A advocacia pode contribuir para o desenvolvimento dos setores de transporte marítimo e portuário? A resposta é, sem dúvida, sim. Especialmente porque o advogado é, conforme expressa a Constituição Federal, indispensável à administração da Justiça e trabalha para preservar a segurança jurídica do seu cliente. Nesta seara em particular, sua atuação é relevante porque são setores com forte influência transnacional e grande impacto na economia doméstica de qualquer país banhado pelo oceano, gerando receita e empregos, promovendo dinamismo e estimulando investimentos.
Quando há conflito, comum em network industry como a marítima e portuária, é o advogado que buscará a tutela dos direitos por meio de métodos adequados de solução de conflitos (negociação, mediação, conciliação, arbitragem ou dispute board), além das esferas administrativa (Antaq, Ministério da Infraestrutura, TCU, Receita Federal, Cade) e judicial. Antes e depois do conflito, é ele que assessorará o seu cliente, seja aconselhando a redação de um contrato, seja discutindo judicialmente as cláusulas do mesmo contrato.
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Muitas vezes, o advogado nesse setor possui uma qualidade de informação diferenciada em relação ao órgão estatal, de modo que pode contribuir com destaque para o equilíbrio de interesses.
Conforme o art. 2º, parágrafo 1º do Estatuto da Advocacia (Lei n° 8.906, de 4 de julho de 1994), “o advogado é indispensável à administração da justiça e no seu ministério privado, presta serviço público e exerce função social”. Assim como a propriedade e o contrato possuem restrições, dentre elas a função social; e a livre iniciativa, com a incidência de princípios constitucionais da ordem econômica e de regulação setorial; a atividade do advogado possui limitações: a incidência do referido estatuto.
Ocorre que, a segurança jurídica, nela incluídas a livre iniciativa e a liberdade de contratar, é condição necessária, mas não suficiente para proteger o interesse público, com fundamento na Constituição Federal, que elenca diversos outros princípios para preservar a ordem econômica. Dentre esses, a defesa da concorrência, sem o qual a defesa do usuário (o principal player da cadeia de infraestrutura), nunca será eficaz.
Na mesma linha argumentativa, a defesa do usuário, sem observância da segurança jurídica, poderá colocar em risco a estabilidade regulatória que o investidor (prestador de serviço/fornecedor de produto) requer para o ambiente de negócios da sua atividade.
Afinal, como advogado há vinte e cinco anos e com quase quarenta anos nessa indústria, tendo atuado durante quatro anos como piloto a bordo de navios mercantes no longo curso, sustento que para garantir a efetividade do interesse público no setor é preciso uma interpretação sistemática dos diversos dispositivos constitucionais que devem nortear as operações no setor, a partir da tríade mencionada. A mera retórica por parte do governo, de algum prestador de serviço e até mesmo do usuário, na defesa legítima do seu interesse (o que está por detrás de um direito), a fim de que prepondere sobre os demais, poderá colocá-la em risco.
No âmbito regulatório, essa distorção para qualquer um dos lados do triângulo regulatório (governo, prestador de serviço/fornecedor de produto e usuário) é chamada de captura, e pode comprometer seriamente o interesse público no setor, com quebra de empresas prestadoras de serviços e de usuários. Não há como interpretar a Constituição “em pedaços”.
Nesse cenário, deve-se elogiar o esforço que a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), responsável pela regulação econômica e social do setor por meio das suas funções normativa, fiscalizatória, sancionatória, redistributiva e dialógica, que vem implementando o equilíbrio dos vários interesses do setor. A Antaq tem um histórico de participação em eventos e debates na sociedade civil e, em que pese eventuais críticas nos mesmos, nunca se recusou a enfrentar os problemas e propor soluções para aperfeiçoamento da sua nobre atividade regulatória.
Não é fácil ser regulador setorial, especialmente num país desigual como o Brasil que, além de patrimonialista e disfuncional com seus mais de trinta partidos políticos (a maioria sequer com programa de governo), ainda possui um terço da população analfabeta funcional (não compreenderia esse texto).
