Por Rodrigo Pimentel Ferreira Leão
Na sexta-feira 27, a Agência Nacional de Petróleo realiza duas rodadas dos leilões da área do pré-sal. Estes são os primeiros após a alteração da lei da partilha ocorrida em outubro de 2016. Antes de explicar essa mudança, cabe contextualizar as razões que possibilitaram a criação do que se denominou regime de partilha em 2010.
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Assim que a Petrobras anunciou a descoberta do pré-sal em 2007, houve uma mudança no curso das rodadas de licitações praticadas até então. Apesar de a ANP insistir na realização dos leilões programados, os gestores da estatal defenderam a interrupção dos mesmos em virtude das características distintas das áreas do pré-sal, com baixo risco exploratório, em relação ao pós-sal. Tal impasse foi decidido pelo presidente Lula que, por sugestão de Haroldo Lima, então diretor-geral da ANP, manteve a rodada, mas retirou do leilão os 41 blocos localizados no pré-sal.
O regime de concessão, único vigente no País naquela data, não se mostrava adequado para regular a exploração e produção do pré-sal em virtude da passiva atuação estatal. Tal regime, estabelecido em 1997, garantiu às empresas vencedoras o direito de propriedade do petróleo e do gás natural extraídos após o pagamento das taxações, como os tributos incidentes sobre a renda (imposto de renda, contribuições etc.), participações governamentais e a taxa de ocupação da área. Ou seja, após o pagamento dos tributos devidos, a empresa privada possuía direito sob todo o óleo produzido.
Em vista do papel essencial da Petrobras para o sucesso exploratório do pré-sal e o volume de recursos envolvidos (veja o primeiro artigo desta série), num cenário de amplo apoio popular ao projeto politico em curso, foi possível desenhar um novo aparato regulatório para exploração exclusiva do pré-sal em 2010.
Esse aparato construído a partir de dois modelos distintos (cessão onerosa e sistema de produção de partilha) ensejou uma maior participação estatal seja nas atividades exploratórias, seja na apropriação da renda gerada pelo petróleo e gás natural.
Segundo o jurista Alex Prisco, o sistema de partilha permite um maior controle do Estado pois “inverte a lógica do fluxo-moeda dos países que o adotam. Isso porque sua conformação jurídica permite aos estados produtores transferirem às empresas apenas o direito de conduzir as atividades de exploração e produção dos minerais do subsolo (...) os hidrocarbonetos produzidos permanecem na propriedade do Estado hospedeiro, que contrata a companhia petrolífera para efetuar a exploração econômica de hidrocarbonetos sob seu próprio risco”.
Segundo o Cambridge Research Energy Associates, sob a concessão, o Estado brasileiro arrecadou entre 50% e 60% da receita do petróleo, enquanto países que adotaram o sistema de partilha ficavam com até 90%.
Na lei 12.276, que regulamentou o modelo de “cessão onerosa”, a União foi autorizada a ceder diretamente à Petrobrás, dispensada a licitação, o exercício das atividades de pesquisa e exploração de petróleo em áreas não concedidas localizadas no pré-sal, até o limite de 5 bilhões de barris de petróleo.
Após o pagamento dos royalties e participações especiais, a Petrobras adquiriu o direto sob os hidrocarbonetos extraídos. Desse modo, o modelo de cessão onerosa permitiu uma maior ação estatal mediante: 1) o aumento da participação da União no capital votante da Petrobras; 2) a ampliação do volume de reservas de óleo e gás para Petrobras e 3) a capitalização realizada pela Petrobras.
Na lei 12.351, que estabeleceu o regime de partilha da produção somente para as áreas do pré-sal e aquelas tidas como estratégicas, além de criar um Fundo Social e uma empresa pública (Pré-Sal Petróleo S.A. - PPSA) para gerir o excedente de óleo dos contratos de partilha da produção do petróleo, exigiu que a Petrobras fosse operadora do contrato (com uma participação de no mínimo 30% sobre as áreas licitadas).
