As agências reguladoras brasileiras – órgãos que controlam a prestação de serviços essenciais à população – vivem uma crise de identidade. Bombardeadas por indícios de nepotismo, reclamações públicas para endurecer as cobranças junto a grandes empresas e ceticismo quanto a sua independência, as autarquias naufragam em questionamentos em torno de sua eficiência e lisura.
A situação exposta pela operação Porto Seguro, da Polícia Federal, em que três (Antaq, ANA e Anac) dos 10 órgãos nacionais de regulação tiveram diretores acusados de vender pareceres técnicos ou fazer uso inadequado do cargo, foi a mais visível de uma série de escândalos nas últimas semanas. Em novembro, o gerente-geral de toxicologia da Anvisa, Luiz Cláudio Meirelles, foi demitido após apontar irregularidades na liberação de sete agrotóxicos. Indignado, Meirelles recorreu às redes sociais para tornar público o esquema. No último dia 7, a seção gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil entregou ao Tribunal de Contas da União uma representação contra a Anatel “pela manifesta deficiência na fiscalização e no acompanhamento da qualidade da prestação de serviços” com empresas de telefonia móvel e fixa.
– As agências avançaram nos últimos anos em transparência e blindagem aos interesses privados, mas ainda estão longe de cumprir suas atribuições. É preciso aumentar o repasse orçamentário, evitar a captura política dos cargos estratégicos e exigir prestação de contas para que entreguem o que a sociedade espera delas – afirma Floriano Azevedo Marques, professor de direito administrativo na Universidade de São Paulo (USP).
A seguir, especialistas detalham os quatro problemas das agências regulatórias no Brasil – e o que é preciso fazer para superá-las.
Apenas um terço do orçamento é repassado
Campanhas de conscientização, salários capazes de atrair profissionais de ponta e intensa fiscalização costumam ser estratégias das agências reguladoras de países desenvolvidos para buscar melhoria na prestação de serviços fundamentais à população. No Brasil, o baixo orçamento impede que as autarquias usem da mesma receita.
Neste ano, apenas R$ 3,1 bilhões dos R$ 8,5 bilhões previstos em orçamento foram efetivamente liberados para as agências de regulação, mostra um levantamento da ONG Contas Abertas. A maior parte dos gastos foram em pagamento de salários e para cobrir os custos de funcionamento dessas instituições. Uma fatia ínfima foi destinada a aperfeiçoar seus instrumentos de fiscalização.
– O governo superdimensiona o orçamento das agências reguladoras, mas direciona parte dos recursos para a chamada “reserva de contingência”, um instrumento para inflar o superávit primário – explica Gil Castello Branco, presidente da Contas Abertas.
As agências mais importantes, com orçamentos mais polpudos, são as que têm maiores volumes contingenciados. A Anatel, acusada de deficiência no controle de serviços de telefonia, recebeu até dezembro R$ 465 milhões, enquanto R$ 1,6 bilhão permaneceu com a União.
– Há taxas e fundos criados justamente para financiar as agências, mas não chegam ao seu destino. O resultado são restrições de pessoal para fazer a fiscalização ou atuar estrategicamente no conselho diretor – explica Floriano Azevedo Marques, professor de direito da USP.
O enfraquecimento dos quadros coloca em xeque projetos importantes. A Secretaria de Portos, vinculada ao Ministério dos Transportes, teve de nomear às pressas dois funcionários de carreira para assumir a diretoria na Antaq, depois que o ex-diretor Tiago Pereira Lima foi exonerado em razão de indiciamento pela Polícia Federal. Motivo da pressa: a demissão de Lima deixara a agência com apenas um diretor – legalmente impedida de licitar novos portos e terminais, inviabilizando temporariamente o projeto de R$ 54 bilhões do governo para modernizar o setor.
Falta de metas prejudica fiscalização
Nos últimos três anos, passaram a recair com mais força sobre as agências o papel de fiscalizar a qualidade dos serviços. Incumbidas até então principalmente de zelar pelas regras de concorrência e elaborar pareceres técnicos, as autarquias foram pressionadas pela explosão das classes C e D a acompanhar de perto a eficiência de serviços como planos de saúde e de telefonia.
– O aumento do consumo piorou a qualidade de alguns serviços essenciais, e as agências não estavam preparadas para evitar danos ao consumidor – explica Carlos Thadeu de Oliveira, gerente técnico do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
Com atuação considerada discreta, parte das agências passaram a ter posturas reativas: apenas depois que o Procon de Porto Alegre proibiu a venda de novas linhas de telefonia móvel na Capital gaúcha, em julho, a Anatel endureceu a postura em relação às operadoras em todo o país.
Para especialistas, as fragilidades na fiscalização são consequência da falta de planejamento e de metas claras para orientar a atuação das autarquias – motivadas, por sua vez, à inexistência de cobrança por eficiência nas agências.
