Com 85% de sua matriz baseada em fontes renováveis de energia, o Brasil tem potencial para liderar a transição para a economia de baixo carbono nos próximos anos, seja incorporando novos projetos de usinas eólicas, de biomassa e solares, seja com inovações como o hidrogênio verde. Nesta década, mais de R$ 150 bilhões deverão ser investidos em energia limpa no país, em projetos liderados pelo mercado livre e autoprodução. O avanço no cenário internacional, porém, implica na superação de desafios internos, como a modernização do marco regulatório, além da questão diplomática.
A matriz elétrica vai sofrer uma transformação nesta década. Neste ano, 63,5% da capacidade provém de hidrelétricas e 11,2% das térmicas. Em 2030, a consultoria PSR estima que as hidrelétricas caiam para 52%, as térmicas mantenham sua posição, enquanto outras fontes vão pular de 22% para 37%, salto liderado pelas usinas solares, centralizadas, e com destaque para as chamadas distribuídas - quando a geração é feita por várias pequenas usinas. A fonte solar deve atingir 46 GW em 2030, enquanto as eólicas deverão chegar a 25 GW.
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“Mas há algumas perguntas a serem respondidas para que esse futuro se concretize. Haverá taxação de carbono? Como ficará o desenvolvimento do pré-sal? O gás dele extraído terá um preço diferenciado?”, pondera Luiz Barroso, presidente da PSR.
“O futuro da energia tende a ser livre e renovável”, diz a presidente da Associação Brasileira da Energia Eólica, Élbia Gannoum. Uma grande vantagem é que as emissões de gases estufa do setor elétrico no Brasil respondem por menos de 5% das emissões totais do país - benefício grande para a economia de baixo carbono.
A demanda crescente estimula investimentos. A Enel Green Power está investindo R$ 5,6 bilhões na construção de cinco projetos de geração renovável no Nordeste, que somarão 1.300 MW em capacidade. “A descarbonização é uma tendência crescente e os clientes estão buscando cada vez mais. O mercado livre deve continuar crescendo com vigor”, diz o presidente da Enel, Nicola Cotugno.
O movimento também acontece com petroleiras, que têm investido no pré-sal e buscam as renováveis para reduzir suas emissões. A Total Eren, filial brasileira da Total em energia renovável, possui em carteira projetos solares e eólicos em desenvolvimento de cerca de 1GW no país. Tem duas centrais eólicas em construção, com cerca de 160 MW de capacidade instalada: os projetos Terra Santa (92,3 MW) e Maral (67,5 MW), ambos localizados no Rio Grande do Norte.
Maior geradora privada do país, a Engie tem dado prioridade às fontes renováveis na área de geração. Mais recentemente, entrou em operação o parque eólico Campo Largo II, localizado em Umburanas (BA), com investimento de R$ 1,6 bilhão. A expectativa é de que o empreendimento esteja operando em plena capacidade no terceiro trimestre, chegando ao total de 361,2 MW.
Em junho, inicia-se a implementação de um parque eólico no Rio Grande Norte, com investimentos de R$ 2,2 bilhões. Serão 434 MW de capacidade instalada na primeira fase, com toda energia voltada ao mercado livre. A entrada em operação está prevista para 2023. “Devido principalmente a questões ambientais, a ambição de crescimento em hidrelétricas visa aos potenciais processos competitivos relativos às aquisições de usinas já em operação e processos de renovação de concessões e privatizações”, afirma Guilherme Ferrari, diretor de novos negócios, estratégia e inovação da Engie.
Adquirida pela Energisa em 2019, a Alsol deve investir cerca de R$ 200 milhões neste ano para entregar 15 novos parques solares. “Em 2022, pode ser mais porque a demanda poderá aumentar”, diz o presidente, Gustavo Buiatti. Cerca de 90% da procura vem das empresas e 10% de pessoas físicas.
O avanço das renováveis coincide com o reforço da agenda de sustentabilidade nas empresas, o que tem conferido destaque aos certificados de energia renovável, conhecidos como I-Recs. Cada I-Rec representa um MWh de energia renovável injetado no sistema.
