O tempo firme na BR-163 era boa notícia para caminhoneiros como Arcádio Lukianitz, 51, mas também convite à imprudência.
“A gente se obrigava a seguir viagem mesmo cansado, para aproveitar o tempo bom. No dia seguinte, podia chover e todo o mundo atolar”, diz o gaúcho de Santa Rosa.
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Desde o fim de 2019, essa incerteza não existe mais.
Após 43 anos, a rodovia federal responsável pela maior parte do escoamento de soja e milho no país está totalmente asfaltada até o porto de Miritituba (PA), de onde os grãos seguem para a exportação.
O caminhoneiro que sai de manhã de uma cidade como Sorriso (MT), maior produtora de soja do país, pode se planejar para dormir no meio do caminho e chegar até o fim do dia seguinte ao porto, a 1.070 km.
O asfaltamento da rodovia é apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro como uma das grandes obras de seu governo.
Emocionado, ele discursou no último dia 14 de fevereiro no mesmo ponto da estrada, no sul do Pará, em que o general Ernesto Geisel declarou a estrada aberta, em outubro de 1976. Na época, era apenas um caminho de chão em meio à floresta amazônica.
A passos lentos, a estrada foi asfaltada ao longo de décadas.
O atual governo foi responsável pelos últimos 51 km, ao norte do município de Novo Progresso (PA), que agora deve experimentar um boom numa região já com grande pressão sobre o ambiente.
Desde o fim da obra, o preço do frete caiu 35%, e o fluxo de grãos de Mato Grosso para o norte aumentou.
Em 2019, a circulação média foi de 2.500 caminhões por dia. O aumento previsto pelo Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) para 2020 é de 30%.
Os atoleiros que literalmente tiravam o sono de caminhoneiros como Lukianitz não existem mais, mas a lista de problemas segue extensa.
Buracos tomam grandes trechos, a sinalização é deficiente, e os acidentes são frequentes. A Folha percorreu 1.500 km de Sorriso (MT) a Santarém (PA), entre 17 e 21 de fevereiro. Cinco dias de viagem cujos detalhes estão a seguir.
Dia 1: frete caiu, agora faltam duplicação e ferrovia, diz produtor
O trecho de 86 km entre Sorriso e Sinop é, desde 2014, responsabilidade da concessionária Rota do Oeste, da Odebrecht. Quem está habituado ao alto padrão de vias administradas pela iniciativa privada não chega a se impressionar.
A pista tem desníveis, rachaduras e trechos sem acostamento. A sinalização é apagada, e o sinal mais forte da presença da empresa é o pedágio de R$ 7 por eixo.
Apenas um pequeno trecho em Sinop tem pista dupla. “Sem duplicar, isso aqui é o corredor da morte”, reclama o caminhoneiro Márcio José de Almeida, 40, enquanto aguarda para carregar sua carreta de nove eixos, com capacidade para 50 toneladas, em frente a um armazém em Sorriso.
Para os produtores, a rodovia asfaltada trouxe ganhos inegáveis. O principal é o preço do frete, que antes saía entre R$ 250 e R$ 300 a tonelada e baixou para menos de R$ 200.
Tiago Stefanello, presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Sorriso, afirma que desde o ano passado já é possível perceber maior escoamento da soja pelo norte.
“Uma rota para concorrer com os portos de Santos e Paranaguá é algo muito positivo para nós. O mercado vai baratear o custo ainda mais.”
Os portos do sul ficam a 2.000 km, o dobro da distância para Miritituba.
Segundo dados da Rota do Oeste, 46% da produção do estado escoou pelo norte em 2019, um aumento de dez pontos percentuais sobre 2018.
A safra de grãos no país prevista para 2020 é de 243,2 milhões de toneladas, crescimento de 0,7% sobre 2019. Mato Grosso responde por 28% desse volume, o dobro do segundo colocado, o Paraná.
Sorriso, por sua vez, é o maior produtor mato-grossense. A cidade de 90 mil habitantes cresceu 35% na última década, efeito do “ouro verde”. Com alta renda per capita (R$ 67 mil), tem avenidas bem cuidadas, casas de alto padrão e várias opções de comércio e lazer.
