O governo espera uma decisão do Ibama, até o fim do primeiro trimestre, para o licenciamento ambiental do projeto que pode duplicar a movimentação de cargas na hidrovia Tocantins-Araguaia. Cerca de 14 milhões de toneladas de produtos como combustíveis, minérios, soja e milho são transportados anualmente pelo corredor fluvial. No entanto, seu uso é limitado por uma corredeira de pedras que se estende por 35 quilômetros nas proximidades de Marabá (PA) e torna a navegação inviável durante boa parte do ano, nos meses de seca.
Os estudos ambientais, projetos de engenharia e obras para o desmonte do Pedral do Lourenço foram contratados pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) em 2016 e tinham previsão de entrega em 58 meses. O cronograma, porém, ficou totalmente desatualizado.
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Por conta dos atrasos, o contrato com o consórcio liderado pela DTA Engenharia já foi reajustado de R$ 520 milhões para R$ 773 milhões. O EIA-Rima (conjunto de estudos e relatórios ambientais) foi protocolado no Ibama em outubro de 2018, mas uma série de pareceres técnicos apontou riscos no empreendimento, principalmente para a preservação da icitiofauna (conjunto de animais aquáticos).
Considerado prioritário pelo governo, o projeto passou a ser monitorado pelo Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). Agora, depois de nova complementação dos estudos feita pelo Dnit, a expectativa é de que a licença prévia saia até o fim de março.
“Hoje estamos bem otimistas”, afirma a secretária de Apoio ao Licenciamento Ambiental do PPI, Rose Hofmann. Segundo ela, os principais questionamentos do Ibama foram superados e houve aprendizado de todos os lados ao longo do processo. “A gente espera que esse novo parecer [no fim do primeiro trimestre] seja o último.”
O Ministério da Infraestrutura informou que, com a realização do derrocamento do Pedral do Lourenço e de dragagem em outros 177 quilômetros de trechos da hidrovia contemplados no mesmo contrato, o corredor fluvial poderá duplicar de capacidade e transportar até 30 milhões de toneladas de cargas por ano.
Do ponto de vista do custo logístico e da redução de emissões de gases-estufa, o transporte hidroviário é imbatível. Um comboio-padrão, com nove barcaças juntas, pode carregar 19.100 toneladas de produtos. Isso é equivalente a 191 vagões em uma ferrovia ou a 708 carretas circulando por rodovia.
As sensibilidades ambientais das obras, no entanto, provocam dúvidas. Um dos questionamentos é se milhões de metros cúbicos de areia a serem retirados do leito do rio Tocantins podem ir parar nas praias onde tracajás e tartarugas-da-amazônia colocam seus ovos.
Outro ponto de preocupação é o futuro dos botos-do-araguaia, ameaçados de extinção. Uma contagem populacional feita pela Fundação Omacha e pelo Instituto Mamirauá, publicada em 2020, identificou apenas 1.083 botos em um trecho de 500 quilômetros da hidrovia. Existe o temor de que as obras e o maior trânsito de embarcações decretem o fim da espécie.
O Valor teve acesso ao relatório de uma vistoria presencial de equipe do Ibama, feita entre 23 e 25 de novembro, que aborda diversos pontos do licenciamento. Entre outros pontos, a vistoria verificou a presença de “grande quantidade de quelônios” (tartarugas) e a “existência de locais de nidificação” (ninhos) na região.
Para o ex-diretor da ONG International Rivers, Brent Millikan, que já visitou a região, falta rigor científico nos estudos que dimensionam os impactos das obras de aprofundamento do canal de navegação. Hoje consultor independente, Millikan explica que não há garantia de que o ciclo de reprodução das tartarugas e dos peixes será preservado após intervenção no habitat natural, além da preocupação com o efeito das explosões de rochas sobre a população de botos - animais hipersensíveis à emissão de ruídos debaixo d’água.
“Não sabemos se a expansão econômica projetada, com o aumento de capacidade da hidrovia, vai gerar nova ocupação de território e conflito fundiário com os povos tradicionais, sejam os ribeirinhos ou os indígenas da região.”
Ele diz que o rio Tocantins não recebeu uma análise mais atenta sobre o “impacto cumulativo”, que soma os efeitos das barragens de hidrelétricas à degradação da vegetação ao longo dos anos e, agora, ao projeto da hidrovia. “É preciso entender como o rio se comporta ao receber esse conjunto de intervenções, ver se isso dialoga com o plano de gestão e com o comitê da sua bacia hidrográfica.”
Fonte: Valor