Seria fácil observar os trens de carga passando pela estação de Camden Road no centro de Londres, para assumir que tudo no mundo da logística está funcionando como sempre esteve.
Recentemente, na hora do almoço, uma locomotiva pertencente à GB RailFreight, uma das maiores operadoras de transporte ferroviário de carga do Reino Unido, soou seu apito enquanto passava pela estação. Ela conduzia 32 vagões carregados de contêineres vindos de Felixstowe, o mais movimentado porto de contêineres do Reino Unido, para uma unidade de distribuição perto de Birmingham. Um outro trem, operado pela DB Schenker, o braço de logística da Deutsche Bahn da Alemanha, passou conduzindo contêineres na direção oposta.
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A capacidade de transporte aéreo de carga sofreu muito com o cancelamento dos voos de passageiros
Ainda assim, a aparente normalidade mascara um drama profundo que vem afetando o sistema logístico mundial. Este ano ele foi atingido pela ruptura nas fábricas da China provocada pelo coronavírus e agora está sofrendo com um colapso sem precedentes da demanda na América do Norte e Europa.
John Smith, diretor-gerente da GB Railfreight, diz que sua companhia está enfrentando uma queda nas exportações conteinerizadas do Reino Unido de até 50% a 60%, enquanto as importações também estão em queda.
“As pessoas estão com medo de gastar seu dinheiro, especialmente com alguns produtos que estão chegando”, afirma Smith. “Os vinhos estão se saindo bem, mas no geral, em termos de gastos discricionários, certamente estamos vendo uma queda na demanda.”
Richard Wilding, professor de gestão de cadeias de fornecimento da Cranfield School of Management do Reino Unido, diz que mesmo antes da crise, novas tecnologias de produção e a redução dos diferencias de riqueza entre os países estavam levando os fabricantes a produzir bens mais perto dos grandes mercados consumidores.
O coronavírus, que levantou questionamentos sobre a sabedoria de se manter os estoques enxutos de antes do vírus e cadeias de fornecimento geograficamente longas, deverá encorajar essa tendência.
“A covid-19 acelerou dramaticamente a mudança em toda essa área”, afirma o professor Wilding. “É por isso que quando sairmos dessa, não acredito que as coisas voltarão ao normal.”
No centro dos desafios está um sistema que cresceu de forma sustentada nos últimos 50 anos para oferecer muitas maneiras de transportar rapidamente e a custos baixos, bens de centros de produção como o delta do rio Pérola, na China, para os grandes mercados consumidores.
Em tempos normais, os clientes contam com muitas rotas potenciais para levar produtos ao mercado - da rápida, mas cara, opção do transporte aéreo, a opções mais econômicas como o transporte marítimo de contêineres. A confiabilidade e flexibilidade do sistema significava que os clientes que compravam esses produtos tinham pouca necessidade de manter grandes estoques por conta própria.
A marinha mercante vem sofrendo uma série de rupturas por causa da disseminação do novo coronavírus no mundo: autoridades portuárias vêm forçando alguns navios a observar quarentenas de 14 dias ancorados, antes de eles poderem entrar em alguns portos.
As companhias de transporte marítimo também debatem como e se precisam fazer mudanças nas tripulações dos navios quando elas chegam ao fim de seus turnos de trabalho, para evitar o risco de levar o vírus para dentro dos navios, enquanto outras vêm tentando prosseguir com as mudanças de tripulação mas com proteções extras.
O professor Wilding diz que uma das maiores causas remanescentes de ruptura tem sido o fato de os procedimentos de “lockdown” de alguns países significar que contêineres estão sendo empilhados em alguns países consumidores e não sendo devolvidos aos países produtores.
Enquanto isso, a capacidade de transporte aéreo de carga sofreu muito com o cancelamento dos voos de passageiros. “O que as pessoas com frequência não percebem é que há passageiros na parte de cima [dos aviões] e carga na parte de baixo”, explica o professor Wilding. “Isso significa que está havendo um aumento nos custos dos fretes aéreos.”
No entanto, segundo Tim Power, diretor-gerente da consultoria Drewry Shipping Consultants de Londres, o risco para a principal opção de longa distância do setor - o transporte marítimo de contêineres - é a capacidade ociosa derrubar preços, ameaçando a viabilidade das operadoras.
A Drewry estima que os volumes manipulados pelos portos de contêineres - que mesmo nos períodos difíceis normalmente crescem de ano para ano - possam cair mais de 15% no segundo trimestre deste ano. Choques de demanda bem menos graves no passado deixaram companhias marítimas com dificuldades para reduzir as taxas e manter seus navios cheios, derrubando os preços dos fretes e provocando perdas para as operadoras, além de ameaçar a estabilidade para todos no setor, do mesmo tipo daquela que se seguiu ao colapso da companhia marítima coreana Hanjin em 2016.
Power insiste que as companhias marítimas conseguiram administrar bem o desafio, cancelando viagens de navios para limitar a pressão sobre o corte das taxas. O World Container Index da Drewry, um índice que monitora as taxas para contêineres de 40 pés em uma série de rotas mundiais de longa distância, estava em US$ 1.542 na semana encerrada em 14 de maio, mais ou menos o mesmo nível prevalecente na maior parte de novembro e dezembro, antes que os efeitos da pandemia fossem sentidos.
“As taxas estão razoavelmente estáveis. Isso significa que eles estão conseguindo administrar as perdas nesse período de baixa, eliminando o máximo de custos possível e sustentando as taxas dos fretes”, diz Power.
A questão para as companhias marítimas é se elas conseguirão manter a disciplina exigida para evitar um colapso das taxas.
Os desafios são parecidos para Smith da GB Railfreight. Sua empresa originalmente viu uma calmaria em seus negócios intermodais - de contêineres - quando as fábricas chinesas estenderam o feriado do Ano Novo Lunar, em janeiro e fevereiro, para controlar a propagação do vírus. A demanda retornou bem até abril, com varejistas e fabricantes britânicos refazendo seus estoques.
No entanto, trens como os que passam pela estação Camden Road estão cada vez mais vazios com a queda na demanda - a Smith espera uma briga de preços feroz promovida pelas companhias de transporte rodoviário, que vão tentar roubar participação de mercado das companhias de transporte ferroviário de cargas. “Acho que teremos três ou quatro meses de uma grande queda nas importações”, avalia Smith.
Fonte: Valor