O surto de coronavírus desestabilizou o mercado mundial de gás diante da forte queda na demanda e das ameaças de importadores chineses de cancelar até 70% das importações marítimas em fevereiro. Além disso, as empresas sofrem para conseguir pessoal para trabalhar nos portos.
Os cancelamentos no país asiático, segundo maior importador de gás natural liquefeito (GNL), fizeram os preços cair para sua menor cotação histórica e desencadearam disputas com os fornecedores, que acusam as empresas chinesas de romper contratos para conseguir preços mais baixos no mercado à vista.
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O impasse é mais um dos danos econômicos sendo causados pelo surto do vírus, que deverá restringir o crescimento econômico mundial, já que parte da segunda maior economia do planeta está praticamente paralisada.
A queda nos preços do gás representa um possível impulso para fábricas e consumidores, mas um problema para as empresas de fontes de energia, que alertaram para a possibilidade de grandes impactos nos lucros no primeiro semestre deste ano.
A demanda chinesa por petróleo também caiu em fevereiro. Estima-se que houve um declínio de 25%, depois de grandes cidades terem ficado em quarentena, voos terem sido cancelados e um feriado nacional ter sido estendido para conter a disseminação do vírus, que já matou mais de 600 pessoas e infectou mais de 31 mil.
Motivo de “força maior”
Dois dos grandes grupos de energia da China já declararam motivos de “força maior” em pelo menos 14 contratos de importação de GNL, invocando a cláusula que libera os dois lados de um contrato, normalmente reservada para casos de guerra ou desastres naturais. É provável que mais compradores chineses de GNL façam o mesmo nos próximos dias, de acordo com fontes a par das transações.
Há relatos de que alguns petroleiros de GNL foram desviados de portos no sul da China para o norte do país. Analistas, contudo, dizem que outros grandes mercados na Ásia e Europa estão saturados com excesso de oferta, de forma que é provável que os navios ancorem afastados das costas chinesas como forma de deixar o produto armazenado no próprio mar.
“A perspectiva de uma flotilha de petroleiros de GNL desviados e navegando pelo mundo em busca de lar apenas aumenta o sentimento de pessimismo”, disse Frank Harrks, chefe mundial da área de GNL na firma de consultoria Wood Mackenzie.
O excesso de gás natural derrubou os preços asiáticos do GNL para o menor patamar histórico, de US$ 2,95 por milhão de unidades térmicas britânicas (BTUs, na sigla em inglês).
Manobra chinesa
Os vendedores de GNL reclamam que o uso pelos chineses da cláusula de força maior é, pelo menos em parte, motivado pelo desejo dos importadores de comprar a preços mais baratos, no mercado à vista, em vez das cargas importadas acertadas em contratos de longo prazo.
O mercado de GNL cresceu rapidamente nos últimos anos, impulsionado pelo aumento da oferta nos Estados Unidos e Austrália. O aumento no comércio marítimo de gás conectou mercados regionais e aproximou as diversas cotações internacionais, de forma que uma queda na Ásia agora pode fazer os preços caírem na Europa e vice-versa.
Das cargas já canceladas por força maior, dez eram contratos entre a China National Offshore Oil Corporation (Cnooc) e a Royal Dutch Shell. A PetroChina recusou-se a aceitar duas cargas do Catar e duas da Malásia — incluindo uma a ser entregue em março —, segundo fontes a par dos contratos.
Acredita-se que até 50 cargas, ou 70% das importações relativas a fevereiro, corram o risco de cancelamento nos próximos dias, uma vez que mais compradores, entre as quais a Sinopec, enviaram avisos comunicando que teriam problemas se a recebessem.
A China importou uma média de quase 7 bilhões de metros cúbicos mensais do combustível super-resfriado em 2019, segundo a firma de consultoria Energy Aspects. Embora a China tenha expandido sua capacidade de armazenamento nos últimos anos, ela continua insuficiente, de acordo com analistas da ANZ.
Fornecedores, operadores e advogados que trabalham na área de GNL questionam a legitimidade de declarar força maior em razão da queda na demanda provocada pela disseminação do coronavírus.
“Há dúvidas substanciais se isso é apropriado”, disse Jason Feer, chefe mundial da área de inteligência de negócios na corretora Poten & Partners. “Eles estão tendo muita reação contrária dos fornecedores, dizendo que baixos preços e petroleiros cheios não são um evento de força maior.”
A francesa Total informou ter rejeitado um aviso de força maior de uma empresa chinesa. “Nossa análise legal é que não há força maior”, disse Philippe Sauquet, presidente da área de gás, fontes renováveis e energia da Total. “Temos que ser cuidadosos porque se há uma quarentena real em um porto de carregamento ou descarregamento, vai haver realmente um caso de força maior na China.”
Fonte: Valor