Na discussão sobre o pacote de regulamentação da exploração do pré-sal, na Câmara, praticamente ninguém questionou ou se opôs à criação do Fundo Social. Proposto pelo projeto de lei 5.940, o fundo reunirá as receitas oriundas do petróleo para mitigar os riscos fiscais e cambiais a que a economia estará sujeita e, em consequência, fugir dos danos conhecidos na literatura como a "maldição do petróleo" (países ricos em petróleo, mas pobres e desindustrializados).
Por definição, essas receitas serão voláteis, sujeitas às variações dos preços da commodity no mercado internacional, mas vão financiar gastos públicos permanentes e, no caso brasileiro, crescentes desde os anos 90 do século passado.
Para chegar a uma ordem de grandeza do que poderá ser a receita petrolífera no futuro, os economistas do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getulio Vargas (FGV ), fizeram algumas simulações, tomando como base o Produto Interno Bruto (PIB) atual, de R$ 3 trilhões, e a perspectiva de produção de um bilhão de barris em 2024, e do volume máximo de 2,3 bilhões de barris em 2034. Para isso, estabeleceram algumas hipóteses: crescimento do PIB per capita real de 3% ao ano entre 2010 e 2035; royalties e tributos de cerca de 60% da receita apurada com a extração do petróleo, tendo este preço em torno de US$ 80 o barril.
Sob estas condições, a arrecadação nas três esferas de governo (União, Estados e municípios) corresponderia a 1,6% do PIB em 2024, chegando a 2,7% do PIB em 2034. É claro que essa é apenas uma tentativa de mensuração, pois há muitas incertezas em jogo. Mas é uma conta plausível e significaria, hoje, pouco mais de R$ 80 bilhões.
Todos os países presenteados com grandes reservas de petróleo criaram seus fundos soberanos, embora esse não seja um modelo imperativo, como forma de apartar as receitas petrolíferas e criar regras transparentes para seu uso, tendo em vista inclusive a formação de poupança para futuras gerações. Apesar de o debate só fazer sentido quando o dinheiro começar a aparecer, lá pelo ano 2020, é agora que as decisões estão sendo tomadas.
A partir de fevereiro, quando termina o recesso parlamentar, o projeto de lei que cria o fundo de estabilização do petróleo deverá ser votado no plenário da Câmara e, de lá, seguirá para o Senado. O momento, portanto, é oportuno para discussão de mais fôlego sobre a sua importância na montagem do arcabouço regulatório do pré-sal, dada as implicações econômicas do manejo futuro das receitas dele decorrentes.
A Carta do Ibre, que será publicada na próxima semana, é dedicada ao tema e sugere alguns reparos ao projeto, para que o uso dos recursos do fundo seja capaz de equilibrar interesses políticos e setoriais não raro conflitantes. Ela chama a atenção, também, para um aspecto meio esquecido da arquitetura do pré-sal, que é a criação de instrumentos para que os Estados e municípios, que vão receber vultosas somas na partilha das receitas, evitem os desperdícios com obras absolutamente desnecessárias apenas porque sobram recursos.
O exemplo recorrente é de um dos municípios fluminenses forrados com dinheiro de royalties do petróleo, que cobriu com porcelanato o calçadão da praia. Construir um hospital modelo, ao invés de gastar com piso de porcelanato, certamente teria sido um uso mais correto dos royalties. Mas nenhum prefeito quer que seu município seja o receptor de doentes de todos os demais municípios do Estado, que carecem de bons hospitais.
Uma sugestão, conforme o diretor do Ibre, Luiz Guilherme Schymura, é que os Estados e municípios sejam incentivados, por lei federal ou alguma outra forma, a também formar fundos de estabilização, e que os governadores busquem estabelecer um sistema de coordenação intermunicipal no uso do dinheiro.
Há inúmeros formatos de fundos soberanos de estabilização de receitas do petróleo que o Ibre cita no texto da carta. Tal como definido no projeto de lei 5.940, o fundo brasileiro terá a função de estabilizar as receitas, constituir poupança pública e financiar projetos de desenvolvimento social. A fonte de receitas será a parcela da exploração do pré-sal, inclusive dos blocos já licitados, que cabe à União (incluindo bônus de assinatura, royalties e comercialização de petróleo e gás), e as rendas obtidas com a aplicação do dinheiro. Por um período ainda indefinido, porém, parcelas do principal poderão ser gastas.
A gestão e aplicação dos recursos do fundo ficarão a cargo do Comitê de Gestão Financeira do Fundo Social (CGFFS) e o Conselho Deliberativo do Fundo Social (CDFS). Ambos, assinala Shymura, terão composições definidas pelo Executivo, sem qualquer interferência do Congresso ou de outras instâncias da sociedade.
Para que a etapa de formação de poupança não seja sistematicamente adiada e os governos não gastem o principal do fundo, será fundamental que o Executivo "aja de boa fé no momento em que propuser ao Congresso a regulamentação definitiva do Fundo Social, tendo como objetivo uma distribuição equilibrada das receitas do pré-sal no curto, médio e longo prazos", atenta o Ibre.
O modelo de gestão, fortemente concentrado nas mãos do Executivo, mais especificamente no grupo partidário e político que estiver no controle do governo, pode ser melhorado. A composição do CGFFS e do CDFS, definida por atos do Poder Executivo, reforça a concentração. Há exemplos distintos no mundo, que podem servir de exemplo de uma gestão mais compartilhada. No Alasca, o fundo tem personalidade jurídica e institucional independente. No Chile e na Noruega, um corpo técnico da burocracia de Estado gere o fundo e delimita o teto de gastos, cita a carta do Ibre. Uma possibilidade, aqui, poderia ser de um fundo independente fiscalizado pelo Tribunal de Contas da União.
O certo, porém, é que os fundos de estabilização não são uma panaceia fiscal e, como bem assinala o Ibre, não substituem o comprometimento do governo e da sociedade com a estabilidade macroeconômica mais ampla, incluindo o controle dos gastos públicos e da inflação.(Fonte: Valor Econômico/Claudia Safatle)
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