A rodovia, diz Stefanello, vai trazer novas oportunidades, como o acréscimo da produção do etanol de milho para exportação. “A região vai mudar, já está mudando”, diz.
A demanda agora passa a ser a construção prometida há décadas de uma ferrovia paralela à BR-163. O frete cairia para R$ 50 a tonelada.
A Agência Nacional de Transportes Terrestres estuda um modelo de concessão para a construção da ferrovia. Não há previsão para a realização dessa obra, no entanto.
A Rota do Oeste diz que investe R$ 100 milhões ao ano em manutenção. Afirma que o atraso na duplicação foi efeito da crise econômica e que busca diálogo com o governo para retomar investimentos.
Dia 2: Bolsonaro pelo menos fez algo, diz caminhoneiro
Ao norte de Sinop, a BR-163 volta para a administração do Dnit. A “rota da soja” é na verdade um trecho da estrada, uma das mais importantes a cortar o país verticalmente.
A rodovia vai de Tenente Portela (RS) a Santarém (PA), com 3.462 km de extensão.
Além da concessão da Odebrecht, de 850 km entre Itiquira (MT) e Sinop (MT), há 845 km geridos pela CCR em Mato Grosso do Sul. O restante é de administração federal. O governo promete para este ano a concessão até Miritituba.
No caminho para a divisa entre Mato Grosso e Pará, as margens da estrada são pontilhadas por armazéns de empresas brasileiras e estrangeiras.
Nos enormes prédios ficam guardados até 70 mil toneladas de grãos, até serem despachados para os portos.
Chamam a atenção telhados de armazéns com caracteres em mandarim, da estatal chinesa Cofco. Um deles fica em Nova Santa Helena (MT).
De lá, partem diariamente dezenas de caminhões levando grãos para o porto de Miritituba. Cem por cento têm a China como destino final.
No pátio da Cofco, esperando para entrar no armazém e descarregar, Júnior Damas, 29, elogia a conclusão do asfaltamento, mas critica o que vê como um trabalho amador.
“O solo da Amazônia é muito fofo, colocaram uns caras ali para fazer a massa asfáltica que não entendem nada. Precisa compactar mais”, diz.
O resultado é que os buracos se abrem na pista com facilidade e viram crateras se não forem tapados rapidamente.
“Pelo menos o Bolsonaro fez alguma coisa. Mas foi malfeito”, afirma Damas. Um colega rebate, dizendo que a coisa melhorou muito. “Prefiro asfalto com buraco a andar na terra com lama.”
O governo recorreu aos serviços do Exército para asfaltar a BR-163. O valor da obra ficou em R$ 146,4 milhões —bem mais baixo do que no modelo tradicional, segundo o Ministério da Infraestrutura.
Dia 3: acidente com carreta bloqueia pista e atrasa transporte
“Pode passar aqui no mês que vem. Tá tudo aberto de novo”, diz Sérgio Bonifácio da Silva, parte de uma equipe de cinco homens do Dnit que tapava buracos perto de Guarantã do Norte, última cidade mato-grossense antes do Pará.
Diariamente, às 6h, ele começa uma jornada em que percorre 100 km, num caminhão com 13 toneladas de piche. “A gente tapa de 100 a 150 buracos por dia”, diz. “Mas não tem jeito. Tem é que reconstruir o asfalto”, afirma.
Na região, a pavimentação chegou na década passada e sofreu com chuvas torrenciais e caminhões pesados.
Cerca de 50 km adiante, já em solo paraense, há um bloqueio na estrada e uma fila de caminhões de mais de 1 km.
Na noite anterior, por volta das 22h, uma carreta atravessou a pista e bateu em outra em sentido contrário, que levava soja para Miritituba.
A operação para retirar os veículos acidentados só começou 15 horas mais tarde.
Ninguém se feriu, mas uma parte da carga se espalhou pela estrada. Com pás, garotos recolhiam a soja do chão em troca de uma gorjeta. A perda estimada foi de 6 a 7 toneladas numa carga total de 37.
