Empresas brasileiras terão preferência nas compras públicas, que chegam a R$ 120 bilhões; regulamentação sai até o fim do ano
SÃO PAULO - O presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve aprovar nos próximos dias mudanças importantes nas licitações públicas que vão colocar em vantagem as empresas brasileiras em um mercado de mais de R$ 120 bilhões. O objetivo é utilizar esse poder de fogo para incentivar o desenvolvimento tecnológico, mas as novas regras também abrem uma brecha para medidas protecionistas e podem elevar as despesas.
O preço sempre foi o fator decisivo nas licitações. Agora, as empresas nacionais terão preferência se houver empate e poderão oferecer um preço até 25% maior e, mesmo assim, ganhar o contrato. Uma comissão formada por cinco ministérios (Fazenda, Desenvolvimento, Ciência e Tecnologia, Planejamento e Relações Exteriores) vai definir como isso funcionará na prática.
O decreto que regulamenta as mudanças está quase pronto e deve ser publicado até o fim do ano, informam fontes do governo. O Congresso também já aprovou as alterações, previstas em uma medida provisória editada em julho. Tecnicamente, a lei está em vigor, mas sem a regulamentação é difícil utilizá-la.
Com as novas regras, a presidente eleita Dilma Rousseff ganha um poderoso instrumento de política industrial. Em 2009, o governo (sem incluir as estatais) comprou R$ 57,6 bilhões em bens e serviços. A Petrobrás prevê adquirir R$ 55,8 bilhões por ano até 2014. Banco do Brasil e Caixa compraram este ano, respectivamente, R$ 5 bilhões e R$ 3,5 bilhões.
No total, são R$ 122 bilhões, mas esse número ainda está subestimado porque não inclui a Eletrobrás e as demais estatais. Com as obras para Copa, Olimpíada e Pré-Sal, os valores envolvidos nas licitações públicas do Brasil só tendem a subir.
"Esse tipo de medida pressiona ainda mais a inflação. Ao forçar a compra do produto brasileiro ao invés do estrangeiro, o gasto público é um multiplicador mais poderoso da demanda em um momento que o Brasil precisa reduzir o ritmo do crescimento", avalia Sérgio Vale, economista-chefe da MB Associados.
Para ter acesso ao benefício, o governo vai exigir que as empresas instaladas no País comprovem que estão gerando mais renda, emprego e tributos e que desenvolvam tecnologia. "Não queremos dar preferência para qualquer produto, mas para os que incentivem o desenvolvimento tecnológico", disse Luiz Antonio Elias, secretário executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia. A lei também prevê, porém, que o benefício pode ser utilizado para proteger empresas da "concorrência predatória".
O Brasil não será o único a utilizar as compras públicas como política industrial. Os Estados Unidos possuem o "Buy American Act" desde 1933, que foi revigorado com a crise. A China é notória por esse mecanismo. Na América Latina, Colômbia e Argentina dão preferências nas licitações aos produtores locais.
Fabricantes pressionam para adiar licitações
Os fabricantes nacionais estão pressionando as instituições públicas a postergar licitações para o próximo ano. A finalidade é aguardar as novas regras que vão favorecer as empresas instaladas no País. A partir de 2011, as companhias brasileiras poderão oferecer preços até 25% maiores nas licitações e, ainda assim, saírem vencedoras.
O assunto provoca polêmica entre empresários locais e importadores. Os setores já se organizam para aproveitar as vantagens e reclamam que as instituições públicas ainda não seguem a nova lei por falta da regulamentação. Enquanto isso, os importadores prometem uma "enxurrada de processos".
A Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq) enviou um pedido formal ao ministério da Educação para atrasar as licitações para a compra de equipamentos nas universidades e escolas técnicas. Segundo Hiroyuki Sato, diretor jurídico da entidade, o edital já foi publicado, mas a entidade solicita que a abertura da licitação aguarde a nova lei.
