A concessão da hidrovia do rio Madeira é esperada como uma oportunidade para a redução do chamado “Custo Brasil”, a partir do aumento da intermodalidade no transporte de commodities agrícolas produzidos nas regiões Norte e Centro-Oeste, com vistas ao efetivo funcionamento de um “corredor amazônico” de exportação. O rio Madeira, em seu trecho navegável de Porto Velho (RO), capital do Estado de Rondônia, até sua foz, no encontro com o rio Amazonas, nas proximidades de Itacoatiara (AM), constitui uma poderosa via natural de mão dupla. Serve tanto para o escoamento da soja e do milho, bem como outros produtos, dos Estados de Mato Grosso e Rondônia, quanto para o abastecimento de combustíveis e outros gêneros destinados à capital rondoniense. Serve, ainda, para o tráfego diário de pessoas que vivem do rio e dele dependem todos os dias.
A concessão da hidrovia do rio Madeira tem sido objeto de ampla discussão entre os diversos setores interessados, tendo envolvido, entre outras iniciativas, a realização de audiências públicas no Senado Federal e na Assembleia Legislativa do Estado de Rondônia. No Senado, a Antaq e o Ministério de Portos e Aeroportos apresentaram o projeto de concessão, destacando-o como alternativa para superar a reduzida capacidade de investimento do Governo Federal. Junto ao poder legislativo rondoniense, por sua vez, foram discutidos aspectos de interesse regional e local, como os efeitos para o meio ambiente, as comunidades locais e as atividades econômicas tradicionais, como o garimpo.
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O Brasil, como um todo, apresenta natural vocação para o transporte hidroviário, em especial para as chamadas “cargas tipicamente hidroviárias”, caracterizadas por grandes volumes de carga e baixo valor agregado, como é o caso de commodities agrícolas e minerais. Entretanto, estudos da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) avaliam que a exploração econômica do potencial hidroviário brasileiro é, hoje, inferior à metade do que poderia ser, o que introduz grave ineficiência na matriz intermodal de transportes do país.
Conhecido como o “Vice-Rei” dos rios amazônicos, o rio Madeira se encontra atrás apenas do inigualável rio Amazonas em grandeza física e importância econômica, há muito esperando por sua efetiva integração à matriz de transportes brasileira como uma alternativa modal economicamente viável e, potencialmente, muito eficiente. Considerado um dos principais corredores logísticos da bacia amazônica, o segundo maior rio navegável da região aspira a se tornar uma verdadeira hidrovia, com o aporte dos investimentos necessários ao aperfeiçoamento de sua navegabilidade e ao pleno aproveitamento de seu potencial econômico-estratégico.
O Plano Geral de Outorgas Hidroviárias (PGO), concebido pela Antaq, contempla a concessão de seis hidrovias no Brasil, sendo a primeira delas a do rio Madeira. As outras cinco são as dos rios (i) Paraguai, (ii) Tapajós e (iii) Tocantins; a da (iv) barra norte do rio Amazonas; e a (v) Uruguai-Brasil na Lagoa Mirim. Todas essas hidrovias foram selecionadas pela Antaq como aptas à concessão por se constituírem como eixos hidroviários estratégicos, já com carga consolidada, assim podendo captar a atenção e o interesse da iniciativa privada. A concessão da hidrovia do Madeira, experiência pioneira no Brasil, deverá ser por um período de até doze anos, aí incluído um “degrau tarifário” de dois anos, durante os quais a concessionária selecionada conduzirá as atividades necessárias cobrar qualquer tarifa dos usuários.
O rio Madeira, em sua extensão navegável de Porto Velho (RO) até sua foz, no Amazonas, conta com 1075 Km de extensão e largura média de 1 km. Sua bacia hidrográfica constitui 20% de toda a bacia amazônica, sendo, com seus 1,4 milhões de Km², maior em área do que qualquer país amazônico da América do Sul, à exceção do próprio Brasil. Apesar, contudo, de seu gigantismo, continua subaproveitado como via de escoamento apta a reduzir custos logísticos e favorecer o desenvolvimento econômico regional, em especial devido a problemas relacionados à garantia de sua navegabilidade ao longo de todo o ano (Figura 1).
Figura 1 – Extensão da hidrovia do rio Madeira
A hidrovia estende-se por 1075 Km ao longo do baixo rio Madeira, desde Porto Velho (RO), ao sul, capital do Estado de Rondônia, até o encontro com o rio Amazonas, de onde é possível transbordar a carga, notadamente grãos, produzidos em Mato Grosso e Rondônia, para grandes navios de navegação oceânica que adentram o Amazonas. No sentido inverso, combustível, fertilizantes e mercadorias diversas são transportadas para Porto Velho (RO). Fonte: Tribunal de Contas da União.
