A restrição orçamentária que predomina entre os municípios brasileiros afeta até mesmo os que contam com recursos extras da indústria do petróleo.
Levantamento feito pelo GLOBO com base em dados do Tesouro Nacional, da Firjan e da Agência Nacional do Petróleo (ANP) mostra que 14 das 20 prefeituras que mais receberam royalties e participações especiais (tributos cobrados nos campos petrolíferos mais produtivos) em 2018 gastaram menos que a média de todas as cidades do país em investimentos , como infraestrutura, novas escolas ou saneamento. Elas não conseguiram investir mais de 5,1% de sua receita total.
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A situação tem piorado nos últimos anos. Em 2014, apenas oito dos 20 maiores beneficiados pelos royalties investiam abaixo da média nacional. No ano passado, essas prefeituras receberam R$ 7 bilhões do petróleo , mas investiram, em média, 4% de suas receitas.
A lista tem cidades de Rio, São Paulo e Espírito Santo, que concentram a maior parte da produção de petróleo e gás do país. As compensações pagas pelas petroleiras pelo impacto da atividade são divididas entre União, estados e municípios em cujo litoral estão localizados os campos produtores.
A taxa de investimento baixa nas cidades produtoras mostra que essa riqueza, que é finita, não tem gerado um legado para a população. Em vez de projetos que possam elevar o desenvolvimento local e impulsionar alternativas econômicas ao petróleo, os prefeitos priorizam gastos correntes e expandem folhas de pagamentos. Muitos têm que pagar dívidas com bancos que já anteciparam essas receitas.
— As receitas dessas prefeituras cresceram muito até 2013, mas, com o recuo do preço do petróleo (que influencia os royalties), tiveram queda súbita. Como enrijeceram os orçamentos, contratando pessoal, ficaram sem espaço fiscal quando a arrecadação despencou e penalizaram os investimentos — avalia Rodrigo Orair, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
‘Vender o futuro’
Campos dos Goyatacazes, no Norte Fluminense, chegou a ter mais de R$ 2 bilhões por ano do petróleo. Com a queda da produção na Bacia de Campos, recebe hoje quase R$ 700 milhões, um terço de sua receita. No entanto, só 1% de tudo o que a cidade arrecadou foi para obras nos últimos dois anos. O gasto com pessoal é grande e o fundo criado para financiar a atração de empresas acumula déficit de R$ 400 milhões. Muitas fecharam as portas e foram embora sem pagar os créditos e nem gerar vagas.
Pelo menos 10% dos royalties que Campos recebe vão direto para o pagamento de empréstimos. O prefeito, Rafael Diniz (Cidadania), culpa gestões passadas pelo mau uso dos recursos, e agora se diz obrigado a pagar a "venda do futuro":
— Diante dessa realidade, resta pouco para investir.
Para José Luis Vianna, professor da Universidade Cândido Mendes que estuda o impacto dos royalties, o Brasil ainda não conseguiu dar uma boa solução para a aplicação da riqueza gerada pelo petróleo. Nas contas dele, as cidades do Norte Fluminense receberam R$ 100 bilhões nas últimas duas décadas, mas seguem dependentes dessa indústria:
— Não podemos nem dizer que o Norte Fluminense investiu mal. O que vimos foi mais que uma tragédia porque a região está pior hoje.
Por outro lado, Vianna alerta que distribuir a renda do petróleo entre todos os estados e municípios não é o melhor caminho. A pulverização favoreceria ainda mais o uso dos recursos nos gastos correntes.
No ano que vem, o Supremo Tribunal Federal (STF) julga a constitucionalidade de uma lei que redistribui royalties para todos os entes da federação, suspensa por liminar.
— Dividir igualitariamente daria um alívio temporário às contas públicas, sem criar um legado. Diluiria recursos importantes, que, juntos, poderiam fomentar uma transformação econômica — diz Vianna. — Regiões produtoras no mundo como a Noruega ou o Alasca (estado dos EUA) criaram fundos e usam os recursos para um planejamento estratégico de longo prazo.
Maricá, cidade que mais recebe royalties no Estado do Rio (R$ 1,514 bilhão), conta com investimentos acima da média nacional nos últimos seis anos. Em 2018, foram 10,5% da receita. Apenas 4,5% da cidade têm saneamento e 35%, distribuição de água. Os investimentos buscam expandir esses indicadores para 70% em dois anos.
O município tem trabalhado para diminuir a dependência de royalties. Em 2018, mais de 70% da receita vinham do petróleo. A cidade destina 5% desses recursos a um fundo soberano. O objetivo é atrair investidores em projetos de Parceria Público Privada (PPP) em saúde, educação e infraestrutura para tornar a cidade um polo tecnológico e industrial no futuro. A expectativa é que o fundo acumule R$ 3 bilhões até 2030.