"Sem essa margem de 25% não haverá a menor possibilidade de as empresas nacionais vencerem. Algumas máquinas asiáticas chegam pela metade do preço", diz Sato. Ele revela que a entidade também fez a mesma solicitação para o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). O órgão, que é subordinado à Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), segue a lei de licitações porque é financiado por impostos.
A Associação Brasileira da Indústria Têxtil (Abit) já contratou um estudo para calcular as diferenças de custos entre Brasil e China (câmbio, tributos, financiamento) e apontar qual seria a margem necessária para as indústrias locais nas licitações públicas para o setor.
O interesse dos fabricantes de tecidos e confecções é vender fardas para as Forças Armadas. Para 2011, estão previstas no orçamento licitações de R$ 260 milhões nessa área, incluindo Exército, Aeronáutica e Marinha.
"Hoje, nossos soldados desfilam garbosos com fardas chinesas. É um absurdo", diz Aguinaldo Diniz, presidente da Abit. A entidade calcula que cada R$ 200 milhões em licitações vencidas por empresas têxteis nacionais signifique geração de 30 mil empregos diretos e indiretos.
Telebrás
A única experiência com a nova lei de licitações até agora ocorreu com a Telebrás, que fechou contrato de compra com a Padtec por R$ 63 milhões em meados de novembro. Apesar de ter oferecido o maior preço, a empresa brasileira teve preferência na licitação e foi chamada a negociar. Após idas e vindas, reduziu o valor cobrado.
"Hoje, a Telebrás é o maior negócio do Brasil na área de telecomunicações", diz Ivo Vargas, diretor de novos negócios da Parks e membro do Consórcio Gente - Grupo de Empresas Nacionais de Tecnologia. O grupo de lobby surgiu em abril para pressionar o governo por alterações na lei de licitações. O plano de investimentos total da Telebrás é de R$ 6 bilhões.
Boa parte das entidades públicas, no entanto, ainda não está aplicando a nova lei por falta de regulamentação. A Fundação para o Remédio Popular (Furp), vinculada ao governo de São Paulo e maior compradora de remédios do País, encerrou na semana passada uma licitação pelas regras antigas. A fundação informa que avalia como se adaptar à nova lei, mas que 89% dos princípios ativos dos medicamentos adquiridos são importados.
Nelson Brasil, vice-presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina (Abifina), diz que as compras públicas respondem por 25% do faturamento do setor de fármacos. "O preço não deve ser o fator de decisão em um setor sensível como o nosso. Temos de avaliar qualidade e rastreabilidade."
Zich Moyses Junior, diretor do departamento de economia do Ministério da Saúde, explica que, às vezes, os princípios ativos chineses chegam ao País com a qualidade comprometida e o laboratório fica parado, o que aumenta os custos.
Ele diz ainda que a entrada de fabricantes locais nas licitações aumenta a concorrência, o que reduz os custos no médio prazo. "Remédio é um produto estratégico. Hoje, 40% dos medicamentos são importados prontos, o que eleva a vulnerabilidade do País", diz Moysés.
Reclamações
As novas regras têm provocado aplausos entre os empresários nacionais, mas também muita reclamação dos importadores, que argumentam que o Brasil não está respeitando a regra de isonomia entre os competidores.
"Essa nova lei é de deixar qualquer um pasmo. É uma salvaguarda para elevar os preços em 25%. Vai gerar uma enxurrada de processos dos importadores", diz Daniel Dias de Carvalho, diretor da Associação Brasileira dos Importadores de Máquinas e Equipamentos (Abimei). "É um tiro no pé do governo federal", diz Jonathan Smith, presidente da Associação Brasileira dos Importadores de Têxteis (Abitex).
A principal crítica dos especialistas é que os critérios são muito amplos e podem alimentar a corrupção. "Se vai ser bom ou ruim, depende da utilização. É um cheque em branco", diz Mansueto de Almeida, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Fonte: Estado de S. PauloRaquel Landim
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