A proposta da Antaq visa ao aperfeiçoamento da navegabilidade do rio Madeira, mediante garantia, durante todo o ano, do trânsito de embarcações com até três metros de calado (parte da embarcação abaixo da água) e folga abaixo da quilha (distância vertical da parte mais baixa da embarcação ao leito do rio) de meio metro, o que se traduz em uma profundidade mínima de três metros e meio ao longo de todo o percurso navegado. Essa garantia tem como referência a navegação um comboio (conjunto de embarcações que navegam juntas) “padrão”, formado por nove barcaças de duas mil toneladas, agrupadas “três por três”, mas que pode facilmente superar essas expectativas, já havendo o registro de comboios gigantes de até trinta barcaças navegando no Madeira (Figura 2).
Figura 2 – Comboio de grande dimensão com 30 barcaças
Comboio de 30 barcaças agrupadas “5x6”, transportando 60 mil toneladas de soja no rio Madeira, assim demonstrando o enorme potencial do corredor logístico a ser implantado com adequados investimentos de aperfeiçoamento estrutural da navegabilidade hidroviária.
Fonte: https://bncamazonas.com.br/municipios/navegacao-na-amazonia
A navegabilidade na calha do rio Madeira é muito afetada pela sazonalidade, com a profundidade variando muito entre o período de chuvas e o período de seca. Esa característica hidrológica acaba acarretando problemas relativos à segurança da navegação e, por consequência, impondo sérias limitações ao pleno aproveitamento do potencial logístico provido por suas águas. O ano de 2024 registrou uma estiagem recorde, com a menor baixa histórica na profundidade em sessenta anos, tendo chegado a lâmina d’água a apenas sessenta e sete centímetros nas proximidades de Porto Velho (RO), o que, na prática, oblitera quase por completo a possibilidade de navegação, assim comprometendo o escoamento das commodities agrícolas de Mato Grosso e Rondônia, bem como impondo riscos ao abastecimento da capital rondoniense de combustível e outros bens e serviços essenciais (Figura 3).
Figura 3 – Estiagem, perigo à navegação e perdas econômicas
A estiagem recorde na Amazônia, em 2024, fez o rio Madeira descer a nível não visto desde a grande seca de 1967, o que impacta profundamente a navegabilidade hidroviária, com repercussões econômicas de grande relevância, como o aumento dos custos logísticos em geral e o aumento do risco de desabastecimento da capital rondoniense, Porto Velho (RO).
Fonte: https://brasilamazoniaagora.com.br/2024/seca-no-rio-madeira
O uso do rio Madeira como via de transporte se caracteriza, hoje, pela convivência de intensa movimentação de cargas e pessoas com profunda ineficiência operacional. A intensa movimentação de cargas e pessoas, mesmo antes da implantação da hidrovia, decorre da vocação natural do Madeira para servir como corredor logístico. A profunda ineficiência operacional, por sua vez, resulta de problemas relativos à navegabilidade e à segurança da navegação, os quais demandam o aporte contínuo de recursos financeiros, públicos ou privados, para a sua superação.
No que se refere à movimentação, estudos indicam que, entre 2022 e 2023, foram transportadas pelo rio Madeira, em cada ano, dez milhões de toneladas de carga, sendo cinco milhões, a metade, portanto, de soja. Em 2024, entre janeiro e julho, o rio Madeira comportou o transporte de sete milhões de toneladas. Em conjunto soja, milho, combustíveis e fertilizantes, foram responsáveis por noventa e cinco por cento desse total. As previsões da Antaq incluem o aumento da carga transportada pelo Madeira para vinte milhões de toneladas em 2030 e vinte e oito milhões de toneladas até 2057, praticamente triplicando o volume atualmente transportado. Além disso, o movimento de passageiros chega a mais de quatrocentos mil por ano, em uma população ao longo do rio que gira em torno de oitocentos mil habitantes.
A superação dos problemas que fazem incorrer em profunda ineficiência operacional demanda o aporte de recursos que esbarram na limitada capacidade de investimento público do Governo Federal, o que torna essencial uma parceria afirmativa e construtiva com a iniciativa privada. A garantia dos investimentos privados é essencial para viabilizar a transformação do Madeira de simples rio navegável em efetiva hidrovia, disponível para grandes cargas durante todo o ano, com redução de custos para o usuário e aumento da eficiência operacional do modal hidroviário ali instalado.
