Às vésperas de uma das mais importantes concessões de áreas do Porto de Santos à iniciativa privada promovidas pelo governo federal, uma entidade que representa parte das empresas de terminais e as maiores operadoras de transporte marítimo do mundo travam uma disputa pelo domínio da região. Em meio a trocas de acusações dos dois lados, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) abriu uma investigação para apurar supostas práticas anticompetitivas pelas transportadoras Maersk e MSC, as duas líderes desse mercado, e a Brasil Terminais Portuários (BTP), que é controlada pelas operadoras. O procedimento foi instaurado a pedido da Associação Brasileira de Terminais e Recintos Alfandegários (Abtra).
O pano de fundo da disputa que provocou a investigação é o leilão do cais de Saboó, que representa o maior potencial de escoamento de contêineres do Porto de Santos, que movimenta um terço de todo o transporte de cargas portuário do País. Com a concessão, o governo federal espera investimentos de R$ 2,2 bilhões. O novo terminal deve ampliar em 64% a movimentação de contêineres, segundo dados do Ministério da Infraestrutura.
PUBLICIDADE
O governo federal espera ainda atrair R$ 20 bilhões em investimentos com a privatização de portos a partir do ano que vem - do total, a expectativa é de que R$ 16 bilhões sejam injetados em Santos.
Atualmente, uma parte da área de Saboó está ocupada pela BTP em um contrato provisório de R$ 1,2 milhão por mês. Antes, era ocupada pela Rodrimar, que foi acusada pelo Ministério Público Federal (MPF) de pagar propinas ao grupo político do ex-presidente Michel Temer - todos foram absolvidos. A área é vizinha do terminal onde a BTP opera desde 2013. No ano que vem, o governo federal vai abrir o edital de concessão para os interessados. Empresas filiadas à Abtra, que são potenciais interessadas no trecho, temem que a BTP vença a concessão definitiva e amplie seu domínio sobre o porto.
Investigação no Cade
A BTP é fruto de uma joint venture entre a APM Terminal, com sede em Haia, nos Países Baixos, e a suíça Terminal Investments Limited. As duas empresas são controladas por gigantes operadoras de navios de carga. A APM é subsidiária da dinamarquesa Maersk e a TIL pertence à suíça MSC.
Em uma representação ao Cade, a Abtra afirmou que, juntas, Maersk e MSC são responsáveis por mais da metade do transporte de contêineres que passam pelo Porto de Santos. Segundo a entidade, as empresas têm inserido em seus contratos com outras armadoras e com exportadoras cláusulas que direcionam a carga ao terminal da BTP.
O pedido de investigação foi feito em agosto de 2020. Antes de instaurar a investigação formal, o órgão faz diligências prévias para entender se as acusações encontram lastro mínimo probatório. Nesse procedimento preliminar, o Cade oficiou empresas de transporte marítimo para que informassem o volume de contêineres transportados por elas nos últimos cinco anos no Porto de Santos. E acabou constatando que, de fato, Maersk e MSC são líderes do mercado, o que, segundo o órgão, já seria suficiente para abrir a investigação.
Em outra diligência, o Cade identificou que Maersk e BTP incluem, em contratos para o transporte de carga de outras operadoras em espaços ociosos de seus navios, cláusulas que preveem um “incentivo” para a “facilitação de escalas” no terminal da BTP.
De acordo com a superintendente-geral substituta do Cade, Patrícia Sakowski, “tais disposições afetam a imparcialidade necessária para garantir que os critérios de escolhas de terminais”.
“Como consequência, em se tratando de armadores responsáveis, individualmente, pelo transporte de uma considerável parcela dos contêineres movimentados no Porto do Santos, e que participam, ainda, de um considerável número de VSAs relevantes com escalas no Porto de Santos, é possível que o crescimento experimentado pelo BTP tenha sido artificialmente causado por tais disposições contratuais discriminatórias”, diz.
VSA é a sigla para Vessel Sharing Agreement, termo usado para designar o acordo estabelecido entre transportadoras para o uso de espaços ociosos em navios.
Disputa pelo terminal
Diante da possibilidade de a BTP levar o leilão, a Abtra pediu, no fim de setembro, uma medida preventiva ao Cade, para que a empresa e suas controladoras sejam proibidas de participar do leilão do cais de Saboó no ano que vem. O órgão não decidiu a respeito e alegou que seria necessário mais tempo para analisar o pedido com maior profundidade.
Ao Estadão, o Ministério da Infraestrutura não quis fornecer dados de empresas que manifestaram interesse no cais em razão do fato de a concessão estar “em desenvolvimento, com o andamento dos estudos de viabilidade técnica e econômica”. “Vale destacar que, desde 2019 até aqui, o Ministério da Infraestrutura já realizou 31 arrendamentos portuários, atraindo R$ 3,4 bilhões em investimentos, além de autorizar 99 terminais de uso privado, com mais R$ 9,7 bilhões para o setor. Na próxima sexta-feira (19), inclusive, acontecerá o maior leilão de arrendamento da história, com os terminais de combustíveis STS08 e STS08A, com quase R$ 1 bilhão em investimentos”, diz a pasta.
De acordo com a Abtra, a eventual expansão da BTP faria com que o Brasil repetisse um fenômeno provocado por MSC e Maerk no porto de Buenos Aires, onde os dois grupos também controlam empresas que detêm concessões para operar terminais. Segundo a entidade, houve o “completo esvaziamento da concorrência”. Em outros países, como nos Estados Unidos e na África do Sul, as controladoras da BTP também foram investigadas por irregularidades de mercado, segundo informou a agência de notícias Reuters.
Procuradas, BTP, Maersk, MSC e os advogados que defendem as empresas não se manifestaram. A MSC se restringiu a dizer que “tem colaborado com a autoridade para todo e qualquer esclarecimento, sendo certo que prima pela adequação de suas operações no Brasil e no mundo”.
Nos autos da investigação que tramita no Cade, a BTP afirma que a Abtra “está movendo a máquina administrativa para defender interesses privados dos seus associados e evitar justamente que haja uma efetiva e ampla concorrência nas licitações a serem realizadas para a expansão do Porto de Santos - isso, sim, uma evidente prática anticompetitiva”.
E pede que a conduta da entidade seja investigada pelo Cade. Atualmente, a Abtra representa importantes players do setor, como a DP World, que adquiriu a Embraport, antigo braço da Odebrecht no setor portuário. Também tem em seus quadros a Santos Brasil, que levou um contrato temporário para operar no cais de Saboó ao lado das BTP.
Em uma peça de defesa recentemente enviada ao Cade, a Maersk afirmou que o pedido da Abtra para barrar a participação no leilão do cais de Saboó “deixa ainda mais evidente o objetivo meramente privado por trás da representação que deu origem ao presente inquérito”. “Fica claro que a ABTRA visa, exclusivamente, proteger interesses privados de alguns de seus membros, que se beneficiariam de menor concorrência no certame relativo à área STS-10”, sustentou. STS-10 é o lote do cais de Saboó que será leiloado para armazenagem de cargas conteinerizadas em Santos.
A respeito de cláusulas de contratos celebrados com a MSC e a Maersk, a BTP diz ao Cade que os compromissos “tiveram um propósito pró-competitivo, ao viabilizar a operação de um novo rival efetivo no setor, e que refletem práticas comuns no setor”.
O mesmo argumento a respeito dos contratos é compartilhado pelas defesas das operadoras. A MSC ressaltou, ainda, que “não tem poder para decidir, individualmente, quais terminais portuários serão utilizados por todas as embarcações operadas por meio de um VSA”.
Fonte: Estadão