– Nos Estados Unidos, as agências precisam apresentar relatórios claros com os resultados do ano e as metas para o ano seguinte. No Brasil, a única obrigação é apresentar um balanço contábil – explica Carlos Ari Sundfeld, professor da FGV.
O gargalo parece estar atraindo a atenção do poder público. Na quarta-feira passada, foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado um projeto que obriga os diretores das agências reguladoras a apresentarem anualmente um balanço de suas atividades.
O Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação (Pro-Reg), órgão ligado à Casa Civil criado em 2007, lançou no ano passado um índice para acompanhar a eficiência das autarquias. De acordo com Jadir Dias Proença, coordenador técnico do Pro-Reg, os indicadores ajudarão a acompanhar a evolução das agências no atendimento à população.
– Os indicadores são aferidos semestralmente, por meio de relatórios enviados pelas agências e pelos dados coletados pelo programa ao longo da execução das ações – explica Proença.
Governo usaria autarquias para suportar seus projetos
Em setembro deste ano, o governo federal apresentou seu plano para reduzir a conta de luz. Além de eliminar algumas taxas embutidas nas tarifas, as concessionárias de energia teriam a opção de antecipar a renovação de contratos que venceriam em 2014 e 2015 por mais 20 anos, desde que aceitassem reduzir sua remuneração. Apesar de beneficiar consumidores, o plano foi dilacerado pelo mercado. Empresas privadas disseram que as novas condições causariam perdas bilionárias, e companhias que toparam a proposta do governo foram punidas pelos acionistas – as ações da Eletrobras chegaram a cair quase 50% em dois meses. Para especialistas, o alvoroço poderia ter sido evitado se a Aneel tivesse feito seu trabalho.
– Seria obrigação da Aneel alertar o governo de que essa intervenção seria prejudicial ao setor no longo prazo, pois aumentaria o risco jurídico para futuros investimentos. Mas a agência fez o contrário: defendeu o projeto do governo – explica Juarez Freitas, professor de direito em administração pública na PUCRS e na UFRGS.
No início de dezembro, em audiência no Congresso, o diretor-geral da Aneel, Nelson Hübner, defendeu a proposta do governo e disse que o projeto foi amplamente debatido com empresas. Analistas, no entanto, suspeitam da isenção da fonte: Hübner circula por altos cargos do governo desde 2002. Em 2003, foi chefe de gabinete da então ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff. Povoadas por diretores que são aliados políticos de longa data do governo, além de vinculadas informalmente a ministérios, as agências estariam sem filtro técnico e sendo usadas para sustentar projetos do Executivo. O uso da Anac para licitar a privatização de aeroportos, assumindo caráter executor em vez de regulador, é outro exemplo. Com isso, a visão isonômica sobre empresas, usuários e governos fica comprometida, explica Carlos Ari Sundfeld, professor de direito administrativo na Fundação Getulio Vargas:
– Muitas vezes, o Executivo acaba sabotando essas autarquias para viabilizar seus projetos em setores estratégicos.
Apadrinhamento aumenta risco de corrupção
A nomeação de aliados políticos do governo para dirigir agências reguladoras, muitas vezes, sem experiência ou qualificação técnica para o cargo, tem sido apontada como uma das principais chagas para a eficiência dessas instituições. A Operação Porto Seguro, da Polícia Federal, mostrou que as indicações aos cargos de chefia, quando feitas seguindo apenas os critérios políticos, podem ampliar o risco de corrupção e a parcialidade em pareceres técnicos.
– As agências acabaram se tornando mais um instrumento da governabilidade: o governo posiciona aliados políticos em cargos estratégicos para garantir apoio no Congresso. Evidentemente, as instituições não podem funcionar desse jeito – afirma Claudio Abramo, diretor da ONG Transparência Brasil.
Especialistas lembram que o único crivo pelo qual os diretores passam antes da nomeação é a sabatina do Senado – apontada por muitos como inócua. Em países desenvolvidos, como França e Espanha, aliados do governo também têm espaço nas agências, mas são exigidos deles experiência em cargos semelhantes na iniciativa privada ou formação em curso superior. Nos Estados Unidos, o governo costuma buscar na iniciativa privada profissionais de ponta para assumir as agências de regulação.
– Os diretores da ANA e da Antaq (Paulo Vieira e Tiago Pereira Lima) indiciados pela Operação Porto Seguro não tinham nenhuma experiência em hidrologia ou transportes. Isso é inaceitável para órgãos da importância das agências de regulação – afirma Juarez Freitas, professor de direito de PUCRS e UFRGS.
O histórico de apadrinhamento político é tão antigo como as próprias autarquias. Quando foi criada a ANP, em 1998, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso indicou então o genro, David Zylbersztajn, para a diretoria. A oposição enxergou nepotismo na nomeação. Entre 2003 e 2004, uma série de regras foram criadas para ampliar a presença de especialistas no corpo técnico das agências. A indicação aos cargos de chefia, no entanto, continuaram à mercê de quem está no poder.
Fonte: Zero Hora/Erik Farina
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