Os desafios para o cumprimento das cotas PCD no segmento marítimo.
O Brasil é um país pródigo em contradições. E é no campo do direito que melhor se comprova essa sina. De um lado, o país avança na garantia de direitos ao trabalhador, a partir da promulgação do Art. 93 da Lei 8.213/1991, o qual determina às empresas o preenchimento de 2% a 5% dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas com deficiência. De outro, ignora previsões especiais para o ingresso deste grupo de pessoas em determinados segmentos do mercado. É o caso do setor marítimo, onde não se pode evitar o conflito entre a previsão do artigo 93 e as regras inerentes à atividade marítima, dada a sua natureza peculiar, confirmada por normas e exigências diferenciadas.
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A questão basal envolvida na reflexão proposta refere-se à realidade vivenciada pelas empresas marítimas em observância às normas, leis e à fiscalização, que desconsidera o ‘fator segurança’ que alcança pessoas com deficiência em trabalhos a bordo de embarcações. Se, de um lado, está estabelecida que as empresas devem cumprir de forma estrita as exigências de preenchimento das cotas legais direcionadas a beneficiários reabilitados ou a pessoas com deficiência, por outro, verifica-se não haver qualquer procedimento especial para a sua empregabilidade, seja através da verificação de candidatos disponíveis ao preenchimento das vagas, seja quanto à segurança destes profissionais, ao ocuparem cargos no mais alto nível de periculosidade, expostas a situações emergenciais com as quais, eventualmente, poderão lidar com alguma dificuldade.
A expressão aristotélica “devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade” é utilizada comumente para explicar o princípio da igualdade. De acordo com Nery Junior (1999, p.42), “dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”. Verifica-se, contudo, nos tribunais brasileiros a prevalência de rígidas decisões sobre o assunto, assim como a aplicação da norma citada de forma estrita.
Ressalte-se que há uma lacuna no setor marítimo no atendimento, no processo seletivo e na capacitação física com regras destinadas a este grupo de pessoas. Nesse sentido, é inegável que a lei que trata da cota de cargos destinados a pessoas com deficiência não contempla as exceções, como é o caso dos trabalhadores aquaviários que prestam serviço exclusivamente a bordo de navios.
A título exemplificativo, recente edital da Marinha, aberto para o cargo de ‘moço de máquinas’, exige dos candidatos comprovação médica da condição física, realização de provas de natação e de permanência dentro d’água sem qualquer auxílio. Ademais, são inúmeras as previsões legais e normativas rígidas acerca da saúde e segurança do trabalhador de uma empresa marítima, nas diretrizes nacionais e internacionais, com destaque para funções de emergência, combate a incêndios, primeiros socorros e técnicas de sobrevivência pessoal.
Seriam tais normas e requisitos discriminatórios? A toda evidência, o que se assegura é o bem da vida, o princípio da igualdade e da dignidade da pessoa humana. É de notória conclusão que a pessoa com deficiência poderia ter riscos à sua segurança em determinadas funções no setor marítimo, indo, assim, de encontro aos preceitos da Justiça do Trabalho quanto à segurança e saúde dos trabalhadores.
A quais responsabilidades responderia uma empresa que, no caso de um incêndio a bordo de uma embarcação, em que fosse necessária evacuação imediata da tripulação, a pessoa com deficiência viesse a falecer em razão de sua limitação física? Vale lembrar que a marinha do brasil não abre qualquer exceção a pessoas com deficiência e não apresenta um treinamento específico para PCDs.
Em conclusão, faz-se necessário sublinhar que os direitos fundamentais não são absolutos. Existindo um conflito, haverá a prevalência de um sobre o outro, através dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, com o objetivo de ser alcançado o princípio da dignidade humana.
Este princípio não deixa de ser atendido quando a Marinha do Brasil, por exemplo, deixa de prever condições específicas para o ingresso de pessoas com deficiência para seguir na carreira de marítimo. Trata-se de atender à dignidade de cada trabalhador, que permanece com seu direito ao trabalho – em outros cargos e oportunidades – e com o bem da vida preservado.
Atualmente, gira em torno de 68 o número de profissionais marítimos PCDs no Brasil, tanto em carreiras de oficiais como da guarnição, comprovando o afunilamento de profissionais marítimos no mercado e clara a inexistência de um número suficiente deste grupo de pessoas para desempenhar atividades no setor. Logo, é inegável a total impossibilidade de que todas as empresas que atuam exclusivamente com estas atividades cumpram com a cota prevista no art. 93. da Lei 8.213/91.
Uma possível solução imediata a este cenário seria a aplicação legal de instauração obrigatória do procedimento especial pela ocorrência de motivo grave ou relevante que impossibilite ou dificulte o cumprimento da legislação trabalhista por pessoas ou setor econômico sujeito à inspeção do trabalho.
Contudo, a previsão não tem sido a realidade vivenciada pelas empresas, que são fiscalizadas e regularmente autuadas pela letra fria da lei, sem que se oportunize a narrativa que ora se apresenta.
Raquel Guedes é advogada trabalhista, sócia do escritório Lopes Pinto Advogados- LPLaw