Os recursos necessários, estimados em R$ 590 milhões, serão garantidos pelas Centrais Elétricas Brasileiras S.A. (Eletrobras), no âmbito do Programa de Redução Estrutural de Custos de Geração de Energia na Amazônia Legal e de Navegabilidade do Rio Madeira e do Rio Tocantins (Pró-Amazônia Legal), disposto na Lei 14.182/2021 e regulamentado pelo Decreto 11.059/2022. Afasta-se, com a previsão de recursos do Pró-Amazônia Legal, o risco de que haja solução de continuidade na iniciativa de implantação da hidrovia pela concessionária selecionada. A Antaq estima que a implantação da hidrovia do rio Madeira, mediante concessão, reduzirá em 24% o custo logístico do transporte de grandes cargas.
O aperfeiçoamento da navegabilidade no rio Madeira será buscado por meio da concessão à iniciativa privada com atenção a quatro linhas de atuação principais: (i) adequar prestação de serviços à variação hidrológica; (ii) atender à ampliação de demanda de granéis agrícolas em Mato Grosso e Rondônia; (iii) regularidade no abastecimento de Porto Velho (RO); e (iv) incremento da segurança da navegação. A ideia é atuar pontualmente nos setenta e cinco trechos críticos à segurança da navegação já identificados, não havendo uma intervenção generalizada em toda a extensão do percurso.
O principal compromisso da concessionária selecionada deverá ser o de manter a hidrovia aberta à navegação durante todo o ano para embarcações com até três metros de calado, com folga abaixo da quilha de meio metro, o que significa dizer manter a profundidade mínima do rio em três metros e meio, mesmo nos períodos de seca. Para tanto, a cesta de serviços a ser oferecida ao usuário deverá incluir sete itens: (i) dragagem; (ii) derrocamento; (iii) hidrografia; (iv) auxílios à navegação; (v) gestão do tráfego; (vi) gestão ambiental; e (vii) instalações portuárias públicas de pequeno porte (IP4). Esses serviços, em conjunto, visam a atender de forma permanente a um esperado aumento crescente na demanda tendencial da carga hidroviária transportada pelo rio Madeira Figura 4).
Figura 4 – Dragagem necessária à manutenção da profundidade
A dragagem contínua se constitui como um dos mais importantes itens da cesta básica de produtos a serem providos pela concessionária selecionada. É serviço essencial à manutenção da profundidade mínima de 3,5 metros, destinada a permitir o trânsito de embarcações com até 3,0 metros de calado durante todo o ano. A concessionária selecionada terá essa manutenção de profundidade mínima como meta essencial. Fonte: https://ibl.org.br
A dragagem contínua da calha do rio Madeira, em especial, é de importância fundamental no contexto do esforço para adequar a prestação de serviços à variação hidrológica. Com a dragagem, grandes comboios, com até três metros de calado, e embarcações de variados tipos poderão navegar ao longo da hidrovia durante todo o ano, assim elevando a eficiência do modal hidroviário disponibilizado, aumentando o fluxo de mercadorias e reduzindo o risco de desabastecimento da cidade de Porto Velho (RO), capital do Estado de Rondônia. Além disso, a dragagem evitará a necessidade de desmembramento dos comboios quando da passagem por trechos críticos, uma operação onerosa e demorada, que importa em ineficiência operacional e custos adicionais.
No que se refere ao aspecto ambiental, a Antaq se empenha em destacar que as intervenções mais incisivas na calha do rio Madeira, como as ações de dragagem, acima referidas, e as ações de derrocamento, serão apenas pontuais, limitadas aos trechos críticos já identificados e devidamente mapeados. Como visto, são apenas 75 trechos pequenos ao longo de 1075 Km de hidrovia, o que significa realizar apenas uma intervenção, em média, a cada 14 Km, aproximadamente. Além disso, essas ações de dragagem e derrocamento estão planejadas para serem o menos intrusivas possível.
Assim, por exemplo, espera-se que a dragagem total do Madeira monte a cerca de dois milhões de metros cúbicos por ano. Para que se tenha uma ideia do quão pouco essa previsão representa em termos de impacto ambiental, nos Estados Unidos, na hidrovia do rio Mississipi, similar em extensão à do Madeira, mas com muito menor volume de água, são dragados cerca de noventa milhões de metros cúbicos, anualmente.
Também não estão sendo esquecidas pelo Governo Federal e pela Antaq as questões referentes às comunidades locais ribeirinhas e às atividades econômicas tradicionais, como o garimpo no leito do rio Madeira. Todos os interesses envolvidos estão sendo levados em conta no planejamento da concessão e na modelagem econômica pertinente, além de abertamente debatidos nas audiências públicas, a exemplos das já realizadas na Alero e no Senado Federal. A modelagem econômica da concessão tem sido elaborada pela Infra S.A., empresa pública brasileira, vinculada ao Ministério dos Transportes, que já conta com experiência na modelagem de arrendamentos portuários.