O responsável pelo acidente, Douglas Gonçales, trabalha para uma empresa que exige descanso a partir das 18h, mas muitos caminhoneiros ignoram a regra. Colegas que esperavam a desobstrução da pista comentaram que Gonçales dormiu ao volante, o que ele nega. “Eu dormi das 9 da noite às 7 da manhã do dia anterior, estava descansado.”
Preso no bloqueio, Carlos Alberto dos Santos, 43, disse que, apesar de tudo, se sente “no céu” com a nova estrada. “Antes às vezes a gente saía segunda e chegava na outra segunda”, afirma. “Pelo menos não tem mais atoleiro”, reforça Oswaldo Martins, 56.
O valor total do frete por uma carga de 50 toneladas entre a região da soja e o porto de Miritituba caiu de R$ 11 mil para cerca de R$ 9.000 com a estrada. O caminhoneiro em regra tira limpo 10% desse valor.
A vantagem é que, agora, é possível fazer até seis ou sete viagens por mês, quando antes não havia certeza de completar metade disso.
O consumo de diesel também caiu, de 1.000 litros por viagem para 800. Dois terços são gastos na ida, com o caminhão carregado.
Após uma hora de bloqueio, a pista foi liberada, e a Folha seguiu viagem.
A estrada segue em boas condições até o local onde Bolsonaro inaugurou formalmente
a rodovia, num ponto chamado Cachoeira da Serra (PA).
Logo em seguida, buracos começam a aparecer, cada vez maiores e mais profundos. A 30 km de Novo Progresso, o carro da Folha passa por uma cratera que amassa a roda.
Trocado o pneu, resta seguir na noite amazônica cuidadosamente, para não furar também o estepe. A cidade finalmente aparece, em meio a um breu. Era mais um dos blecautes frequentes na região.
Dia 4: no Pará, trecho asfaltado há pouco tempo já tem buracos
Um dos maiores municípios brasileiros em área, Novo Progresso tem um clima de fronteira e vive em função da rodovia. Seu perímetro urbano fica 300 km ao norte e ao sul das cidades mais próximas.
Com 25 mil habitantes, começou a crescer rapidamente quando o asfalto ali chegou, em 2016. A conclusão da obra deve acelerar esse processo.
“A estrada trouxe muito empresário de fora, aumentou o comércio de roupas, sapatos, farmácias”, diz Fabiano Andreacci, presidente da associação comercial da cidade.
A região começou a receber colonos do Sul nos anos 1970, muitos dos quais se estabeleceram sem titulação de terras.
Segundo Andreacci, a legislação ambiental limita o desenvolvimento do município, que margeia a Floresta Nacional do Jamanxim. O futuro econômico da cidade, diz ele, está em ser uma nova fronteira para a soja e em ampliar as áreas para a pecuária.
“Mas antes o governo federal precisa ajustar a questão da terra aqui”, diz.
Só se pode produzir numa faixa de 40 km para cada lado da estrada, e ainda assim 80% da área tem de ser preservada. “Diminuir essa área de preservação para 50% ajudaria”, sugere.
Cerca de 45 km ao norte, o tom mais escuro do asfalto anuncia o início do trecho pavimentado por Bolsonaro.
Menos de 1 km depois, aparece o primeiro buraco. De formato oval, com 50 cm por 20 cm e dois dedos de profundidade, é pequeno, mas surpreende por estar lá. Outros pipocam até o Morro do Moraes, trecho que era o grande pavor dos caminhoneiros.
Cenas de atoleiros com centenas de carretas ficaram famosas. Motoristas relatam que já passaram 25 dias no local.
Asfaltada por Bolsonaro, a subida de 2 km é percorrida pela Folha em poucos minutos, mesmo sob chuva forte.
Mais 100 km adiante, já em área de asfalto mais antigo, os buracos são inúmeros, engolindo a pista em vários trechos. Caminhões de 25 metros de comprimento são obrigados a fazer um balé em busca de fragmentos de asfalto.
