No alvorecer da década de 2020, o mundo se deparou com uma devastadora pandemia: o novo Coronavírus. Tal situação não se vivenciava desde a gripe espanhola, enfermidade que assolou a humanidade no início do século XX, infectando mais de 500 milhões de pessoas e deixando a triste marca de mais de 50 milhões de mortos em todo o mundo.
Para enfrentar pandemias, várias medidas normalmente são aplicadas pelos diversos governos de modo a mitigar os efeitos da doença e frear sua disseminação. Com este novo vírus não está sendo diferente. Dentre as medidas implementadas, o isolamento social foi identificado como uma forma de retardar ou reduzir, em um primeiro momento, a propagação da Covid-19. Tal procedimento tem sido adotado em praticamente todos os países, inclusive no Brasil.
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Este artigo se propõe a identificar alguns potenciais impactos desta pandemia na vida do cidadão comum, com foco na percepção da imprescindibilidade do transporte marítimo pela sociedade. Vale comentar que não serão abordados os aspectos sanitários, econômicos ou políticos decorrentes da crise.
Desde o final de março de 2020, uma grande parte da população está confinada em seus lares, deixando suas casas apenas para ir às farmácias e supermercados, excetuando-se as pessoas que trabalham em atividades julgadas essenciais. O fechamento de uma boa parte do comércio e a paralisação de algumas atividades consideradas não essenciais (shopping centers, restaurantes, escolas, pequenos negócios, entre outros estabelecimentos) traz uma série de consequências para a sociedade sendo o desemprego de milhões de brasileiros uma das mais nefastas, em que pese o reconhecido esforço do Governo Federal para mitigar esses impactos.
A situação é muito complicada e de difícil solução. Digamos, uma “Escolha de Sofia”. O dilema: isolamento social x desemprego/caos econômico assombra os governantes e, ainda mais, a população. Neste contexto, uma fração considerável da força de trabalho brasileira não pode cumprir o isolamento. São os profissionais que desempenham serviços considerados essenciais, dentre os quais destacamos os nossos médicos, enfermeiros e demais profissionais da área de saúde, aos quais apresentamos a nossa homenagem e eterna gratidão, por estarem na linha de frente, arriscando-se, diariamente, para salvar milhares ou até milhões de vidas!
Ao estudarmos a cadeia de suprimentos de itens básicos para a vida do cidadão, ou seja, alimentos, fármacos, combustíveis, vestuário etc., constatamos que, em quase todos os casos, o produto ou seus insumos foram transportados no porão ou no convés de um Navio Mercante. Um fato pertinente é que, excetuando-se o porto de Gênova, na Itália, onde se encontrava o epicentro da crise no continente europeu, o setor portuário mundial, cujas atividades, sem qualquer dúvida, devem ser elencadas entre aquelas consideradas essenciais, vem conseguindo manter suas operações e atender às demandas de embarque e desembarque de cargas até o início de abril de 2020. Certamente, tomando-se todas as medidas preventivas cabíveis.
Lamentavelmente, em que pesem os sinais positivos do atual Governo no tocante à valorização do que denomino “Binômio Navio-Porto”, a sociedade, de uma forma geral, ainda não despertou para a importância do cluster marítimo para o nosso país. Talvez esta seja uma excelente oportunidade.
Nesse sentido, iniciada a atual crise, identificou-se como mandatória a manutenção da operação deste binômio responsável por escoar as commodities agrícolas que o país produz, bem como transportar e receber matérias-primas, insumos e bens de consumo de que necessita. Para tal, foram prontamente estabelecidas pelos atores governamentais e privados competentes as medidas emergenciais pertinentes. Os portos seguiram funcionando e os navios navegando. O Brasil não pode parar!
Essa crise que ora enfrentamos nos conduz, inexoravelmente, a colocar os holofotes sobre a cadeia logística de suprimentos, com foco no “dia a dia do brasileiro”. Aquele pacote de feijão, a verdura, a fruta, a carne, aquele remédio essencial para a sobrevivência de um ente querido, até chegar à prateleira de um supermercado ou da farmácia trilhou uma longa jornada.
