Se existia ainda alguma dúvida sobre a França ser hoje a principal pedra no sapato do acordo histórico entre Mercosul e União Europeia (UE), documento elaborado pelo governo francês, ao qual O GLOBO teve acesso, deixa isso claro.
O texto enviado pela França para discussão interna entre os negociadores do acordo na União Europeia sugere condições a serem impostas pelos europeus para que o acordo seja, finalmente, concretizado. O ponto central da resistência do governo de Emmanuel Macron é a política ambiental do Mercosul, leia-se brasileira.
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Em meio às tentativas de salvar o acordo, está sendo discutida — por iniciativa dos europeus — a assinatura por parte dos países do Mercosul do que vem sendo chamado de side paper, um documento paralelo.
A França elaborou sua versão desse novo compromisso, que deverá ser debatida com os demais países da UE. O texto vazou e chegou ao conhecimento dos países do Mercosul, que o consideram praticamente uma ata de rendição por propor condicionar a assinatura do acordo a novas obrigações, sobretudo em matéria ambiental.
Esse conjunto de novas condições vai muito além do que foi negociado entre os dois blocos e inclui, entre outras, o compromisso de retomar mecanismos de financiamento e proteção de ONGs e comunidades indígenas e a derrubada de reformas e legislações que, segundo a França, prejudicam a proteção do meio ambiente.
Ação francesa causa mal-estar no Mercosul
O documento elaborado pelo governo da França, que já circula no Itamaraty e nas outras três chancelarias do países que integram o Mercosul, usa como elemento de sustentação essencial o Acordo de Paris. O tratado contra mudanças climáticas foi questionado por Bolsonaro em sua campanha presidencial, mas, ao contrário do que fez Donald Trump nos EUA, o Brasil nunca saiu do acordo.
“O atual desmatamento nos países do Mercosul, que pode ser consequência de políticas adotadas, é muito preocupante e não atende os objetivos estabelecidos no Acordo de Paris e na Convenção das Nações Unidas sobre mudanças climáticas”, diz o documento.
Logo em seguida, o texto propõe exigir que o novo compromisso que a UE pretende impor aos países do Mercosul inclua a exigência de cumprimento do Acordo de Paris, “particularmente no que diz respeito ao desmatamento”.
O documento do governo Macron foi recebido com indignação pelo ministério comandado pelo chanceler Ernesto Araújo, mas também por seus pares do Mercosul. Foi questionado o tom “colonialista” dos franceses que, segundo várias fontes diplomáticas, utilizam a rixa entre Macron e Bolsonaro para justificar sua oposição ao acordo.
Entre os principais episódios que afastaram os dois presidentes estão as críticas do francês à política de preservação da Amazônia e o comentário pejorativo feito pelo brasileiro sobre a primeira-dama francesa numa rede social, em 2019.
— A verdade é que os comentários de Bolsonaro e de outros ministros de seu governo não ajudaram. Nos fizeram perder dois anos. Mas também deve ser dito que isso é usado pelos franceses para boicotar um acordo que prejudica Macron internamente — disse uma alta fonte diplomática do bloco.
A situação cria mal-estar entre os sócios do Brasil, sobretudo Paraguai e Uruguai. A Argentina de Alberto Fernández tem ressalvas por questões internas. Para paraguaios e uruguaios, o entendimento com a UE é de extrema importância pelo acesso ao mercado europeu para seus produtos agropecuários.
O presidente uruguaio, Luis Lacalle Pou, esteve recentemente em Brasília e, no almoço com Bolsonaro, reiterou sua demanda de flexibilização do Mercosul, visando, sobretudo, à abertura de novos mercados.
No Itamaraty, a posição da França foi considera inadmissível:
— Esse documento é um “non starter”, nada se aproveita. Qualquer documento do tipo deve ser equilibrado e incluir compromissos das duas partes. O Mercosul não vai aceitar critérios inventados unilateralmente pelos franceses ou pela UE, que não sejam baseados em normativa multilateral ou já acordados — disse uma fonte do governo brasileiro.
Na visão do governo brasileiro, Macron pretende reabrir as negociações já finalizadas, com base numa agenda que nada tem a ver com o objeto central do acordo: a relação comercial entre os dois blocos. O governo brasileiro argumenta que não há nada no contexto do acordo que crie problemas ambientais ou para o desenvolvimento sustentável e a saúde humana.
O ponto indiscutível para o Itamaraty é que não ter acordo é a pior solução. O Brasil rejeita o movimento francês sob o argumento de que ele foi concluído pela Comissão Europeia, que tem mandato negociador. É ela que veicula, ao longo de toda a negociação, as demandas das partes. Ninguém pode alegar que não conhecia os termos do acordo, argumenta essa fonte do governo brasileiro.
Rixa Macron x Bolsonaro vem de longe
Desde que o chefe de Estado francês mergulhou numa discussão pública com o presidente Jair Bolsonaro, com direito a comentários ofensivos do brasileiro sobre a primeira-dama da França, Brigitte Macron, a tensão entre os dois países transformou-se na principal ameaça ao futuro do acordo entre os dois blocos.
Ao falarem sobre o assunto, fontes diplomáticas estrangeiras em Brasília comentam que Macron nunca digeriu os comentários em redes sociais do presidente brasileiro sobre a primeira-dama francesa. E nunca digerirá.
Após o presidente francês postar, em agosto de 2019, fotos de incêndios na Amazônia e comentar que “nossa casa está pegando fogo”, Bolsonaro disse lamentar que “o presidente Macron busque instrumentalizar uma questão interna do Brasil e de outros países amazônicos para ganhos políticos pessoais”.
Dias depois, o presidente brasileiro endossou um comentário de um internauta no Facebook, que publicou uma foto das primeiras-damas do Brasil e da França — Brigitte é 26 anos mais velha que o marido — e disse entender porque Macron perseguia Bolsonaro.
Fonte: O Globo