Com o devido respeito ao autor do artigo A cabotagem brasileira, publicado no dia 19/05/2010, que sei ser uma pessoa ligada à industria do shipping, pareceu-me que o seu artigo não levou em conta fatos históricos, empecilhos da legislação tributária e trabalhista, e que somente poderiam ser conhecidos por pessoas que foram reais atores na história da navegação de cabotagem no Brasil, no que diz respeito ao transporte de carga geral em contêineres.
O autor do artigo afirma que a redução do custo de movimentação de contêineres, bem como a maior velocidade na movimentação dos mesmos pelos terminais portuários recém-privatizados, foi o que permitiu o ressurgimento da navegação de cabotagem de carga geral no Brasil - esta é certamente uma visão míope dos fatos.
Vamos relembrar o que realmente aconteceu no nosso passado recente e que foi o fator que mais contribuiu para este ressurgimento. No final da década 80 tínhamos no Brasil algumas empresas que ainda tentavam se manter de pé explorando linhas de cabotagem principalmente a famosa Santos x Manaus. Empresas estas tais como Loyd Brasileiro, Aliança, Comodal, entre outras poucas, que saíam de Santos com seus navios em sua maioria "ro-ro" lotados de contêineres e retornavam para Santos com somente alguns contêineres de cassiterita e o restante de contêineres vazios para reposicionamento. O motivo deste brutal desbalanceamento não era a concorrência com o caminhão e sim com o avião, que embarcava a maioria dos produtos fabricados na Zona Franca da Manaus, uma vez que o custo com a inflação galopante que assolava o país fazia com que os ganhos financeiros fossem muito maiores do que qualquer eficiência de qualquer sistema logístico conhecido.
Com o advento do Plano Real, e a consequente estabilização econômica do país, a redução da inflação fez com que as grandes empresas começassem a dar mais importância aos seus custos logísticos e procurassem outra alternativa ao transporte rodoviário e aéreo. Foi quando, em 1996, a Sobrare Servemar, empresa do Grupo Wilson Sons, com um Navio chamado "Esperança IV", junto com a antiga Trikem, reiniciaram o transporte de peletes de polietileno de Maceió para o Sul e Sudeste do país. Em 1997 a Transrol, já sofrendo a desleal concorrência dos armadores estrangeiros no trafego Brasil x Norte da Europa, viu-se obrigada a trazer para operar no trafego Brasil x Mercosul seus navios "Intrépido" e "Independente", estendendo posteriormente este serviço para a cabotagem com o primeiro embarque de polietileno da empresa Politeno em Salvador, e embarques em Rio Grande de contêineres com arroz para o Nordeste.
Em 1999 foi a vez de a Docenave entrar neste seguimento, quando com a utilização dos cinco navios multiproposito da antiga Frota Oceânica; iniciou seu serviço de logística de transporte de contêineres porta a porta, tendo como base principal a cabotagem, sendo este o momento da virada do transporte de carga geral ao longo de toda a costa brasileira, o que viabilizou um numero maior de escalas de navios nos portos brasileiros, chamando a atenção das grandes empresas que a partir de então tinham realmente uma nova opção de logística porta a porta.
No final deste mesmo ano a Aliança Navegação, também pressionada pela concorrência estrangeira no longo curso, trouxe para o Brasil seus porta-contêineres "Aliança Copacabana" e "Aliança Flamengo".
Outro ponto abordado pelo autor, o qual copio abaixo, deve ser melhor entendido:
“É necessário também mudar a posição de vedete do transporte, como auxiliar dos demais modos nas operações de intermodalidade e multimodalidade . Mas, para que isso aconteça, entendemos que precisamos ter fretes ainda mais baratos do que os atuais.”
Este é mais um equivoco de quem não está ou esteve diretamente ligado ao ressurgimento do transporte de cabotagem. Os fretes do transporte multimodal porta a porta com base na cabotagem são aproximadamente 20% a 30% mais baratos que o mesmo transporte feito por caminhão, obviamente dependendo da distancia entre seus destinos ao longo da costa bem como da costa para o interior, sem contar os ganhos indiretos como menores perdas e avarias nos produtos durante o transporte e o menor custo de seguro das cargas devido à menor exposição das mesmas ao risco de roubos de carga.