O multimodalismo que caracteriza essa cadeia logística nos leva a constatar que, na atualidade, o transporte terrestre (caminhoneiros e profissionais afins) e o transporte marítimo (aquaviários, portuários, entre outros) são essenciais para a sociedade brasileira e é imperioso que ela tenha essa percepção. Propõe-se o seguinte exercício cognitivo: imagine se os navios e os portos simplesmente parassem? O leitor já pensou nas consequências? Teríamos um Brasil com alimentos perecendo nos campos, sem combustível nos postos de gasolina, sem remédios na farmácia, sem alimentos nas prateleiras dos supermercados. Sem falar dos impactos nas exportações e consequentemente na balança comercial. Seria o caos. O transporte marítimo é mais do que importante, ele é vital.
Registre-se que por suas características (economicidade, escala, versatilidade e baixo impacto ambiental), espera-se que em pouco tempo, o modal marítimo seja ainda mais empregado no Brasil, com as novas regras da cabotagem previstas no Projeto “BR do Mar”, cuja aprovação está sendo aguardada por todos. Por questão de justiça, não posso desmerecer o papel do transporte terrestre, que também é essencial, dentro deste multimodalismo de nossa cadeia de suprimentos, inclusive, dos portos há que se transportar os produtos ao seu consumidor final. Entretanto, em nosso sentir, a população tem uma maior percepção do transporte terrestre, o que não ocorre em relação ao modal marítimo.
Para uma visão holística sobre o complexo cluster marítimo é imperioso, inicialmente, identificar quem são os homens e mulheres que tocam a indústria marítima. Primeiramente, nos deparamos com os aquaviários1 que são aqueles que efetivamente fazem os nossos navios singrarem os mares, rios e águas interiores. Oficiais e Marinheiros de náutica, máquinas ou convés guarnecem os Navios Mercantes possibilitando o fluxo de riquezas em nosso país e entre nações. Dentre os aquaviários, estão incluídos também os fluviários, que conduzem embarcações em rios e hidrovias e os práticos que assessoram os Comandantes na entrada e saída de portos brasileiros, contribuindo sobremaneira para a segurança da navegação. Neste grupo, temos, ainda, os pescadores que contribuem com parte de nossa alimentação e as tripulações de nossas Plataformas de Petróleo (inclusive com tripulantes não-aquaviários) e dos Navios de Apoio Marítimo, todos responsáveis pela manutenção das atividades de exploração de petróleo em nossas águas jurisdicionais.
Todos esses profissionais, integrantes da Marinha Mercante brasileira, em um trabalho silencioso e profissional, tem um papel imprescindível para o país. Em tempos de Coronavírus, eles não podem permanecer em suas casas. Para eles não é possível o isolamento social. Contudo, é fundamental que se adotem todas as medidas preventivas sugeridas pela Organização Marítima Internacional e aquelas impostas pelo Governo, especialmente pelos Ministérios da Saúde, da Infraestrutura e pela ANTAQ. Com satisfação, tenho notícias da forma profissional como o tema prevenção está sendo tratado a bordo dos navios e na beira do cais, possibilitando que os marítimos e portuários trabalhem protegidos, dentro dos protocolos sanitários recomendados.
Quando falo no binômio Navio x Porto, procuro enfatizar sua natural complementaridade. O que seria do Porto sem o Navio e vice-versa. Assim, a cadeia logística anteriormente mencionada só pode se concretizar com a existência de um porto ou instalação adequada para o transbordo de mercadorias, seja granel sólido ou liquido, carga em geral ou contêineres. Os homens e mulheres que trabalham no porto, especialmente os trabalhadores portuários que atuam na capatazia, bloco, estiva, conferência ou conserto de carga e vigilância são fundamentais para o embarque, desembarque e permanência do navio no porto. Da mesma forma, a manutenção da capacidade operacional do porto in totum, com seus guindastes, porteiners, equipamentos de apoio, sistemas de proteção etc., é condição sine qua non para o adequado fluxo logístico. Em tempos de Covid-19, a força de trabalho portuária, com seus colaboradores, desde a administração, operadores e até os trabalhadores portuários, não podem se isolar, pois os Portos, insisto, não podem parar.
