Após quase 40 anos de aproximação comercial e financeira entre os países, a década de 2020 deve trazer um mundo menos globalizado. Economistas e analistas têm visto diferentes sinais nesse sentido, que vão dos EUA evitando assumir a liderança na busca por um mundo com menos fronteiras e barreiras à tentativa de garantir maior soberania de cada nação, após a pandemia do coronavírus. Mas há muito mais no cardápio a reforçar o pêndulo rumo a um mundo mais fechado.
“Um dos principais movimentos que indicam a menor globalização nos próximos anos é o fato de os norte-americanos estarem menos interessados em serem os arquitetos multilaterais para o livre comércio”, diz Ian Bremmer, presidente e fundador do Grupo Eurasia, uma das maiores consultorias globais de política e economia. “É uma posição que ocuparam historicamente e cuja saída deixará grandes reflexos na economia global.”
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Eleição apertada de Biden foi recado das urnas
A tendência já havia ficado clara na eleição de Donald Trump, levado à presidência dos EUA graças ao discurso voltado ao americano de classe baixa, pouco qualificado, que perdeu emprego e renda durante décadas de crescimento do país com acordos comerciais diversos. Com a vitória apertada de Joe Biden, a mensagem das urnas foi reforçada – e deve haver a busca por uma alternativa que atenda a esse eleitor, segundo o Wall Street Journal.
“Muitos americanos olham o livre comércio e pensam: ‘talvez o país tenha ficado mais rico, talvez as pessoas mais ricas tenham ficado mais ricas, mas nós não estamos ficando mais ricos. Não vamos apoiar o livre comércio'”, diz Bremmer. O coronavírus, que aumentou a desigualdade social, expondo mais os trabalhadores incapazes de desempenhar suas funções remotamente, só agravou essa tendência.
Democratas tendem a buscar nova via de globalização, com treinamento maior dos trabalhadores
“O sentimento anti-establishment nos EUA, tanto de esquerda quanto de direita, está crescendo. Foi dessa maneira que tivemos Trump e (o candidato à presidência) Bernie Sanders”, diz ele. “Os EUA são hoje o país mais desigual e mais politicamente dividido entre todas as economias industriais e é parte da razão pela qual não querem mais liderar o mundo do jeito que fizeram.”
Entre as alternativas buscadas pelos norte-americanos, há na agenda democrata o treinamento massivo dos trabalhadores, para que enfrentem em condição de igualdade a disputa pelas melhores vagas. “Os norte-americanos estão assustados como o gap entre seus trabalhadores e os de outros países diminuiu e a alternativa agora é investir na qualificação”, afirma Rodrigo Zeidan, professor de finanças e economia da NYU em Xangai.
A missão não será fácil, mesmo para os EUA. Passa pela necessidade de maior orçamento – em um Senado que pode ser majoritariamente Republicano e impedir o plano do presidente eleito. Também há a dificuldade de a mão de obra sem treinamento ser gigantesca. “A última vez que isso ocorreu foi durante a Revolução Industrial no Reino Unido e duas gerações inteiras foram perdidas, até que as pessoas fossem habilitadas a fazerem novos trabalhos”, diz Bremmer.
Briga em torno do 5G e trabalho mais caro na China impulsionam mundo menos aberto
Outro movimento que também indica a tendência à menor globalização é a guerra fria tecnológica entre EUA e China, por conta do 5G. Na área que responderá pela próxima revolução industrial, na qual a internet de altíssima velocidade dará a base para o salto de produção e inteligência das máquinas, os norte-americanos não querem compartilhar dados sensíveis de seu governo e empresas com seu maior concorrente comercial. “É um país comunista e totalitário e os EUA não querem que o governo chinês tenha acesso a dados que envolvam segurança nacional”, diz Bremmer.
Um terceiro ponto no sentido de um menor intercâmbio na próxima década diz respeito à redução da vantagem de se produzir na China e à maior automação. “Os trabalhadores chineses estão se tornando mais caros do que costumavam ser”, afirma ele. “Também não é preciso mais tantos trabalhadores quanto antigamente, o que vai levar à menor globalização na cadeia de suprimento em fábricas e serviços.”
Globalização não vai acabar
A mudança de trajetória, porém, não significa que a globalização vá acabar. “O movimento do fluxo financeiro irá continuar”, afirma Zeidan. “Não há qualquer movimento no sentido de controlá-lo.” Para ele, as principais mudanças acontecerão com pessoas e empresas – que perceberam ser desnecessárias muitas viagens e deslocamentos feitos até pouco antes da pandemia e descobriram a efetividade do trabalho remoto.
Os especialistas também não veem a China ocupando o lugar dos EUA nessa liderança pela globalização. “O projeto chinês é nacional e todo seu poderio é voltado ao consumo interno”, diz Zeidan. Além disso, ele afirma que os Estados Unidos continuarão sendo o centro de pesquisa e desenvolvimento do mundo, atraindo os principais cérebros, onde está a verdadeira criação de riqueza – ao contrário da China.
Para Bremmer, como a economia chinesa ainda é muito interligada à norte-americana, no momento em que os EUA se voltarem mais para seu mercado interno, o país asiático será bastante afetado. Todas as outras economias que negociam com a China, por sua vez, também sofrerão.
Fonte: Estadão