Projeto de porto e sistema de captação de água no Encontro das Águas, em Manaus, deixam questão ambiental em segundo plano
As populações da Amazônia já se acostumaram a ter um pé atrás com grandes projetos de infraestrutura. Não faltam exemplos históricos para justificar a desconfiança. Várias comunidades deslocadas para a inundação do lago de Tucuruí, no Pará, em 1984, só conseguiram acender um bico de luz em casa mais de 20 anos depois da construção da usina. Os milhares de colonos instigados a ir para a Transamazônica na década de 70 foram abandonados à própria sorte na beira de uma estrada até hoje não asfaltada. Em 1987, um terço dos índios uaimiris atroaris que viviam na área inundada pela Hidrelétrica de Balbina tiveram de deixar o lugar - e a usina hoje não consegue atender nem mesmo o município de Manaus.
A disputa entre desenvolvimento, conservação ambiental e direitos sociais ressurgiu com o projeto do Porto das Lajes, paralisado na Justiça, que será vizinho de um sistema de captação de água prestes a ser inaugurado em Manaus. Ambos ficam diante de um dos ícones da paisagem amazônica e polo turístico internacional, o Encontro das Águas dos Rios Negro e Solimões, que correm paralelos por mais de 6 quilômetros, formando o Rio Amazonas.
Nessa polêmica, o poder público tem papel duplo. O sistema de captação, que adentra 700 metros nos rios, foi bancado pela União com contrapartida do Estado. No caso do porto, cabe ao governo do Amazonas o licenciamento do projeto. Assim, o Estado fica na curiosa situação de cobrar parâmetros ambientais de um terminal concebido para servir à Zona Franca, que emprega cerca de 100 mil pessoas e é a maior fonte de receita do Amazonas.
O Ministério Público Estadual (MPE) teme que a ligação entre as duas obras seja mais estreita. Com base em laudos científicos, pediu estudo detalhado à Lajes Logística, responsável pelo projeto, sobre a água de lastro dos navios que utilizarão o porto. O objetivo é saber se há perigo de contaminação no abastecimento das 300 mil pessoas que serão atendidas pelo sistema de captação - a distância entre o ponto de coleta e o local do terminal é de cerca de 400 metros.
Arqueologia. A obra de abastecimento, que não precisou de estudo e do relatório de impacto ambiental (EIA-Rima), tem um opositor de peso, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Segundo o órgão, ela acabou com o primeiro sítio arqueológico mapeado em Manaus. "É um crime contra o patrimônio. Fizemos denúncia ao Ministério Público e pedimos abertura de inquérito na Polícia Federal. As partes estão sendo ouvidas", diz o superintendente do Iphan, Juliano Valente.
Também há um sítio arqueológico na Colônia Antônio Aleixo, que será afetada pela obra do porto. Fundada nos anos 30 como um complexo para abrigar portadores de hanseníase, a colônia teve o hospital desativado em 1979, mas cresceu. Vizinha do Distrito Industrial, tem cerca de 38 mil pessoas em comunidades distribuídas ao redor do Lago do Aleixo - cuja entrada fica ao lado da área reservada para o terminal. "Tem outros lugares para colocar esse porto", acredita Ademir Ramos, antropólogo da Universidade Federal do Amazonas.
Parte dos moradores da colônia já realizou protestos contra a obra, apoiados por simpatizantes como o poeta Thiago de Mello. "O desenvolvimento não trouxe grande benefício. As pessoas não estão empregadas e as empresas poluíram e soterraram igarapés que usávamos como balneários", afirma Antônio Bentes, integrante do Morhan, entidade que luta pela reintegração à sociedade de vítimas da hanseníase. Para Bentes, o lago vai virar um "estacionamento de barcos" - o terminal terá capacidade para até três navios simultaneamente.
