Grupos de navegação e marítimos se movimentam para influir no projeto de lei BR do Mar, que prevê a abertura da cabotagem no país e encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados
A abertura do mercado de cabotagem - a navegação entre portos no Brasil -, em discussão no Congresso Nacional, coloca de um lado os grupos dominantes dessa indústria concentrada e, de outro, as pequenas companhias que operam no país. Um terceiro interessado nessa discussão são os marítimos nacionais, responsáveis por operar as embarcações, que temem perder empregos.
PUBLICIDADE
Os diferentes atores com interesse no tema dizem concordar sobre a necessidade de modernizar a legislação para ampliar a participação da cabotagem na matriz de transportes, mas tentam emplacar, junto aos deputados, emendas que modificariam substancialmente o projeto de lei sobre a matéria, enviado em agosto pelo governo ao Congresso.
As alterações propostas abrem o mercado; vai se reduzir o custo de entrada das empresas, diz Messa, da Economia
A mesa diretora da Câmara dos Deputados determinou a criação de comissão especial para analisar o projeto, conhecido como BR do Mar, que tramita em regime de urgência e pode passar a trancar a pauta de votação da Câmara a partir desta semana. Um advogado especializado em direito marítimo diz que o BR do Mar é um regime especial, com benefícios e obrigações para quem aderir, previsto no projeto de lei número 4.199/2020. Esse regime facilita o aluguel de embarcações estrangeiras nas modalidades por tempo ou por viagem. O projeto de lei também discute uma terceira modalidade de aluguel de embarcações, conhecida por afretamento a “casco nu”.
Fontes envolvidas nas negociações afirmam que o tempo para discussão do projeto é exíguo dada a complexidade do tema. O consenso entre os parlamentares para a promulgação da última lei do setor, de 1997, demorou quase dois anos. Entretanto, membros do governo ouvidos pelo Valor negam que o projeto possa ficar engavetado devido a divergências. Acomodações de diferentes visões já teriam sido feitas dentro do próprio governo durante um ano e meio de discussões.
Secretário-Adjunto do Ministério da Economia, Alexandre Messa, afirmou que o objetivo da equipe econômica sempre foi promover maior concorrência na navegação de cabotagem, um setor tradicionalmente protegido em muitos países, inclusive no Brasil. “As alterações que propomos abrem o mercado para dentro e não somente para grandes grupos internacionais. Estamos reduzindo o investimento inicial, o custo de entrada nesse mercado e isso vai estimular o surgimento de novas empresas e mais oferta com redução no custo do frete”, disse Messa. As empresas têm diversas restrições ao projeto (ver reportagem Projeto traz insegurança jurídica, diz Aliança Navegação).
Segundo Messa, para acomodar diferentes visões, acordou-se que a abertura do setor seria escalonada, com liberação total do chamado afretamento a “casco nu” somente em 2023. O afretamento a “casco nu” designa outra modalidade de aluguel de navios. Refere-se à embarcação que chega ao país sem tripulação e passa a ser operada pelo armador nacional. Para esta modalidade, permanece a regra de uso de marítimos brasileiros em sua maioria, como previsto na legislação hoje em vigor.
Nas discussões, a equipe econômica teria insistido, por exemplo, na inserção de duas alterações importantes. A primeira foi a extinção da exigência de posse de pelo menos um navio para certificação como empresa brasileira de navegação (EBN). A outra se refere ao fim da regra que impunha aos afretamentos de navios estrangeiros a “casco nu” a contrapartida de construção de embarcações no país. Se manteve nesse tipo de operação a obrigatoriedade de tripular o navio com, no mínimo, dois terços de oficiais nacionais.
No Congresso, representantes de grandes empresas reúnem esforços para evitar exigência de maioria de tripulação brasileira nos aluguéis de barcos por tempo ou viagem. Hoje, para alugar um navio por tempo ou viagem - duas modalidades previstas na legislação em vigor -, a tripulação inicialmente pode ser toda formada por marítimos estrangeiros.
No afretamento por viagem, por exemplo, é dispensada a contratação de marítimos nacionais, o que torna esse modelo mais atrativo em termos de custo para as empresas. Pelo BR do Mar, um navio alugado no exterior para fazer uma viagem no Brasil terá que ter no mínimo dois terços de oficiais de marinha mercante brasileiros.
Os oficiais de marinha mercante brasileiros têm custo maior do que os estrangeiros, alegam as empresas. A tentativa das companhias de evitar um maior número de marítimos brasileiros a bordo é criticada pelos sindicatos de profissionais embarcados e se constituiu em um dos principais pontos em disputa no projeto de lei. A briga é anterior ao projeto de abertura da cabotagem.
As pequenas companhias, por sua vez, são contra o texto por julgarem que as exigências de modernização e ampliação de frotas - condições de acesso ao BR do Mar a serem detalhadas por ato do Ministério da Infraestrutura - vão muito além de suas possibilidades. Hoje, essas pequenas empresas têm a maior parte de seus negócios concentrados no aluguel de navios a curto prazo, sob bandeira estrangeira. Elas não operam as embarcações, as alugam tripuladas.
Até agora esse tipo de operação só é permitida na falta de navios de bandeira brasileira para a prestação do serviço. Pelo regime em vigor, o armador anuncia a demanda em sistema da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) e, se nenhuma outra empresa assumir o serviço, há permissão para se afretar navio do exterior com tripulação estrangeira para um frete específico ou por até três anos, caso a empresa tenha barcos em construção no país.
Uma novidade do texto da nova lei é que, uma vez habilitada no BR do Mar, as empresas poderão ampliar sua tonelagem afretada no exterior por tempo ou viagem. Isso vai se dar em acordo com governo federal ou amparada na construção de navios pela empresa não só no Brasil, mas também em estaleiros fora do país. Se a empresa de navegação brasileira constrói um navio no país, pode afretar fora o equivalente a 200% da tonelagem do navio em construção no Brasil. No caso de o navio ser construído em estaleiro no exterior, essa proporção cai para 100%.
A lista das empresas habilitadas a participar do BR do Mar, que será controlada por atos do Ministério da Infraestrutura, também permite o aluguel por tempo para empresas que realizam reparos em suas embarcações ou assumam projetos especiais, em que o navio estrangeiro vai ficar dedicado a um só produto e trecho.
Em contrapartida às facilitações do BR do Mar, o governo pretende exigir que os novos contratos de aluguel de navios estrangeiros por tempo ou viagem sejam feitos por subsidiária das empresas brasileira fora do país. Hoje o afretamento de barco estrangeiro é feito a partir da empresa brasileira de navegação (EBN) a partir do Brasil.
Associações menores, como a Logística Brasil, que reúne pequenos armadores e clientes logísticos, alegam que o BR do Mar só favorece grandes grupos com frotas maiores e regulares. Como as pequenas empresas não têm o conteúdo local necessário para se beneficiar das novas vantagens, são contra o texto. Essas entidades têm promovido campanhas na internet com a hashtag #BRdoMARnao.
Fonte: Valor