Nesse novo modelo regulatório, definiu-se como critério de decisão do leilão a parcela do petróleo excedente destinado à União, descontado o percentual da Petrobras (no mínimo 30%) e as taxações incidentes sobre a produção (royalties e impostos).
O restante do petróleo e do gás natural ficaria com as empresas participantes do consórcio. Em relação à tributação, em vez das participações especiais e da taxa de ocupação, o consórcio vencedor da licitação na área do pré-sal teria de ceder à União uma fração excedente de óleo (petróleo bruto) estipulada em contrato. Portanto, nesse caso, o maior controle do Estado se observou na obrigatoriedade da participação da Petrobras e no controle de uma parcela significativa dos recursos extraídos pela PPSA. A tabela abaixo sistematiza as principais diferenças entre o Regime de Concessão e o de Partilha.
Sob a égide do regime da partilha e da cessão onerosa, a perspectiva era de que uma parcela maior da riqueza do pré-sal tivesse como destinação o financiamento de gastos sociais e o apoio ao desenvolvimento da atividades produtivas nacionais, com a Petrobras assumindo a função de grande articuladora desse processo.
Como anota o segundo artigo desta série, não restou dúvidas de que, após a aprovação desse novos regimes exploratórios, houve uma grande ofensiva dos grandes produtores globais de petróleo para inviabilizar a efetivação dessas leis. Desde reuniões e acordos com políticos de partidos de oposição, passando pela redefinição do planos energéticos de vários players internacionais, observou-se uma incessante atuação de empresas e países interessadas no pré-sal para a alteração dos marcos regulatórios visando facilitar sua entrada na exploração e produção dessas áreas.
Foi nesse contexto que, logo após a ascensão do governo ilegítimo de Michel Temer, o senador José Serra propôs um projeto de lei que retirou a cláusula de obrigatoriedade de participação da Petrobras no regime de partilha. Essa mudança, como observado, quebrou um dos pilares de controle estatal sobre as reservas do pré-sal em favor das empresas estrangeiras.
Essa foi a primeira de uma série de mudanças que atendeu o setor externo em detrimento dos interesses nacionais. Duas delas chamaram a atenção: primeira, o abandono da busca pela autossuficiência energética na política de exploração e produção de petróleo e gás e; segunda, o estabelecimento de um cronograma acelerado de leilões do petróleo do pré e do pós-sal.
Essas modificações deslocaram o eixo estratégico que o pré-sal poderia ter para o planejamento energético do longo prazo e para a indução da cadeia do setor petróleo no Brasil com a retirada da obrigatoriedade da Petrobrás e o abandono de uma politica energética. Somou-se o desmonte da politica de conteúdo local. Assim, a maior parte da renda gerada na exploração e produção de petróleo no pré-sal deve ser vazada para o exterior, gerando o desenvolvimento industrial em outros países.
Em suma, as recentes mudanças regulatórias favorecem claramente as empresas petroleiras estrangeiras, que podem ingressar de forma acelerada independentemente da postura da Petrobras no pré-sal, assim como a cadeia de seus fornecedores globais que substituirão os fornecedores brasileiros.
Isso gerará emprego, renda e desenvolvimento industrial no exterior em detrimento do desenvolvimento nacional. Resta agora saber mais objetivamente quais são os recursos financeiros e produtivos que o Estado brasileiro abre mão nos leilões do dia 27, a partir dessas mudanças regulatórias motivadas por uma complexa teia de relações expostas no nosso artigo anterior. Essa tarefa será realizada nos dois últimos textos da série “O pré-sal e os interesses em jogo: realidade e desafios”.
Rodrigo Pimentel Ferreira Leão é Mestre em desenvolvimento econômico (IE/UNICAMP). Foi gestor de planejamento da Fundação Petrobras de Seguridade Social (Petros). Atualmente, é pesquisador da Cátedra Celso Furtado/FESP-SP e um dos integrantes do Grupo de Estudos Estratégicos e Propostas (GEEP) da FUP
Fonte: Carta Capital