Waldenora Rodrigues, de 67 anos, chegou à colônia aos 14, "a reboque, de canoa". Os tripulantes que transportavam os hansenianos do interior do Estado para a capital temiam pegar a doença. Então amarravam as canoas longe do rebocador. "O lago era o nosso lazer. Quando chegamos, éramos proibidos de sair do bairro."
Um dos maiores temores de Waldenora e seus vizinhos com a construção do porto é o risco de prejuízo à pesca. Doutor em Biologia de Água Doce pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Geraldo Mendes dos Santos, concorda com os moradores. "O Encontro das Águas é o local onde desovam várias espécies importantes para a economia pesqueira: o jaraqui, o mapará, o sardinhão. E a boca do Lago do Aleixo é um berçário de alevinos." Ele explica que 90% das espécies se reproduzem com a ajuda da correnteza. "As fêmeas e os machos jogam nas águas as células reprodutoras e a correnteza faz o resto. O tráfego intenso de navios vai comprometer esse equilíbrio."
Para a arqueóloga Helena Lima, que trabalhou no estudo de impacto da obra de captação de água, os efeitos do porto para o lago são evidentes. "Acho que todo aquele sistema lacustre vai ser afetado."
Iniciado em 2008, o processo de licenciamento do Terminal das Lajes está parado por uma liminar dada ao MPE, que contestou o EIA-Rima apresentado pela Lajes Logística, controlada pela Vale e pelo Grupo Simões, distribuidor de refrigerantes. "O EIA-Rima não tem, por exemplo, estudos detalhados sobre o impacto da obra no lago", afirma o promotor Mauro Veras.
Tombamento. O licenciamento é atribuição do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), o órgão de preservação ambiental do Estado. Para o diretor-presidente do Ipaam, Gracco Fregapani, a paralisação do processo só adia a solução do problema. "Reconhecemos o direito do empreendedor de licenciar a atividade e o da sociedade de ter acesso às informações. Sem audiências públicas, como manter a sociedade informada?" Veras, do MPE, discorda. "O Ipaam deveria paralisar o processo até que se tenha uma resposta quanto ao tombamento do Encontro das Águas." Pressionado pelo Ministério Público Federal, o Iphan pediu o tombamento provisório do local em julho.
Segundo a Secretaria Nacional de Portos, Manaus tem cerca de 70 pequenos atracadouros, usados para carregar balsas com carretas. O procurador-chefe do MPF, Thales Cardoso, admite que o Porto das Lajes não é sua única fonte de preocupação. "Ele é só um dos empreendimentos que geram pressão negativa no Encontro das Águas."
Apagão. Mesmo entre opositores do terminal no Encontro das Águas, porém, é unânime a opinião de que a cidade precisa de um novo porto. A Zona Franca vive um período de boom. Faturou no primeiro trimestre US$ 7,428 bilhões - alta de 63,79% em relação ao mesmo período de 2009. Cerca de 60% dos insumos utilizados pelo polo vêm de fora do País, e outros 20%, de São Paulo. Os dois grandes portos privados, Chibatão e Superterminais, não atendem mais à demanda. O único porto público de Manaus está arrendado - o governo federal anunciou na semana passada que pretende retomá-lo.
"A questão é mais econômica do que ambiental. Vamos trazer concorrência para os outros portos", afirma Laurits Hansen, diretor da Lajes Logística. "Para entrar nos portos, hoje, os barcos navegam sobre todo o Encontro das Águas. Se pararem no nosso, nem entrarão na cidade."
Os empresários têm recorrido ao transporte aeroviário, 30% mais caro que o modal rodofluvial. Só que esbarram na falta de capacidade do Aeroporto Eduardo Gomes. Estão processando a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero), alegando prejuízo de U$ 660 milhões entre fevereiro e maio. "Quando um navio atraca no Rio Negro, podem se passar 20 dias até o insumo chegar ao pátio da empresa", critica Wilson Périco, presidente do sindicato da indústria eletroeletrônica do Amazonas.
Fonte:Estadão/Karina Ninni ENVIADA ESPECIAL A MANAUS
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