O problema neste ponto está no fato de que quase a totalidade do transporte por caminhão de longa distancia é feito por caminhoneiros contratados por viagem ou agregados nas frotas das empresas transportadoras que os utilizam para as longas distâncias, onde proporcionalmente os fretes por quilômetro rodado é muito menor do que o frete por quilômetro rodado na curta distancia, já que o custo de se contratar um carreteiro é muito menor do que o custo de uma frota própria. Assim, o transporte de longa distancia por caminhão fica artificialmente mais baixo do que o transporte na curta distancia, onde é utilizada a frota própria e se tem maiores rentabilidade, o que encarece e aproxima o custo do frete porta a porta com base na cabotagem com o custo porta a porta do frete via caminhão, dando a falsa impressão de que o frete na cabotagem tem que ser mais baixo.
Outra ilusão é pensarmos que a utilização do suposto espaço ocioso dos navios de longo curso (suposto sim, pois em nosso passado recente ele não existia - lembram do boom das exportações quando faltavam contêineres e espaço nos navios de longo curso) seria a solução para se incrementar o transporte de cabotagem e baratear os seus fretes. Isto não aconteceria pelo simples fato de o transporte na costa brasileira não se comportar como o transporte de longo curso. Como explicado acima, o transporte ao longo da costa somente foi possível com as EBN apostando na multimodalidade e oferecendo um serviço porta a porta, o que não é o interesse das empresas de longo curso, sem falarmos no emaranhado de impostos federais, estaduais em cascata que recaem sobre o transporte multimodal com sobreposição de PIS/COFINS, ICMS, CSLL, etc., sem falar também no custo do ICMS que recai sobre o combustível utilizado na cabotagem, que o torna mais caro para as EBN que operam somente na cabotagem do que para o armador estrangeiro.
Será que o armador estrangeiro de longo curso estaria interessado em constituir uma EBN, se comprometer a montar uma estrutura para contratar e controlar o transporte multimodal, pagar todos os impostos federais, estaduais, contribuições trabalhistas, manter os registros dos livros acessórios que estas obrigações exigem e etc?
Realmente o autor tem razão quanto a alguns argumentos de defensores da reserva de mercado para EBN no transporte de cabotagem serem fracos e parecerem apenas posições ideológicas de quem é do contra.
Realmente qualquer empreendedor de qualquer nacionalidade está interessado no lucro que o seu investimento pode dar e não abandonaria este investimento sem motivo, a não ser que visse oportunidade melhor e que o custo de mudança fosse mínimo, o que parece ser o caso de somente estarmos utilizando espaço ocioso momentaneamente em navios de longo curso de passagem pelos portos brasileiros, sem compromisso e obrigações assumidas pelos seus proprietários.
Vale lembrar que a legislação brasileira permite que qualquer investidor brasileiro ou estrangeiro constitua uma EBN, com capital de qualquer origem, construa no Brasil ou importe navios para operar na cabotagem. Porém o que vimos até hoje foi somente empresas estrangeiras de navegação comprando EBN com interesse em seus mercados de longo curso, casos como Aliança comprada pela Hamburg Sud, Libra comprada pela CSAV, e que levaram de quebra o transporte de cabotagem. Porém nenhuma delas investiu realmente em construção de navios. A Aliança ensaiou, porém não saiu do papel; a CSAV por sua vez nada fez. O único exemplo de investimento veio da Maersk que por tabela comprou a Mercosul Line que pertencia à Ned Lloyd, que foi comprada pela Maersk e importou dois navios full container. Porém o seu objetivo principal não é o transporte de cabotagem e sim criar um serviço feeder para atender a demanda do seu negocio principal, que é o longo curso - a cabotagem neste caso é um acessório.
Somente temos investimento de quem tem compromissos enraizados no país, caso da Log In, empresa da Vale que atua no segmento de logística, que está efetivamente construindo cinco navios full container no Brasil.
O caminho para mudarmos a nossa matriz de transporte e usufruirmos do benefício de um transporte mais barato, mais eficiente energeticamente falando, menos poluidor, mais seguro, logicamente não passa pelo simples fato de liberarmos o embarque de contêineres nos navios de longo curso de bandeira estrangeira, e sim por um processo mais amplo que significaria dar condições às EBN de terem custos operacionais mais competitivos, uma reforma tributária que acabasse definitivamente com os impostos em cascata, unificação da legislação do ICMS, a efetiva descomplicação da legislação que criou o transportador multimodal, etc. Estes certamente seriam caminhos para que empreendedores investissem na construção de navios de bandeira brasileira e passassem a operá-los não somente na cabotagem, mas também no longo curso, e desta maneira aproveitando os espaços ociosos, como sugere o autor.
Ai sim cairíamos no tão sonhado ciclo virtuoso sugerido pelo autor do artigo.
O autor é Gerente de Operações da Sulnorte
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