Segundo o Dnit, até agosto o trecho recém-pavimentado receberá mais duas camadas de asfalto, além de obras de drenagem e sinalização. Em toda a extensão da rodovia, serão R$ 160 milhões para manutenção em 2020.
No restaurante do Chico, na beira da estrada, dezenas de caminhoneiros discutem a condição da estrada enquanto almoçam bufê de arroz, feijão, farinha, carne e macarrão.
O dono, Iranildo Martins, 32, está construindo um novo prédio, de alvenaria, para substituir o atual, de madeira.
Diz que o movimento de caminhões já aumentou com o asfaltamento e prevê que crescerá ainda mais. “Quando chovia como hoje, não passava ninguém. Ficava vazio.”
Antes de a estrada ficar pronta, ele servia 40 refeições por dia. Hoje chegam a 70, e ele prevê passar de 100 em breve. “Aumentou bastante. Tem muito caminhoneiro novo e transportadora que não vinham para cá”, afirma.
Após um trecho de asfalto bom no município de Trairão, a estrada volta a ficar ruim na chegada a Miritituba, distrito da cidade de Itaituba (PA).
A cerca de 15 km do porto, uma fila de caminhões enfrenta um trecho barrento, mas sem atolar. O carro da Folha não tem a mesma sorte e fica preso na lama.
Com a ajuda de moradores locais, o veículo é liberado, mas a chegada ao hotel é com o sapato marrom de barro, emporcalhando a recepção.
Filas e mais filas de carretas são a primeira visão que se tem do porto de Miritituba.
O termo porto, aliás, é enganoso. São na verdade 5 terminais privados e 1 estatal, na margem direita do rio Tapajós.
Barcaças com capacidade para até 5.000 toneladas levam a carga para portos como Santarém e Barcarena, onde é transferida para navios.
O processo é burocrático. Caminhoneiros chegam em pátios grandes e enlameados, onde pegam senha e esperam o momento de seguir aos terminais para descarregar. O processo pode levar 12 horas.
As carretas seguem por uma estrada estreita de 4 km, que serpenteia pela zona rural.
O porto tem procurado se preparar para o maior fluxo de carga, que deve crescer 25% nos próximos anos. Mas as medidas ainda são pontuais.
Na entrada do único terminal público, administrado pela Companhia Docas do Pará, há previsão de investimento de R$ 4,1 milhões para melhorar o acesso de caminhões.
“Acreditamos que a mudança maior virá no médio prazo, quando contratos de transporte com os portos do sul se encerrarem”, diz Célio Souza, administrador do terminal.
Em outro ponto do porto, a empresa paraense Unirios constrói um terminal para receber fertilizante importado, destinado às lavouras de grãos mato-grossenses.
“O que viabilizou esse investimento foi a estrada. Antes, era horrível. Era todo dia carreta quebrando, tombando”, diz o supervisor da obra, Everson Fragoso.
Embora a maioria dos caminhões com soja termine a viagem em Miritituba, a BR-163 segue mais 360 km até Santarém, ainda no Pará.
Em cerca de um terço desse percurso, a estrada coincide com a Rodovia Transamazônica, outro megaprojeto da ditadura.
Há cerca de 55 km sem asfaltamento, obra que o governo prevê completar neste ano, também recorrendo ao Exército. Caminhões enfrentam grandes ladeiras de terra e uma sucessão de buracos.
Num trecho especialmente problemático, conhecido como Morro do Pixe, cerca de dez caminhões esperavam a terra secar das chuva do dia anterior para tentar subir.
“Se ficar sem chover mais algumas horas, dá pra subir. Se chover de novo, vamos pernoitar aqui”, disse Jonas da Silva, 48, com uma carga de 22 toneladas de bebidas.
Com carro leve, a Folha passou, não sem antes esperar mais de uma hora até os caminhões liberarem uma brecha no lamaçal.
Mais duas horas de estrada, Santarém, ponto final da viagem, surge como uma metrópole na floresta. De novo, precedida por buracos e mais buracos.
Fonte: Folha SP