A tarifa a ser cobrada pelo uso da hidrovia prima pelos princípios da (i) anterioridade, (ii) modicidade, e (iii) seletividade. Quanto à anterioridade, a tarifa não será cobrada de imediato, mas somente dois anos após o início da concessão, assim instituindo um “degrau tarifário”, para permitir a anterior adaptação dos usuários da hidrovia. Quanto à modicidade, prevê-se a cobrança tarifária do valor de R$ 0,80 (oitenta centavos de Real) por tonelada transportada, inferior às previsões iniciais, que chegavam a US$ 1,00 (um Dólar estadunidense) por tonelada. Finalmente, quanto à seletividade, somente os usuários transportadores de grandes cargas hidroviárias pagarão pelo uso da hidrovia, isentando-se embarcações regionais e de passageiros, entre outras.
Importante é frisar que não se trata, como tem sido ocasionalmente veiculado, da privatização do rio Madeira. Os rios brasileiros, por definição constitucional e legal, além da boa lógica, não são sujeitos a qualquer hipótese de privatização. O que se está buscando transferir à iniciativa privada, diante da incapacidade governamental de alocar mais recursos, é a execução de atividades hoje realizadas pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), para que recursos privados possam contribuir na superação das limitações orçamentário-financeiros e viabilizar o aperfeiçoamento da navegabilidade em um rio gigante, que se constitui como corredor logístico de primeira importância para a região amazônica.
A concessão da hidrovia do rio Madeira sinaliza, portanto, uma singular oportunidade no esforço político-econômico voltado à redução do chamado “Custo Brasil”, que drena a competitividade dos produtos brasileiros no exterior, bem como impõe pesado ônus de ineficiência ao mercado interno. Com a esperada transformação do Madeira de um simples rio navegável em uma hidrovia efetivamente implantada, busca-se estabelecer o funcionamento permanente de um “corredor amazônico” de exportação. Os benefícios esperados com a implantação da hidrovia incluem, entre outros: (i) geração de emprego e renda; (ii) manutenção da profundidade mínima de três metros e meio, durante todo o ano; (iii) monitoramento contínuo dos auxílios à navegação; (iv) cobrança tarifária somente quando o usuário já puder usufruir dos benefícios, estimados para dois anos após o início da implantação; (v) dragagem permanente; e (vi) fluxo ininterrupto de combustível e mercadorias em geral para a cidade de Porto Velho (RO), capital do Estado de Rondônia.
Referências
ALERO. Assembleia Legislativa do Estado de Rondônia. Audiência pública: 1º plano geral de outorgas de hidrovias. Porto Velho: Alero, 2023. Vídeo online (3h 53min 20seg). Disponível: <https://www.youtube.com/watch?v=jzeZIdqnv5c>. Acesso em 21 out. 2024.
ANTAQ. Agência Nacional de Transportes Aquaviários. Hidrovia do Rio Madeira: definições iniciais do projeto de aperfeiçoamento da navegabilidade. Apresentação na Assembleia Legislativa do Estado de Rondônia, Porto Velho, Alero, 31/11/2023.
BE News. Concessão do Rio Madeira será em 2025. Santos: TV BE News, 2024. Vídeo online (4min 05seg). Disponível: <https://www.youtube.com/watch?v=Oc3GAxSle3g>. Acesso em 12 set. 2024.
FIEAM. Federação das Indústrias do Estado do Amazonas. Hidrovia do Rio Madeira: nova era de navegação e economia. Manaus: FIEAM, 2024. Vídeo online (3min 32seg). Disponível: <https://www.youtube.com/watch?v=jiO3nGn74JA>. Acesso em 29 jun. 2024.
INFRA S.A. Concessão do Rio Madeira: Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental – EVTEA de concessão da Hidrovia do Rio Madeira. Brasília: Infra S.A., 2024.
NORTE Rondônia. Finalização: projeto de concessão da hidrovia do Rio Madeira. Porto Velho: TV Norte Rondônia, 2024. Vídeo online (1min 42seg). Disponível: <https://www.youtube.com/watch?v=aFviZULWnS0>. Acesso em 11 set. 2024.
SF. Senado Federal. Audiência na CI debate concessão de hidrovias no país. Brasília: Agência Senado, 10/9/2024. Vídeo online (2h 30min 30seg). Disponível: <https://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2024/09/ao-vivo-audiencia-na-ci-debate-concessao-de-hidrovias-no-pais-2013-10-9-24>. Acesso em 30 out. 2024.
Carlos Wellington Leite de Almeida é auditor federal do TCU; Especialista em Hidrografia pela DHN/MB; Doutorando em Estudos Marítimos pela EGN/PPGEM. E-mail: carlosla@tcu.gov.br