Ainda neste diapasão, existe um grupo de profissionais que, juntamente com os aquaviários, operadores e trabalhadores portuários também tem um papel muito importante no binômio em lide, e por vezes é olvidado. É o agente marítimo, profissional responsável pela intermediação entre a embarcação, tripulações, o armador ou proprietário, com os importadores, os exportadores, os consignatários de mercadorias, as autoridades brasileiras e as empresas prestadoras de serviço dos portos por onde o navio passa, para embarcar ou desembarcar produtos. O agente marítimo não pode parar, e, também não parou.
Agora, quando nos debruçamos sobre um Navio em operação no porto, além de todos os profissionais que efetivamente movem a indústria marítima, não se pode negligenciar o papel fundamental do Estado brasileiro, que está fortemente presente para viabilizar que essas operações ocorram dentro da legalidade e padrões de segurança, em consonância com as normas de todos os atores estatais que atuam na beira do cais. Dentre eles é importante mencionar a ANVISA, fundamental neste momento de combate à Covid-19, a Marinha do Brasil (Autoridade Marítima Brasileira) com a importante atuação das Capitanias dos Portos, a Secretaria da Receita Federal, a Polícia Federal, o Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento e as Autoridades Portuárias. O trabalho desenvolvido pelos integrantes destas instituições governamentais é primordial e, consequentemente, esses homens e mulheres também não podem parar, pois são essenciais.
O nosso país possui 34 portos organizados e 147 terminais de uso privado, e por essas instalações fluem mais de 90% de nossas riquezas, ou melhor, uma grande parte dos insumos e bens para a nossa sobrevivência. Mesmo em tempos de pandemia, esses portos devem prosseguir com suas atividades, sob o risco de parar o país. Os navios que transportam os mais variados produtos, repito, também não podem parar. Só para que o leitor possa ter uma ideia, em 2019, ocorreram mais de 65.000 manobras de atracação de navios em nossos portos, segundo estatísticas divulgadas pela ANTAQ. Neste momento, há milhares de embarcações transportando riquezas brasileiras nos mares e oceanos de nosso planeta. A extensão de nosso litoral aliada aos mais de 15.000 km de rios navegáveis nos credencia como uma Nação vocacionada para o mar. É importante realçar que essa vocação marítima não se deve apenas às raízes históricas, pois o Brasil foi descoberto pelo mar e nele consolidou sua independência, mas mormente pelas próprias características geográficas e geopolíticas de nosso país-continente. Reafirmo que somos uma nação totalmente dependente do mar e demais vias navegáveis.
Neste momento, início de noite, estou na tranquilidade de meu lar, com minha família, em isolamento social, mas vem à minha mente os milhares de Marinheiros e Marinheiras em serviço, embarcados, afastados há semanas de seus lares. Penso, também, nos trabalhadores portuários, estivadores, arrumadores, entre outros, trabalhando sem parar nos porões dos navios ou na beira do cais para que tenhamos, na prateleira do supermercado, os produtos que precisamos.
Concluo este artigo com a esperança de que você leitor, neste momento de meditação e mudanças, passe a valorizar cada vez mais as nossas Forças de Trabalho Aquaviária e Portuária, uma aguerrida legião de incansáveis trabalhadores, que sabem de sua importância e não esmoreceram nesta crise. Valorizemos, consequentemente, o navio e o porto. Disseminem para familiares, amigos e principalmente para as crianças sobre a relevância do mar para o nosso país. Nele está o nosso passado, o nosso presente, e, certamente, o nosso futuro. Ele é azul, pois o nosso destino estará totalmente ligado à essência da Amazônia Azul! Quem viver verá!
Por fim, desejo que Deus ilumine as decisões de todos os que participam como protagonistas neste momento de crise: nossos governantes, cientistas, médicos, profissionais de saúde, e aqueles que seguem trabalhando para o Brasil não parar. Tomara que a sabedoria, a compreensão e o bom senso imperem e estejamos todos unidos, navegando na mesma direção. Vai dar tudo certo, é uma questão de tempo! Depois da tempestade, sempre vem a calmaria.
1Aquaviários são os profissionais habilitados para operar embarcações e são distribuídos como Oficiais e Subalternos, nos Grupos de Marítimos, Fluviários, Pescadores, Mergulhadores, Práticos e Agentes de Manobra e Docagem
Vice-Almirante Wilson Pereira de Lima Filho é Presidente do Tribunal Marítimo