimento se dá nos preços das commodities e na demanda por produtos brasileiros no exterior, que pode arrefecer. Em segundo lugar, cai o preço dos ativos pelo aumento da aversão ao risco. As ações caíram, mas tiveram uma correção técnica ontem e hoje. É prematuro dizer como vai evoluir nos próximos dias. Não há dúvida que hoje o canal de transmissão para o Brasil é comercial. Mas, como em 2008, isso pode mudar a cada 24 horas.
Se a transmissão é via comércio, como deve agir o governo?
Temos que aguardar como os diversos setores podem ser afetados. Qualquer generalização é perigosa.
O governo brasileiro disse que vai segurar os gastos, enquanto na crise de 2008 ocorreu o contrário. A receita tem que mudar?
Os problemas são diferentes. Em 2008, globalmente, tínhamos um problema de queda de demanda, gerada pela crise no crédito e pelo desemprego. A resposta geral foi o estímulo fiscal. Hoje a preocupação é a questão fiscal. É o contrário. A reação do governo brasileiro está correta. Mas é preciso separar bem a situação do Brasil e dos EUA e da Europa. A situação fiscal brasileira é muito confortável comparada com a maioria desses países. É bom ter cuidado e ser prudente, mas o Brasil não tem um problema fiscal. Só precisa ter cuidado para não ter.
Qual é a tendência para o câmbio? A guerra cambial continua ou há risco de ataque especulativo contra o real?
Temos duas forças contraditórias. O Federal Reserve (BC dos EUA) sinalizou a permanência de taxas de juros perto de zero até 2013 e deixou a porta aberta para uma terceira rodada de injeção de recursos no mercado. Isso significa mais liquidez, maior entrada de recursos no Brasil e valorização do real. Por outro lado, o enfraquecimento da demanda mundial pode levar a queda das comomodities. A tendência do preço das commodities não está clara, mas pode levar a desvalorização do real. São fenômenos com efeitos contrários e o vetor resultante não é previsível. Em 2008, o grande vetor da desvalorização do real não foi as commodities, mas o colapso das linhas de crédito internacionais, que levaram as empresas a tomar recursos no Brasil e pagar empréstimos que venciam no exterior. Também tivemos remessas de recursos de filiais para as matrizes e remessas de fundos para cobrir saques maciços lá fora. E o problema dos derivativos nas empresas exportadoras.
O endividamento em dólar das empresas aumentou e está forte a remessa de lucros para o exterior. Esse problema pode se repetir?
O que gerou aquela crise não foi uma remessa normal de dividendos. Hoje as remessas aumentam porque as empresas têm mais lucro. O endividamento no exterior também é normal e não há sinal de problemas com derivativos. Pode existir algum problema no futuro? Sim, se houver o colapso de algum grande banco internacional que leve ao congelamento do crédito. Mas esse é um cenário técnico e o fator chave é o funcionamento regular do sistema financeiro. Outro ponto importante: a desvalorização do real em 2008 durou pouco porque o BC tinha US$ 200 bilhões de reservas e atuou. Hoje, com US$ 350 bilhões, temos muito mais. A tão criticada acumulação de reservas custa caro, mas é confortadora agora.
Fonte: O Estado de S.Paulo / Raquel Landim, Fabio Alves e Ricardo Grinbaum
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