De janeiro a abril, foram negociados quatro milhões de certificados, o mesmo montante de todo o ano passado. A expectativa é de que sejam negociados dez milhões em 2021, número que deverá crescer ao longo dos próximos anos e que posiciona o Brasil em segundo lugar no mundo, atrás apenas da China.
Cerca de 30% dos pedidos de I-Recs se referem ao selo que também avalia as condições sociais dos empreendimentos.
Essas novidades, que trazem sofisticação ao mercado, estão levando o Instituto Totum, emissor local dos certificados, a trabalhar para lançar até o fim do ano os certificados horários, diante do avanço de fontes intermitentes como eólicas e solares. Hoje, por exemplo, uma empresa que fecha acordo de compra de energia de uma usina solar não recebe, obviamente, essa energia durante todo o dia, o que faz com que essa empresa tenha de recorrer em parte à energia fornecida pelo sistema, que pode ser de fonte térmica. “Uma empresa fecha contrato de compra de energia com um parque solar, mas trabalha em três turnos. Ou seja, em alguns períodos do dia ela vai precisar usar energia da rede. Os Recs horários entram para aperfeiçoar esse sistema, a fim de garantir que a empresa tenha a certificação de origem de sua energia por 24 horas ”, explica Fernando Lopes, diretor do instituto.
A preocupação sobre os certificados de energia renovável tem sido liderada por multinacionais, mas o assunto ganha apelo também entre pequenas e médias empresas. A 2W Energia, cujo foco é vender energia no mercado livre para empresas de menor porte, viu essa demanda surgir em conversas de seus agentes autônomos com clientes nos últimos seis meses. “Nas próximas semanas devemos lançar uma plataforma que permite a negociação desses certificados, não vejo volume exorbitante neste começo, mas essa é uma tendência”, afirma Claudio Ribeiro, presidente da 2W Energia.
Há obstáculos ainda pelo caminho. O uso intenso de fontes renováveis e a complementariedade entre elas exigirá a atualização do parque de transmissão, um ponto que tem levantado preocupações da Empresa de Pesquisas Energéticas (EPE), órgão estatal de planejamento do setor.
Parte da transmissão das regiões Sul e Sudeste tem mais de 40 anos, o que vai demandar investimentos consideráveis na modernização. Isso terá de ser feito com coordenação entre a indústria e as transmissoras. Outro problema é que ainda falta regulação sobre o tema. Há equipamentos que terão de ser trocados e outros que poderão ser atualizados com uso de sensores.
Outro obstáculo é a regulação. As principais perguntas que estão na cabeça dos empresários são: a abertura do setor chegará mesmo à baixa tensão? Como será a transição entre o desenho atual e o de desregulação? O modelo do setor elétrico é calcado em leilões de contratação de energia no médio e longo prazo para o mercado cativo - formado por residências, pequenas indústrias e comércio. A recessão dos últimos anos se combinou aos impactos da pandemia e a demanda por energia caiu. O que tem impulsionado os investimentos é o mercado livre, a geração distribuída solar e a autoprodução, sinais de que se busca a redução do custo da luz, muito alto no mercado regulado.
Estudo da Associação Brasileira das Comercializadoras de Energia Elétrica (Abraceel) aponta que entre 2021 e 2025 entrarão em operação 34,5 GW de capacidade instalada no país, sendo que dois terços desses projetos se referem a empreendimentos dedicados exclusivamente ao mercado livre.
Dos R$ 142 bilhões de investimentos previstos até 2025, o mercado livre responde por R$ 100 bilhões. Ele será fundamentar para viabilizar o avanço da energia renovável: da oferta prevista entre 2021 e 2025, 92% da solar, 88% da biomassa, 72% da eólica e 62% de PCH serão provenientes do segmento.
Nas contas da PSR, existem 48 GW contratados no mercado regulado, cerca de 70% do consumo de energia previsto para 2021. Quando foi lançado no início do primeiro mandato do governo Lula, o país vivia os efeitos do racionamento de energia elétrica de 2001 e 2002 e o mercado livre respondia por 2% da carga de energia do país. Hoje o ambiente livre representa um terço. Ampliar esse segmento implica resolver os contratos legados e o papel das distribuidoras.
Fonte: Valor