Na véspera da cúpula de presidentes do Mercosul, o governo do Uruguai surpreendeu ao anunciar, em reunião de ministros das Relações Exteriores, sua decisão de iniciar negociações de acordos comerciais com países de fora do bloco. A iniciativa fere, na visão dos governos da Argentina e Paraguai, uma das regras fundamentais do Mercosul: a exigência de consenso. Três décadas após a assinatura do Tratado de Assunção, ata fundacional do bloco, os quatro países membros estão mergulhados numa crise de desfecho incerto.
O governo de Jair Bolsonaro sempre esteve de acordo com a demanda uruguaia de liberdade para negociar, mas ainda não se pronunciou oficialmente sobre o inesperado comunicado do governo do presidente Luis Lacalle Pou. Segundo fontes que participaram da reunião de chanceleres, o ministro Carlos França se referiu à nota do governo uruguaio como "inoportuna". O ministro da Economia, Paulo Guedes, e sua equipe não comentaram a atitude do Uruguai. "Ao mesmo tempo que reivindicou sua presença no Mercosul, o Uruguai comunicou que começará a conversar com terceiros para negociar acordos extra-zona (fora do Mercosul)", diz a nota do governo Lacalle Pou.
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O argumento do país vizinho é de que a resolução 3200, que determina que entendimentos de livre comércio com outros países e blocos devem ser adotados por consenso, nunca foi internalizado pelos membros plenos do Mercosul, portanto, não está em vigência.
Segundo fontes da Casa Rosada, a atitude do Uruguai foi interpretada como "rupturista" e não será tolerada.
— Se essa posição se mantiver, o Uruguai estará rompendo o Mercosul — frisou a fonte do governo do presidente Alberto Fernández.
A ação do Uruguai acontece em momentos de delicada crise no bloco. Há vários meses, os governos do Brasil - alinhado com o uruguaio - e da Argentina estão discutindo reformas para flexibilizar pilares do Mercosul, com destaque para a Tarifa Externa Comum (TEC, que taxa produtos de fora do bloco).
O Brasil defende uma redução linear de 10% da TEC (hoje, em média, de 11,7%) de forma imediata, e um segundo corte de 10% no final do ano. Já a Argentina, que no início das conversas não aceitava falar em corte de tarifas, dada à gravíssima recessão que assola o país em plena pandemia, aceitou, finalmente, uma redução inicial de 10%, mas apenas sobre 75% do universo tarifário, deixando de fora bens finais.
O governo Fernández não quer estabelecer data para um segundo ajuste da TEC, se opondo enfaticamente ao objetivo do Brasil de fazê-lo no final de 2021. O pedido do Uruguai de poder negociar com outros países e blocos sem exigência de consenso é respaldado pelo Brasil, e taxativamente rechaçado por Argentina e Paraguai.
Na reunião de chanceleres desta quarta-feira, o ministro França fez um discurso moderado, defendendo a necessidade de continuar tentando alcançar acordos dentro do bloco. Mas a posição do ministro da Economia é a de que o tempo para conversas dentro do Mercosul se esgotou e o Brasil precisa das reformas para avançar em seu plano de abertura da economia.
Hoje, o bloco é visto pela equipe econômica como uma camisa de força, que isola o Brasil e deixa o país de fora das grandes cadeias de produção globais. Numa reunião de negociadores na última terça-feira, um ministro do governo argentino perguntou a João Rossi, Secretário Especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais, se o Brasil pretendia transformar o Mercosul, uma União Alfandegária imperfeita (por todas as exceções e perforações à TEC) numa zona de livre comércio (sistema no qual não existe TEC). Segundo fontes argentinas, Rossi não respondeu.
Guedes também considera a reforma da TEC essencial como parte do plano de governo de combate à inflação, segundo comentaram fontes do setor empresarial que se reuniram recentemente com o ministro. A resistência a modificar a tarifa externa não é apenas da Argentina, mas também de setores industriais internos.
Em nota conjunta divulgada nesta quarta-feira, os representantes de indústrias dos quatro países do Mercosul pediram que os governos do bloco adotem ações para promover o desenvolvimento econômico e social da região. Sem mencionar diretamente a redução das tarifas de importação e a possibilidade de negociação de acordos em separado dos demais sócios do bloco, os industriais reafirmaram sua preocupação com decisões que podem ter grande impacto negativo sobre o setor produtivo.
Eles lembraram que o momento atual é de crise sanitária e há incertezas quanto ao futuro."Continuamos pensando que é fundamental que os governos do Mercosul tenham políticas públicas que criem as condições necessárias para assegurar o crescimento econômico da região, baseado em investimentos e na criação de empregos".
Empresários e trabalhadores na indústria brasileiros já haviam se posicionado contra a reformulação do Mercosul neste momento. Argumentam que qualquer iniciativa deve vir acompanhada da redução do Custo Brasil, conforme prometeu o ministro da Economia. Existe uma clara insatisfação com o que garantiu Guedes e o que tem sido feito na prática.
Segundo empregados e patrões na indústria nacional, o posicionamento de Bolsonaro sobre a abertura comercial vem se consolidando há quase dois anos, sem que tenha havido um projeto claro, com avaliações de impacto bem fundamentadas.
Segundo fontes que acompanham as negociações, diante de tantas divergências tanto dentro do país, como de parceiros como os argentinos, o mais provável é que as propostas do Brasil continuem sendo discutidas ao longo deste semestre, quando o país estará na presidência pro tempore do bloco.
A ideia é fazer um acordo ambicioso, respeitando-se as assimetrias de cada uma das economias do bloco por meio de exceções. No entanto, a decisão final está em mãos do ministro e do presidente.
Em recente visita ao Palácio do Planalto, o embaixador argentino em Brasília, Daniel Scioli, foi recebido pelo ministro-chefe da Casa Civil, general reformado Luiz Eduardo Ramos, e pela ministra da Secretaria de Governo, Flavia Arruda. De ambos, o embaixador ouviu que as divergências no Mercosul estão sendo discutidas no governo e que não existe a intenção de romper o bloco.
Fonte: O Globo