Nunca um ano começou tão tenso para a concessionária de ferrovias América Latina Logística (ALL), como este janeiro que se avizinha. É sem precedentes, no governo, o nível de insatisfação com a empresa. Na pior das hipóteses, se não prevalecerem os argumentos de quem adota uma postura mais conciliadora, pode ser aberto um processo de caducidade da concessão. No melhor cenário, haverá um aperto à ALL em 2014, mas é certo que a tolerância está perto de se esgotar.
Não é de hoje que essa relação está mal resolvida, mas o descarrilamento de um trem em São José do Rio Preto (SP), que deixou um trágico saldo de oito mortos, no fim de novembro, aprofundou o desgaste. Basta uma espiada no sistema eletrônico de fiscalização do transporte ferroviário - desnecessariamente fechado ao público em geral - para ter uma ideia das razões do mau humor com a empresa.
O trecho da ALL Malha Paulista entre Araraquara e Santa Fé do Sul, com 436 quilômetros, registrou 79 acidentes de janeiro de 2012 a outubro de 2013. Vinte foram classificados como graves. Significa que interromperam o tráfego de cargas por mais de 24 horas, provocaram dano ambiental ou resultaram em prejuízo acima de R$ 1 milhão. Todos tiveram problemas na via permanente (trilhos e dormentes) como causa aparente. A MRS Logística, com cerca de 1,7 mil quilômetros de linhas, acumula nove acidentes (dois graves) no mesmo período. Na Estrada de Ferro Carajás, da Vale, os números foram igualmente baixos em quase 900 quilômetros de malha.
Diálogo entre a ALL e o governo nunca esteve tão tenso
A má conservação da via permanente, segundo fontes qualificadas do governo, é justamente o que tem feito a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) impor limites menores de velocidade à passagem de trens em vários trechos da malha paulista da ALL. Esse tipo de restrição diminui a capacidade real de tráfego. Hoje em dia, é um problema que limita a expansão das mercadorias transportadas, mas que começa e termina dentro dos próprios trilhos da empresa. Em futuro próximo, será um gargalo para o sistema como um todo.
Se não houver mais imprevistos, o que é sempre duvidoso no caso da estatal Valec, a Ferrovia Norte-Sul chegará à divisa de São Paulo até o fim de 2014 e precisará entrar na malha da ALL para levar os grãos do cerrado goiano ao porto de Santos, o que agrava a situação. Sem um aperto nas exigências por mais produtividade nas linhas da ALL, corre-se o risco de deixar esse novo trecho da Norte-Sul sem nenhuma utilidade concreta, por falta de condições operacionais que permitam a entrada dos comboios na malha paulista.
Quando cobraram dos técnicos uma atitude mais enérgica contra a empresa, escalões mais altos do governo ouviram um relato preocupante: a ANTT diz que fiscaliza, pressiona e multa a maior concessionária de ferrovias do país, mas que ela paga menos de 5% das sanções aplicadas e recorre, administrativamente ou nos tribunais, até de advertências.
No primeiro semestre de 2014, a agência reguladora pretende modernizar suas ações de fiscalização. Hoje, o processo de inspeção dos trilhos é feito a olho nu. A intenção agora é colocar um "carro" para percorrer toda a extensão das ferrovias e fazer uma espécie de varredura eletrônica do trajeto. Sensores vão detectar fraturas, bitolas abertas, dormentes ruins, desnivelamentos e tudo o que pode comprometer as operações. Daí resultarão novos limites de velocidade nos trechos críticos, que serão identificados com maior exatidão.
A implantação de computadores de bordo nas locomotivas garantirá o cumprimento das restrições. No acidente da ALL em Rio Preto, o trem ia a 44 km/h, ferindo o limite estabelecido de 25 km/h. Com a informatização, os freios serão acionados diretamente pelos centros de controle das empresas, independentemente da atenção dos maquinistas. Ninguém mais poderá alegar falha humana.
A iniciativa é bem-vinda, mas só com muito otimismo e excesso de panos quentes pode realmente desfazer o mal-estar do governo com a empresa. Ainda não foi digerido, em Brasília, o fato de que a ALL é a única concessionária do país que jamais aplicou os novos tetos tarifários determinados em 2012. Os valores máximos cobrados nos fretes foram revisados pela ANTT, mas a empresa conseguiu decisões judiciais que mantêm suas antigas tarifas.
Ela também entrou em uma briga com a Cosan, em torno do transporte de açúcar, na qual as autoridades do setor se recusam a lhe dar razão. O governo firmou convicção de que a ALL rejeita as cargas de açúcar para usar seus vagões no frete de soja, mais lucrativo, por percorrer distâncias maiores.
Diante de tantos impasses, a área técnica da ANTT já se dedica à minuciosa coleta de informações para abrir um processo que pode tirar a concessão da companhia. Que ninguém se engane: medidas como essa, que envolvem uma empresa com faturamento de quase R$ 4 bilhões por ano, não são tomadas fora do Palácio do Planalto. Ainda mais quando o governo se mostra tão empenhado em finalmente destravar, em 2014, o pacote - atrasadíssimo - de novas concessões de ferrovias. São 11 mil quilômetros de novas linhas e investimentos previstos de quase R$ 100 bilhões.
Por isso, é improvável ver o Planalto adotando uma postura capaz de assustar investidores estrangeiros, que podem confundir facilmente Brasília com Buenos Aires. Há seis meses, a presidente Cristina Kirchner rescindiu os contratos de concessão da ALL, na Argentina. Aqui, não será pouca coisa se o governo fechar o cerco à empresa, mas convém monitorar de perto essa relação tão ameaçada de simplesmente descarrilar.
Fonte: Valor Econômico/Daniel Rittner é repórter especial
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