Recentemente objeto de um contestado texto substitutivo produzido na Câmara dos Deputados, o projeto de lei (PL) 757/2022 caminha na direção contrária de sua proposição original e tende a consolidar a não-regulação econômica do serviço de praticagem, no Brasil. Isso porque não é o fato de a expressão “regulação econômica” constar no preâmbulo legal ou ser repetida ao longo do texto que faz uma lei ser uma lei reguladora. O que importa é o conteúdo da lei, entendido de forma sistêmica, conteúdo este que, no caso do aludido projeto, deixa muito a desejar em termos do estabelecimento de uma real regulação econômica do monopólio constituído pelo serviço de praticagem.
O novo texto substitutivo do PL 757/2022, aprovado em 23/11/2023, em sua letra, outorga à Autoridade Marítima, exercida pela Marinha do Brasil, a competência para exercer a regulação econômica do serviço de praticagem, mas seu conteúdo passa longe dos aspectos substanciais desejados. A Autoridade Marítima, pelo texto substitutivo recebe apenas formalmente, não substancialmente, a competência regulatória da praticagem em seus aspectos econômicos. Essa outorga formal de competência não se vê acompanhada do necessário empoderamento institucional para tanto, nem do mínimo instrumental necessário.
De início, cabe destacar que a Autoridade Marítima, há tempos, defende que a regulação econômica da praticagem seja exercida por outra entidade que não ela própria, assegurando-lhe a competência para a regulação técnica do serviço, o que já faz há dois séculos, com excelentes resultados. A Autoridade Marítima defende a dissociação entre o exercício da regulação técnica e o exercício da regulação econômica do serviço de praticagem, os quais deveriam ser outorgados a instituições diferentes. Apresenta bons argumentos para isso, como a necessidade de especialização em assuntos econômicos, a vocação institucional específica e, mais recentemente, como afirmado em nota à imprensa oficial, o risco de captura do ente regulador por interesses privados, em detrimento do interesse público.
O fato de a Agência Nacional de Transporte Aquaviário (Antaq), entidade vocacionada para a regulação econômica, ser prevista no texto substitutivo do PL 757/2022 como integrante de comissão ad hoc e parecerista consultiva junto à Autoridade Marítima não valoriza a contribuição muito maior que essa instituição poderia brindar à regulação do serviço de praticagem. No estado atual das coisas, a Antaq não fará mais do que expressar opinião a um outro ente regulador igualmente não-empoderado, além de não-vocacionado para o mister regulatório que lhe é atribuído. Como está, o texto substitutivo transforma a Autoridade Marítima em um ente regulador econômico apenas formalmente, sem substância, e limita tremendamente a atuação da Antaq, reduzindo a grandeza de seu papel e afastando-a completamente de sua real vocação. Um verdadeiro desperdício de capacidades institucionais, experiências profissionais e talentos pessoais.
Por uma questão de justiça, em favor da posição adotada pelo PL 757/2022, é importante destacar que também há bons argumentos em prol da reunião da regulação técnica e da regulação econômica em um único órgão ou entidade. O mais importante deles, e que de certa forma resume todos os demais, é o de não se permitir que interesses econômicos se sobreponham às questões relativas à segurança da navegação, o que poderia resultar no aumento do número de acidentes marítimos, assim afetando negativamente a parcela mais significativa do comércio exterior brasileiro, podendo culminar em graves prejuízos para a economia nacional. Segurança deve vir primeiro sim, sem dúvida, o que não está em discussão. Mas a regulação econômica não pode ser simplesmente dificultada ou posta de lado e, uma vez implementada, precisa ser eficaz, eficiente e efetiva, não apenas uma mera formalidade.
Entretanto, o que está verdadeiramente no vórtice das discussões não é se a regulação econômica deve ser exercida por um ou outro órgão, por uma ou outra entidade governamental. O que constitui o centro do debate é o empoderamento institucional do ente regulador, bem como a atribuição de instrumentos regulatórios apropriados a esse ente, seja ele a Autoridade Marítima, a Antaq ou outro qualquer. Os desejados instrumentos devem servir para fazer valer os princípios regulatórios, entre eles os princípios da continuidade e da transparência, os quais passaram longe das preocupações do texto substitutivo do PL 757/2022.
A continuidade regulatória diz respeito à atuação permanente do ente regulador junto aos seus regulados, para que mantenha sempre um alto grau de consciência situacional acerca do mercado, do objeto e dos agentes afetos à regulação exercida. O texto substitutivo do PL 757/2022 prevê a atuação da Autoridade Marítima apenas nos casos em que houver risco de indisponibilidade do serviço de praticagem ou por provocação das partes interessadas, mediante fixação provisória de preços. Ou seja, em quase nada altera a substância do que já está disposto na Lei 9.537/1997, a Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário (Lesta). Muitas vezes, a continuidade regulatória se vê ofuscada por um outro princípio muito caro à regulação de serviços pelo Poder Público, a saber, o princípio da não-intervenção. Mas, não é o caso de um princípio prevalecer sobre o outro. Para que a regulação possa funcionar, ambos devem conviver em harmonia.
