Por Paulo Fernando Pinheiro Machado
O embaixador Fernando Reis em brilhante ensaio2 comparou a circunstância geográfica do Brasil – a América Latina - com a circunstância existencial de um ente, como a defina Ortega y Gasset: uma sorte de destino simbiótico, do qual a salvação de um dependia da redenção do outro. “Yo soy yo y mi circunstancia, si no la salvo a ella no me salvo a mí”. Parece-me, contudo, que a real circunstância existencial de nosso país se resume mais à geografia física do que à humana: o mar é o destino inevitável do Brasil, como o é de Portugal. Se não salvamos nossas águas, afundaremos no abismo escuro do abandono. E para o Rio Grande do Sul, especificamente, o mar é o que traz vida para o pampa, o meio que conecta Santa Fé ao mundo.
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O Brasil e o Mar
Por sua posição geográfica e extensão de sua costa, o Brasil é uma nação marítima por excelência. O país domina a parte ocidental do Atlântico Sul e teve sua própria fundação realizada por navegantes. Tamanha a importância do mar para o Brasil que, durante quase 500 anos, a ocupação do território se dava quase que integralmente no litoral. Foi apenas como uma decisão de estado, no final dos anos 1960, que se produziu uma ocupação interiorana do território, cujo marco maior é a transferência da capital federal para Brasília.
A importância estratégica do mar exige uma contrapartida de recursos humanos e materiais que assegurem o controle da parte “azul” do território. A Marinha do Brasil conta com uma história de feitos e glórias ímpares, como a Batalha de Cabo Frio (1575), quando os franceses foram expulsos da Guanabara e, quase quatrocentos anos mais tarde, a Batalha do Riachuelo (1865), na Guerra do Paraguai. Na divisão mercante, o Lloyd brasileiro contava, desde a sua fundação em 1894, com a maior frota do Atlântico Sul e, cem anos mais tarde, em 1980, chegou mesmo a elevar o Brasil à posição de segunda nação em construção naval do mundo, atrás apenas do Japão.3 O Brasil não pode prescindir de uma força naval sólida e de uma marinha mercante ágil e atuante.
A Crise: sucateamento e abandono
A nova república, contudo, não deu a devida atenção à Amazônia Azul. A Marinha foi abandonada a pesadas restrições orçamentárias, o que diminuiu drasticamente a sua capacidade de patrulhamento e de manutenção da soberania nacional sobre nossas águas. A marinha mercante brasileira foi totalmente dizimada. O seu nadir se deu em 1997, quando o Lloyd brasileiro foi extinto por falta de interessados na sua privatização. As últimas administrações abandonaram a indústria naval brasileira e o setor se encontra em espiral de decadência, perda de conhecimento técnico e recuperações judiciais.
A situação é tão calamitosa que, em um espaço de 25 anos, o Brasil passou de uma potência marítima – com uma das maiores frotas mercantes do mundo -, para uma situação de total impotência naval. O país hoje não conta com frota mercante própria e é, no jargão técnico, um país 100% “cargo”, isto é, uma nação produtora de commodities mas sem capacidade de transporte de sua produção, hoje totalmente nas mãos de operadores e armadores estrangeiros. Ressalte-se que o Brasil é o único país continental nesta situação. As outras potências produtoras de commodities, como EUA, Rússia e China, todas contam com pujante frota mercante e equipamento naval suficiente para garantir a lei e ordem em suas águas territoriais.
O Brasil, em suma, está com sua capacidade de garantir sua soberania sobre a “Amazônia Azul” comprometida. A questão reveste-se de maior urgência a cada dia, dado que os oceanos são a nova fronteira tecnológica global. Não só o país é alvo de intensa cobiça por suas comprovadas reservas de hidrocarbonetos no pré-sal, como também pela intensa biodiversidade marinha e pelas novas possibilidades de mineração em águas profundas, hoje acessíveis devido ao rápido desenvolvimento tecnológico.
