Os índios kayapós, que vivem na região do Xingu, no Pará, já se preparam para judicializar o projeto da Ferrogrão --empreendimento bilionário de uma nova ferrovia que ligaria Sinop (MT) ao porto de Miritituba (PA).
Se concretizada, a ferrovia será um importante corredor de escoamento de grãos produzidos no Centro-Oeste do país. A via também fará fronteira com duas terras demarcadas onde vivem hoje aldeias kayapós: a Baú e a Menkragnoti.
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O projeto é uma prioridade para o governo de Jair Bolsonaro (PSL). O ministro de Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, já afirmou que a licitação deverá sair entre 2019 e início de 2020, e que a ferrovia representaria uma "segunda revolução do agronegócio".
O empreendimento já passou por consultas e audiências públicas e aguarda o envio do projeto ao TCU (Tribunal de Contas da União).
Os kayapós se queixam que não foram ouvidos até agora e afirmam que o estudo de viabilidade e a estruturação do projeto deveria passar pela consulta às comunidades afetadas antes que os planos estejam já estruturados.
Caso o projeto seja enviado ao tribunal sem que eles sejam ouvidos, haverá briga judicial, afirma Doto Takak-ire, do Instituto Kabu, organização formada por 12 aldeias de kayapós.
O grupo, diz ele, está em contato com membros do Ministério Público Federal para garantir a etapa de consulta prévia seja cumprida.
"A construção da BR-163 [rodovia paralela ao traçado Ferrogrão] trouxe muito impacto para nós. Cada ano, aumenta a pressão do desmatamento ao redor das terras indígenas. Então imagine com a Ferrogrão", afirma.
Para o procurador Paulo de Tarso, do MPF do Pará, a Constituição de 1988 impõe a consulta prévia às comunidades indígenas e, no caso do Ferrogrão, há previsão legal para questionamentos.
"Não há nada que nos coloque contra o empreendimento em si. Nossa preocupação é dar voz à comunidade afetada", afirma. Ele diz que ainda não há ações contra a Ferrogrão em curso, já que, por enquanto, não houve o envio do projeto ao TCU.
A região dos kayapós foram fortemente afetada pela construção da rodovia BR-163. Desde 2000, o desmatamento no entorno das terras indígenas Baú e Menkragnoti saltou de 11,5 mil km² para 32,6 mil km², segundo dados do instituto.
O grupo dos kayapó-menkragnoti é apenas um dos grupos afetados pelo empreendimento —o que indica que outras comunidades poderão questionar o empreendimento. Nos estudos de impacto ambiental, são mencionados outros povos que podem ser afetados, como os munduruku, os paraná e os kaiabi.
No total, foram mapeadas 48 áreas de proteção que podem ser impactadas pela obra, segundo levantamento da organização internacional The Nature Conservancy.
Em 2017, a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestes) garantiu, durante a etapa de audiência pública, que haveria uma consulta prévia aos índios antes do envio do projeto ao TCU, em atendimento a uma convenção internacional assinada pelo Brasil, da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
No entanto, o relatório final, fruto das audiências, determinou que essa consulta ocorreria apenas no processo de licenciamento ambiental.
A crítica dos índios é que a consulta deveria ser uma etapa inicial, para que os estudos de viabilidade, o traçado da ferrovia e o edital sejam estruturados de acordo com as demandas do grupo desde o início.
Procurada, a agência afirmou que reitera o compromisso de consultar os povos indígenas afetados, mas que esse processo ainda carece de regulamentação.
"Não estão claros, a título de exemplo, os pontos sobre o órgão responsável pela consulta ou como este processo deve ser conduzido. Por isso, a Agência decidiu que, tecnicamente, o melhor momento para fazer esta consulta é durante o licenciamento ambiental", diz a ANTT, em nota.
A consulta aos índios, segundo Takak-ire, do Instituto Kabu, também precisa ser feita dentro de termos e condições específicas, que estão detalhadas em um documento, apresentado nesta quarta-feira (20) pela entidade.
O chamado protocolo de consulta é uma espécie de manual de como os povos indígenas devem ser ouvidos antes da aprovação de qualquer decisão que afete o grupo (como leis, obras e políticas públicas).
Entre as regras eleitas pelos kayapó, foi definido que o governo só poderá fazer reuniões em que estejam presentes todos os líderes de aldeias, sem que possam fechar acordos com apenas parte deles.
Além disso, as conversas têm de ocorrer necessariamente dentro das aldeias, com tradutores da confiança do grupo —reuniões na cidade, portanto, não seriam válidas, de acordo com o código estabelecido pela comunidade.
Procurado, o Ministério de Infraestrutura afirmou, em nota, que o projeto foi amplamente discutido na etapa de audiência pública, que teve sessões presenciais nas cidades de Cuiabá (MT), Belém (PA), Sinop (MT) e Brasília (DF), com contribuições entre outubro de 2017 e janeiro de 2018.
"Nessas audiências foram colhidas manifestações de diversos representantes de etnias indígenas, inclusive de representantes dos kayapós", diz a nota.
Segundo o ministério, o processo de concessão da Ferrogrão está em fase de ajustes e, após a conclusão dessa etapa, a documentação será encaminhada ao TCU.
Fonte: Folha SP