A cooperação com várias entidades assume, assim, relevância. como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que vem, há quase quinze anos, contribuindo para desenvolver o ambiente de negócios do setor, a partir de suas diversas comissões especializadas em Direito Marítimo e Portuário, espalhadas em todo o território nacional, sejam elas nas Subseções, nas Seccionais ou no Conselho Federal (desta última da qual honrosamente faço parte, como membro consultor).
Tive o privilégio de incentivar a criação de muitas delas (atualmente temos em 13 Estados e no Distrito Federal), por meio de ex-alunos, com o objetivo de difundir a cultura jurídica marítima e portuária para todo o país. Uma grande parceira nesta empreitada é a amiga Profa. Dra. Eliane Octaviano Martins que, idealista, como os que militam nesse setor, teve a iniciativa de organizar memorável congresso a bordo de um navio, que navegou na costa brasileira por dois dias, de Santos a Búzios, em 2008.
Falando em congressos, cumpre destacar o IX Congresso Nacional das Comissões de Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro da Ordem dos Advogados do Brasil, que ocorrerá em Balneário Camboriú/SC, em outubro de 2020 (o deste ano foi em Brasília, mês passado).
A sua primeira edição, por nós idealizada e coordenada, ocorreu nos dias 28 e 29 de setembro de 2012, na sede da Escola de Direito da Universidade do Vale do Itajaí, em Itajaí/SC, onde encontra-se o segundo maior complexo portuário de contêineres do País, em cooperação com o International Maritime Law Institute (IMLI), instituição com sede em Malta, vinculada à International Maritime Organization (IMO).
O Congresso discutiu com representantes de Comissões Seccionais de sete estados a crise do Ensino Jurídico brasileiro, especialmente nas áreas do Direito Marítimo e Portuário, e a necessidade de uma política de longo prazo para que a academia e a OAB caminhem juntas na capacitação de profissionais, especialmente com cursos, a criação de uma comissão no âmbito do Conselho Federal da OAB, maior interação com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a realização de um Congresso anual para discutir tal tema.
Esse evento vem sendo realizado uma vez por ano, já tendo ocorrido em cidades como Vitória, Santos, Curitiba, Rio de Janeiro, Recife, São Paulo e Brasília, e se transformou no mais importante da área no País. São muitos os temas que podem ser discutidos em 2020, dentre outros que poderão surgir, tais como: (i) o modelo de desestatização portuária, de governança e o papel do Estado; (ii) os critérios de nomeação dos diretores das agências; (iii) a defesa da concorrência no setor, diante da verticalização transnacional dos terminais e da crescente concentração dos prestadores de serviços; (iv) como destravar a cabotagem (a chamada “BR Marítima”); (v) o uso da Análise de Impacto Regulatório na produção normativa das agências; (vi) o abuso do poder regulatório; (vii) a reforma das Resoluções Normativas n° 1 da Antaq (que versa sobre afretamentos), n° 18 (direitos e deveres dos usuários, dos transportadores marítimo e dos seus agentes) e n° 34 (Serviço de Segregação e Entrega); (viii) a discussão quanto à legalidade da cobrança do escâner; (ix) os critérios para efetividade do serviço adequado (eficiência, modicidade, previsibilidade) e (x) a descentralização da atividade portuária.
Seria saudável, portanto, que os organizadores considerassem essas particularidades nas suas ações e na composição de eventos das comissões da OAB, tendo em vista que a nossa entidade de classe deve servir à sociedade civil, de forma plural e garantir o debate de forma isonômica, É importante resgatar o processo “conflitivo” de formação da opinião, como leciona o filósofo alemão Jürger Habermas.
Assim sendo, é preciso ter cautela na escolha dos temas e buscar a diversidade de opiniões entre os componentes dos painéis, a fim de garantir o dissenso, que é inerente à advocacia, evitando, dessa forma, o pensamento único ou a defesa de grupos de interesse que, eventualmente patrocinem os eventos. Agindo dessa forma, estaremos evitando a distorção de entendimentos decorrentes dos debates, e aumentando as externalidades positivas que a OAB tem o dever de proporcionar à sociedade brasileira, de acordo com o art. 44, inciso I do seu Estatuto, qual seja, “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas;”.
Osvaldo Agripino é sócio do Agripino & Ferreira Advogados, Pós-Doutorado em Regulação de Transportes e Portos na Harvard University