Há risco, inclusive, de exploração ilegal das reservas do país, por meio de técnicas avançadas, como a de perfuração horizontal. Segundo esse método, uma embarcação teoricamente em águas internacionais poderia explorar áreas subjacentes à Zona Econômica Exclusiva (ZEE) do país. Fica claro, portanto, a urgente necessidade de se dotar as forças armadas de capacidade de monitoramento e manutenção de nossa soberania por toda a imensa costa nacional. O país vivia, até há pouco, o total abandono de suas águas aos interesses de quem as quisesse explorar.
Um novo plano de ação
O atual governo federal, atento à sensibilidade estratégica do assunto, promoveu uma rápida mudança de rumos na política naval do Brasil. O Ministério da Infraestrutura lançou a iniciativa da “Agenda Positiva”, com uma série de medidas visando a destravar os investimentos no setor naval, incluindo a MP “BR Mar”, a ser editada ainda neste mês. Concomitantemente, a Marinha está em fases de compra de embarcações e o Brasil apresentou à ONU uma proposta revisada de seu pleito de extensão de sua plataforma continental para além das 200 milhas náuticas, incluindo a elevação de Rio Grande, o que havia sido abandonado pelos governos anteriores.
A reação da atual administração, ainda que certamente na direção correta, não é suficiente. O Brasil precisa, de um lado, reverter a espiral de perda de conhecimento marítimo em que caiu, para poder entrar na chamada “quarta revolução industrial” com tecnologia dominada por operadores nacionais. É preciso um plano ambicioso no modelo “hélice-tríplice”, que coordena governo-academia-setor privado, com o objetivo de gerar conhecimento e tecnologia de ponta no setor naval, capaz de realçar o Brasil à sua posição de potência marítima.
Essa “retomada científica”, sem dúvida alguma, inclui a formação jurídica nacional. A grade curricular dos cursos de direito não inclui a disciplina de Direito Marítimo, que é vital para o comércio e a produção nacionais. Some-se a isso o fato de que o aparato judicial tampouco conta com treinamento especializado na área, o que aumenta o custo de operação e a insegurança jurídica da indústria naval no Brasil. É preciso criar centros de excelência jurídica em Direito Marítimo, o que inclui câmaras arbitrais especializadas no segmento.
Além disso, o país precisa, também, abrir o mercado naval à competição, especialmente de operadores brasileiros. Atualmente, tanto a cabotagem quanto a navegação de longo cursos são dominadas por um pequeno número de armadores estrangeiros, que cobram fretes e demurrages muitas vezes abusivos para os produtores e importadores brasileiros. Dado que se trata de uma indústria estratégica, que controla o escoamento e a circulação de nossa produção e comércio exterior, é um risco muito grande deixa-la desregulamentada sob controle estrangeiro. Os EUA, por exemplo, por intermédio do “Jones Act”, possuem uma legislação muito restrita para navegação em suas águas interiores, reservando-a para navios norte-americanos.
A questão reveste-se ainda de maior urgência diante do recém firmado Acordo Mercosul-União Européia. O tratado, sem sombra de dúvida, é um dos mais brilhantes feitos da diplomacia brasileira. Contudo, com a intensificação exponencial do comércio entre os dois blocos e as reduções tarifárias daí advindas, é necessário que o setor naval brasileiro esteja pronto para fazer face aos desafios vindouros e para aproveitar as inúmeras oportunidades deles decorrentes. Se o gigante azul não acordar agora, corre o risco de dormir para sempre.
A posição estratégica do Rio Grande do Sul
O Rio Grande do Sul ocupa uma posição bastante delicada nesse cenário. O estado gaúcho foi aquele que, de fato, desde a década de 1990, vem pagando a conta do Mercosul. Sua estrutura produtiva foi duramente afetada pela redução tarifária dentro do bloco, o que levou-o a competir de maneira fragilizada e desigual com a produção uruguaia e argentina, que, como se sabe, contam com maior escala e regimes tributários mais fluidos. O Mercosul enterrou o Tratado de Ponche Verde (1845) sem nenhuma compensação ao estado e ao povo gaúchos.
