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Desestatização e o Porto sem Vitória

É normal que os portos sejam denominados a partir de suas cidades. No Brasil, há vários exemplos: Porto de Ilhéus, Porto de Salvador, Porto de Natal... e a lista segue. Não é à toa. Afinal, os tradicionais portos brasileiros foram fundados e/ou cresceram junto às cidades onde se localizam.

A sobreposição de histórias e trajetórias entre cidades e portos brasileiros aconteceu até as décadas de 1980/1990. Nesse tempo, cidade e porto cresciam em sintonia pelo compartilhamento de interesses comuns: a cidade servia ao porto com sua praça de comércio, com trabalhadores e com infraestrutura, e o porto dava à cidade empregos, diversidade em produtos e dinamismo econômico.

O que se segue são relatos de conflitos: a cidade atrapalha a operação portuária e o porto incomoda a dinâmica urbana. Novos portos se expandiram para áreas greenfield, longe dos desafios dos centros urbanos, com infraestruturas mais modernas e coerentes com o mercado internacional.

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Mas, os tradicionais portos urbanos brasileiros, muitos localizados nos centros históricos de capitais, seguem como gatos de 7 (ou mais) vidas: ainda que com infraestruturas limitadas, se reinventam, encontram novas vocações e condições para se manterem competitivos tendo como referência o mercado e dinâmicas internacionais.

É nesse cenário que proponho refletirmos sobre a desestatização em curso: o porto que leva a cidade em seu nome e história mas é pensado e tratado sem vínculo com o lugar onde está.

Porto

Foto de Júlia Eugência Guelli. Acervo do Observatório Cidade e Porto.

Modernizar a gestão portuária

A desestatização do Porto de Vitória tem sido falada publicamente desde 2019. Os chamados “estudos da modelagem” envolveram uma consultoria externa feita pela Price Waterhouse Cooper, contratados pelo BNDES, o envolvimento direto da autoridade portuária Codesa e demais órgãos associados à área portuária junto ao Ministério da Infraestrutura, além daqueles que estão conduzindo o Programa de Parcerias de Investimento, o PPI.

No caso específico da desestatização da Companhia Docas do Espírito Santo, a Codesa, o processo envolve o que será feito com a empresa pública e com os portos organizados de Vitória e Barra do Riacho. Grande parte das discussões sobre a desestatização trataram do destino da Codesa, do modelo que seria escolhido para a gestão portuária, da forma de exploração do porto e cobrança das tarifas, dos investimentos que deverão ser feitos e do prazo da concessão.

Figuras recorrentes no debate são o Secretário Nacional de Portos e Transportes Aquaviários, Diogo Piloni, e o Presidente da Codesa, Julio Castiglione. Palavras que se repetem em suas falas são eficiência, flexibilização, agilidade, modernização, redução de custos, desburocratização, concorrência. Se ainda tínhamos dúvida sobre o que se está tentando resolver, a resposta passa por aqui: gestão portuária.

A miopia do modelo

Este momento de desestatização deve ser compreendido em um processo mais longo de reformas portuárias. O pesquisador português Vitor Caldeirinha sugere que estamos participando de uma 2ª onda de reformas portuárias, momento em que os países — e o Brasil incluído — buscam afinar iniciativas de aumento do capital privado e melhoria na eficiência portuária iniciadas mundo afora nas décadas de 1980/1990.

Os estudos da modelagem têm se preocupado muito com o formato, a estrutura financeira de sustentação, os investimentos e direcionamentos dos ativos… Tudo muito relevante. Mas podemos aproveitar esta nova etapa da reforma portuária para irmos além das questões estritamente técnicas.

O aspecto que desejo chamar atenção é que a eficiência deve ser um dos objetivos de uma proposta de revisão da governança portuária. Mas, repensar a governança portuária e colocar a eficiência na gestão portuária como meta é fecharmos os olhos para o papel do porto no território.

O que tem sido esquecido ou até mesmo deixado de lado na agenda da reforma portuária é que a busca da eficiência como fim em si mesma desconsidera o papel central do porto no desenvolvimento econômico regional. E essa sim deveria ser a pauta da reforma portuária: uma proposta com visão de longo prazo e abordagem sistêmica dos portos brasileiros buscando a eficiência portuária associada a um projeto de desenvolvimento econômico. O porto em seu lugar.

O Porto sem Vitória

Um bom ponto de partida para falar do Porto de Vitória e da capital Vitória é aquela antiga pergunta “Quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha?”. O porto organizado só acontece no século XX, mas os cais ou trapiches espalhados pela ilha de Vitória são essenciais para contar a história da cidade.

Após décadas — ou séculos — de crescimento compartilhado entre cidade e porto, parece que o divórcio se consolidou. A tão aclamada vocação portuária capixaba, motivo de orgulho para políticos, empresários e comunidade, parece ter sido enterrada com o fim do Fundap. O Porto de Vitória já teve sentença para encerramento de operações por céticos que acreditavam que a pouca profundidade da Baía de Vitória e as limitações de acessos e retroáreas não eram compatíveis com as evoluções do mundo marítimo-portuário. A gestão pública há muito tempo parece ter se esquecido do porto, ele não faz parte das políticas públicas municipais ou estaduais.

Aqueles que hoje pensam, planejam e gerem o porto agem como se estivéssemos lidando com um pacote fechado, sem conexões com o território, sem impactos para além dos muros. Parecem pensar o porto a partir de uma lógica estritamente comercial, subordinada à competição concorrencial. Pretendem administrar o porto somente como negócio portuário, transformando a autoridade portuária em um síndico ou gestor de shopping. Planejam transformar o Porto de Vitória em um “porto boutique”.

O processo de desestatização do Porto de Vitória reflete e reforça a lógica de se pensar o porto sem a cidade. Essa triste tradição brasileira de segregação porto (sem) cidade que já tem sido substituída mundo afora por boas práticas de promoção do ser cidade portuária.

Para além da questão cultural, estamos perdendo uma oportunidade porque esquecemos da aula de gestão portuária ensinando que é função central dos portos garantir o desenvolvimento econômico das regiões.

Flavia NicoFlavia Nico é doutora em Ciências Sociais, membro do Comitê Executivo da Wista Brazil, consultora no iPORTS Consultoria e Treinamentos, fundadora do Observatório Cidade e Porto/UFES e pesquisadora associada no LabPortos/UFMA

 

 

 

 

 

 

 

 

 



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