Com largo excesso de oferta internacional, provocado especialmente pela atuação da China no comércio, e sem expectativa de resolução no horizonte, a siderurgia vive uma crise "sem precedentes" no mundo hoje, afirma John Lichtenstein, diretor-executivo de recursos naturais e especialista em aço da consultoria Accenture, em entrevista exclusiva ao Valor.
"A escala atual da crise não tem precedentes e também é sem igual a resposta coordenada e forte dos governos", comenta.
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De acordo com o executivo, a defesa comercial pode ser uma arma importante nesse cenário, mas pode cair por terra caso a China seja reconhecida pela Organização Mundial do Comércio (OMC) como uma economia de mercado no fim deste ano. Alguns países, como os Estados Unidos, ficam impedidos por lei de realizar algumas ações de proteção comercial se os chineses obtiverem esse selo.
"Os EUA têm um caso forte contra a China, pois a acusam de roubar informações", lembra, referindo-se à declaração da americana US Steel de que hackers chineses invadiram seus sistemas. "Eles podem até banir definitivamente os chineses do mercado americano com isso."
A sobreoferta mundial hoje chega perto de 700 milhões de toneladas de aço bruto. Só no gigante asiático, são aproximadamente 400 milhões de toneladas, calculam agentes do setor. A saturação apareceu no pior momento possível, quando a demanda chinesa, a maior do mundo, começou a se estabilizar.
"Eles reconhecem que há um problema, mas a questão é que podem sofrer impactos financeiros e sociais pelo desligamento de capacidade siderúrgica, por conta do nível de financiamento ao setor e do emprego gerado pelas usinas", afirma o diretor, que participa hoje do Congresso Brasileiro do Aço, em São Paulo.
Lichtenstein explica que as siderúrgicas chinesas estão substituindo sua capacidade mais antiga e menos rentável por uma produção mais eficiente, com muitas usinas próximas à costa. "As grandes empresas instalaram essas novas unidades com maiores margens e dizem que não é para exportar mais. O problema é que a vantagem para que isso ocorra é enorme", afirma.
O comércio indireto, ou seja, de produtos manufaturados com aço, seria a próxima fronteira do país para consolidar sua predominância mundial. Em 2014, 21,4% das exportações indiretas eram chinesas, contra 11,2% uma década antes. Foram 67,5 milhões de toneladas comercializadas pela China, de 319,3 milhões de toneladas no total. Na OMC, a siderurgia tem o maior número de reclamações.
"Mercados emergentes em especial podem ver sua indústria transformadora devastada por esse movimento, como o próprio Brasil", alerta o executivo. Para ele, o mercado brasileiro pode se proteger tomando a direção contrária: voltando a ser exportador líquido de produtos de aço. A ideia seria se aproveitar das condições atuais e se transformar em um centro importante de exportações do tipo.
Enquanto isso, a pressão por uma rodada de consolidação aumenta, tanto aqui como no resto dos países, opina Lichtenstein. O executivo acredita que empresas que tiverem uso de capacidade abaixo de 70% e pelo menos mais de uma usina funcionando acabam se tornando alvos preferenciais. "Não digo que haverá consolidação, mas a pressão será enorme no Brasil se a demanda continuar baixa", diz o executivo.
Lichtenstein ainda vê na compra de participações no exterior uma das partes do tripé da estratégia chinesa no mercado siderúrgico. Já estabelecida como a maior exportadora de aço bruto do mundo, e agora também no comércio indireto do produto, aumentar a capacidade fora do território chinês parece completar o cenário, afirma.
"O país está buscando outros países com mão de obra mais barata, depois que o custo subiu internamente", explica o especialista. "Parte importante dessa estratégia é montar capacidade fora da China. Além deles, vejo pouca gente querendo comprar participações no mercado internacional."
Por outro lado, a alta dos preços do aço desde o início do ano parece insustentável, afirma Lichtenstein. Além disso, a instabilidade deve ser regra daqui para frente, diz ele. Em sua opinião, o repique ocorreu graças ao nível baixo de estoques, especialmente na China, e à especulação nos mercados futuros. "Vejo os preços insustentáveis, na verdade, porque os fundamentos de oferta e demanda não mudaram", opina.
A bobina a quente, produto que é a principal referência do mercado em aços planos, registrou valorização de 34% em 2016 até a semanada passada, para US$ 355 por tonelada. Nos EUA, o avanço foi ainda mais expressivo, de 73% para US$ 640 a tonelada curta. As usinas brasileiras reajustaram os preços em cerca de 33% por conta desse movimento.
Fonte: Valor Economico/Renato Rostás | De São Paulo