Como se recorda, o Tratado de Ponche Verde pôs fim à Revolução Farroupilha, reintegrando a Província de São Pedro do Rio Grande do Sul ao Império do Brasil. A revolta havia-se iniciado, primordialmente, pelo descontentamento dos gaúchos com a política alfandegária do Império. Os produtos do Rio Grande, especialmente o charque, sofriam taxação mais pesada do que a de seus concorrentes uruguaios e argentinos, o que estava estrangulando financeiramente a província. Com o final da Revolução e o Tratado de Ponche Verde, o governo central havia aceitado impor uma sobretaxa de 25% sobre o charque importado. Isso garantiu um acesso privilegiado da produção gaúcha ao mercado nacional brasileiro, em troca da reintegração da província ao Império. Esse tratamento favorável à produção do Rio Grande do Sul permaneceu até a implantação do Mercosul, cuja livre-circulação de mercadorias dos países-membros anulou sem nada colocar em seu lugar.
Esse abandono dos termos de Ponche Verde é uma das principais causas da deterioração econômica, fiscal e política do Rio Grande do Sul. Entre 2002-2015, apenas para se ter uma idéia, a participação do Rio Grande do Sul no PIB nacional caiu de 7,2% para 6,3%. Na produção agrícola, já em 2017 o Paraná havia ultrapassado o Rio Grande Sul, tomando a posição de terceiro maior estado agrícola do Brasil, atrás de São Paulo e Mato Grosso. A entrada em vigor do Acordo Mercosul-União Europeia pode acelerar essa tendência de declínio econômico do Rio Grande do Sul, constante desde dos anos 1990.
É fundamental, portanto, que os gaúchos estejam preparados para se recolocar na federação de uma maneira mais vantajosa, que lhes permitam aproveitar as oportunidades abertas pelas negociações comerciais em curso e não apenas pagar a conta por elas. É preciso uma reação rápida do governo estadual, no sentido de se rediscutir tanto o pacto federativo quando a posição do Rio Grande do Sul na federação brasileira. É preciso recuperar o que fora acordado entre o Duque de Caxias e o General Canabarro em Ponche Verde, reestabelecendo os direitos garantidos por Dom Pedro II aos gaúchos.
E nesse reestabelecimento da posição que é de direito do Rio Grande do Sul na federação brasileira, os assuntos relativos à navegação e à Amazônia Azul são de fundamental importância. Há cerca de dez anos atrás, escrevi um expediente no Itamaraty chamando à atenção para a importância estratégica do Porto de Rio Grande, em especial para a retomada da indústria naval no Brasil. Por sua posição geográfica, com um projeto ambicioso de conexão multimodal hidro-ferroviária, Rio Grande poderia ser o hub do comércio exterior do Cone Sul, escoando a produção agropecuária do Rio Grande do Sul, do oeste de Santa Catarina, do norte da Argentina, do Uruguai e do sul do Paraguai. Como real polo naval, Rio Grande teria todas as condições de se tornar o ponto nodal da navegação de cabotagem e de longo curso da parte meridional do Atlântico Sul, além de base-naval privilegiada para monitorar e garantir a jurisdição brasileira para uma área estendida, de intenso tráfego marítimo.
Uma política de revitalização naval nacional passa, necessariamente, pela valorização estratégica do polo de Rio Grande que, se abandonado, seguramente jogará a produção do estado do Rio Grande do Sul no limbo, cujo acesso aos portos de escoamento de Paranaguá, Itajaí, Montevidéu e Santos ficará insuportavelmente encarecida. Além disso, a Marinha teria dificuldades logísticas adicionais de patrulhar a região com base em outro polo, para além das fronteiras do estado. A restauração do Rio Grande do Sul passa, inexoravelmente, por uma pujante política estadual de valorização da Amazônia Azul.
Conclusão: a salvação do Rio Grande do Sul pelo mar
Ortega y Gasset estava certo ao apontar a necessidade de que um ente salve a sua circunstancia antes de salvar-se a si mesmo. A circustância geográfica vital do Brasil, em geral, e do Rio Grande do Sul, em particular, é a “Amazonia Azul”. O litoral é a circunstância do pampa. A retomada da industria naval no Brasil, assim, e o reerguimento político e econômico do rio grande do sul estão intimamente atrelados. Um não se salva sem o outro.
Paulo Fernando Pinheiro Machado é diplomata e advogado especializado em assuntos marítimos