Niterói, segunda maior recebedora de royalties do país, investiu acima da média nacional por quatro anos, em projetos de saneamento e mobilidade, mas resolveu pisar no freio para aperfeiçoar os planos. Em 2018, destinou 5% das receitas para investimentos. Segundo o prefeito Rodrigo Neves (PDT), a prioridade foi quitar dívidas e a criação de um fundo para definir melhor a aplicação dos royalties:
— Essa poupança vai permitir que Niterói nas próximas décadas mantenha a sua condição de estabilidade, mesmo na crise. Queremos ter R$ 300 milhões até o fim de 2020.
Municípios do litoral norte paulista, como Ilhabela, São Sebastião, Caraguatatuba e Ubatuba, também planejam uma forma diferente de investir a renda do petróleo. Eles criaram um consórcio para pensar conjuntamente políticas e projetos para o desenvolvimento da região, que começa a funcionar neste mês. Com o deslocamento da produção para o pré-sal da Bacia de Santos, essas cidades tendem a ver sua participação nos royalties subir nos próximos anos.
Situação parecida com a de Saquarema, na Região dos Lagos, que será a cidade mais beneficiada pela produção dos dois blocos do pré-sal vendidos no megaleilão, Itapu e Búzios. Em 2018, a cidade já tirou do petróleo 25% de suas receitas, mas só destinou 4,9% delas para obras. Sofre com buracos nas ruas e falta de manutenção de praças e da orla.
A secretária de Planejamento, Daniele Guedes, diz que a prefeitura tem evitado fazer aportes volumosos em projetos de longo prazo com a incerteza gerada pelo julgamento pendente no STF:
— Temos preocupação com a austeridade. Não ordeno despesa sem receita no caixa. O temor de queda da arrecadação com o julgamento é real.
Para Jonathan Goulart, gerente de estudos econômicos da Firjan, o impasse no STF é mais um sinal de alerta:
— As prefeituras utilizam essas receitas não recorrentes, que têm volatilidade grande, e muitas vezes são surpreendidas. É preciso equilíbrio fiscal para não ter dependência.
Para Orair, do Ipea, independentemente do debate no STF, não há mais tempo — e nem dinheiro — a perder. É preciso encontrar uma forma eficiente de canalizar a renda do petróleo para projetos que façam diferença no futuro dessas cidades:
— O petróleo vai acabar.
Em maio deste ano, o então prefeito de Ilhabela, Márcio Tenório (MDB), sofreu um impeachment. Acusado de caixa 2 e superfaturamento em contratos públicos — o que nega, acusando a oposição de perseguição —, ele foi substituído pela vice-prefeita, Maria das Graças (PSD). A crise política continua, mas pelo menos preservou o modelo de gestão de royalties na cidade de 37 mil habitantes no litoral paulista.
Ilhabela vai receber R$ 850 milhões em royalties este ano, 70% de sua receita. Criou um fundo soberano para onde vão 10% dessa renda e já soma R$ 240 milhões. O fundo está congelado ao menos até 2027, quando deve somar R$ 2 bilhões. Enquanto isso, a diretriz é investir em infraestrutura e não elevar gastos correntes.
— Não queremos criar uma máquina que fique insustentável no futuro. Temos priorizado, por exemplo, a terceirização na contratação de serviços em vez de concursos. E estamos tentando aplicar em atividades que possam ampliar receitas futuras, como o turismo — diz Tiago Correia, secretário de Finanças de Ilhabela.
Uma comissão com representantes da prefeitura, da Câmara de Vereadores e da sociedade civil delibera sobre o fundo, que aplica em títulos da dívida pública. A cidade, que anualmente promove um fórum para debater a aplicação dos royalties, usou R$ 150 milhões para sanear o fundo de pensão municipal e reservou R$ 240 milhões para o saneamento. Sem investimentos há três décadas, a maior parte das praias está imprópria, prejudicando o turismo. O plano é ter 100% de cobertura de esgoto em seis anos. Os planos mais ambiciosos são reservados para o consórcio regional formado na região com São Sebastião, Caraguatatuba e Ubatuba. Entre os projetos comuns propostos está um novo sistema de balsas ligando as cidades.
— Os assentamentos urbanos estão crescendo sem planejamento e participação social na elaboração das políticas públicas. É preciso investir para diminuir os impactos — diz Robson Martin, professor do Centro Universitário Módulo em Caraguatatuba.
Fonte: O Globo