De acordo com o princípio da não-intervenção, o poder público somente deve interferir na formação de preços e nos contratos dos serviços regulados quando não for possível que o mercado desses serviços encontre por si só o seu ponto de equilíbrio. Entretanto, isso não quer dizer que o regulador público não deva atuar de forma contínua, sempre tendo informações sobre os preços praticados, os custos envolvidos, a relação custo/benefício atingido e o teor dos contratos firmados: eis aí o princípio da continuidade. A estrutura dos custos envolvidos, em especial, é de particular importância para que o ente regulador tenha plena consciência situacional do mercado regulado e possa atuar de forma célere e precisa quando for necessário.
O texto substitutivo do PL 757/2022 faz justa homenagem ao princípio da não-intervenção ao definir o serviço de praticagem como atividade de natureza privada e ao estabelecer que os preços, em princípio, sejam livremente negociados entre os prestadores e os tomadores do serviço. Em particular, definir o serviço de praticagem como atividade de natureza “puramente” privada suscita questionamentos jurídicos e econômicos, mas, enfim, ter uma definição é melhor do que não ter nenhuma.
Estabelecer que os preços sejam livremente negociados entre prestadores e tomadores do serviço também está no bojo das boas iniciativas do projeto. Entretanto, manter a atuação da Autoridade Marítima sobre os aspectos econômicos da praticagem apenas no caso de possível indisponibilidade do serviço ou por provação dos interessados cria uma situação consolidada de não-regulação, chegando mesmo a impedir que a Autoridade Marítima possa exercer seu novo mister regulatório. A atuação apenas esporádica da Autoridade Marítima na regulação dos aspectos econômicos do serviço de praticagem dá ensejo, no máximo, a um esboço de arbitragem, jamais de regulação.
A transparência regulatória também não foi devidamente tratada no texto substitutivo do PL 757/2022. Além de precisar atuar de forma contínua, para que o ente regulador tenha a apropriada consciência situacional acerca do mercado regulado, também é necessário que prestadores e tomadores de serviço sigam regras estritas de transparência com relação aos contratos firmados, em especial no referente aos preços praticados e à estrutura de custos adotada. Sendo o serviço de praticagem, por definição, constituído de atalaia, lancha de prático e prático, a regulação econômica precisa contemplar a mais completa transparência, no mínimo, quanto a esses itens constitutivos.
Transparência esta, frise-se, de forma contínua, não apenas esporádica. O texto do substitutivo não dota o ente regulador dos instrumentos necessários para exigir, de forma continuada, a conduta transparente tanto dos prestadores quanto dos tomadores do serviço, sendo duvidoso que, ao amparo do novo texto proposto, deixem de ser firmados contratos de praticagem com cláusulas de sigilo que caminham em direção francamente contrária ao princípio da transparência. Cláusulas contratuais dessa natureza podem fazer algum sentido em um mercado de efetiva concorrência, mas nunca em face da regulação de um monopólio, como é o da prestação do serviço de praticagem.
Outro ponto polêmico é o de que o texto substitutivo do PL 757/2022, além de não estabelecer uma real regulação econômica, ainda reduz a amplitude da regulação técnica hoje exercida pela Autoridade Marítima. Isso porque, como bem esclarecido pela Marinha do Brasil em sua nota à imprensa, ao elevar a Escala de Rodízio Única (ERU) do serviço de praticagem à estatura de previsão legal, o novo texto desfaz a autonomia da Diretoria de Portos e Costas, bem como das capitanias, delegacias e agências, em relação a um dos mais importantes instrumentos do lado técnico da competência regulatória, comprometendo a agilidade institucional necessária para regular tecnicamente a praticagem, com a celeridade requerida. Nesse contexto, riscos à segurança da navegação já começam a “boiar” no horizonte.
O PL 757/2022, portanto, na forma do texto substitutivo de 23/11/2023, apenas formalmente atribui a regulação econômica do serviço de praticagem à Autoridade Marítima, sem, contudo, conferir-lhe a necessária substância. Não atende a importantes princípios regulatórios, dois dos quais, pelo menos, o princípio da continuidade e o princípio da transparência, foram claramente negligenciados. Igualmente, não dota a Autoridade Marítima dos instrumentos necessários à atuação eficaz, eficiente e efetiva em seu novo mister regulatório. Além disso, reduz a importância da Antaq em um cenário para o qual se vê especialmente vocacionada a atuar.
Marinha e Antaq sempre manifestaram sua concordância em que a regulação técnica competiria a uma e a regulação econômica à outra, mas o texto substitutivo conseguiu contrariar as duas. O projeto, deturpado de sua proposição original, faz da Autoridade Marítima um ente regulador sem o devido empoderamento para regular os aspectos econômicos do serviço de praticagem, consolidando uma situação de não-regulação. Não sem motivo, em sua nota à imprensa, a Marinha do Brasil afirmou que o novo texto não atende ao interesse público.
Carlos Wellington Leite de Almeida: Auditor Federal do Tribunal de Contas da União (TCU), doutor em Administração pela Universidad de la Empresa (UDE-Uruguai), mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB), diplomado no Curso de Altos Estudos em Política e Estratégia da Escola Superior de Guerra (ESG) e doutorando em Estudos Marítimos na Escola de Guerra Naval (EGN). E-mail: carlosla@tcu.gov.br e carloscwla@gmail.com
PUBLICIDADE