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A preparação para um novo normal no setor portuário

Muitos economistas, planejadores, consultores, executivos e autoridades têm dispendido partes consideráveis dos seus dias na prospecção de como será o “retorno à normalidade”, após a crise econômica e sanitária que aterroriza os dias de hoje. Não é um exercício simples, mormente num país continental e desigual como o Brasil, com um complicado processo de acomodação política que não se verifica em outros países.

Além de não ser um exercício, não é futurologia nem um jogo de adivinhações, mas é a busca de um manual de sobrevivência para a maior parte dos negócios, pequenos e grandes, que compõem o tecido produtivo e os vetores de vendas e consumo, internos e externos.

Tudo indica até o momento que o mundo não será igual. Todos os stakeholders, nos mais diversos segmentos, estão a presumir que o mundo pós-covid será distinto de tudo o que entendemos como mundo. Resumem essa expectativa como um “novo normal”, com surpresas, novos ciclos pandêmicos, mudanças radicais de hábitos, medos diferentes e, também, realizações, satisfações e felicidades diferenciadas, talvez mais simples.

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E como seria a operação portuária após os picos da pandemia? Percebo um sentimento (ou uma esperança) na maioria das pessoas que atuam nesse setor, quer privados quer de esferas governamentais, que o setor será impactado por uma forte tempestade de areia, ou uma nuvem de gafanhotos, que vem, assenta, impacta, estraga e vai embora, restabelecendo-se no médio prazo um normal muito semelhante ao que se vê antes do ataque.

Pode ser. Não tenho a intenção de contestar entendimentos, mas de somar a esses todos o meu próprio, construído a partir de leitura da minha própria experiência no setor portuário, arejada com entendimentos recentes de países ibero-americanos que já estão vivendo o início de um ciclo de retomada, torcendo, todos, que cheguemos a uma vacina que impeça que os ciclos pandêmicos se tornem recorrentes.

O mais notável na crise econômica que vivemos é que ela é, a um só tempo, de oferta e de demanda, o que gera um ciclo desconcertante de desaceleração, de redução do complexo produtivo e de empobrecimento da população.

Entretanto, os setores econômicos não serão impactados na mesma intensidade. Alguns poucos poderão crescer, como os serviços associados à Internet, produção e consumo de grãos e algumas atividades minerais, mas, em grau menor ou maior, a grande maioria será impactada de alguma forma com a pandemia. Entre os mais afetados estão o turismo, boa parte do varejo, a aviação civil e alguns segmentos de bens duráveis, como o setor automobilístico e de máquinas e equipamentos industriais.

Segundo a Moody’s Investors Service, o setor de transportes terá um impacto significativo uma vez que haverá mudanças importantes nas cadeias de fornecimento, ou por excesso de oferta, em alguns casos, ou por não ter o que transportar, em outros. Mais que impacto, o setor de transportes ficará seriamente desequilibrado em relação ao que temos hoje e, evidentemente, buscará novo ponto de equilíbrio (diverso do atual). Embora fábricas não sejam transportadas de um ponto a outro, nem os grupos de consumo se mudem facilmente, as cadeias de transportes de bens não essenciais poderão sofrer fortes ajustes.

Por ser o setor logístico (no seu sentido mais amplo) uma atividade que atende tanto à oferta quanto à demanda do fluxo de cargas, a exportadores e importadores, a produtores e compradores, a queda generalizada da demanda e a redução de oferta, mas, principalmente, a soma dos dois fatores, afetarão diretamente os atores que atuam na logística, operação e transporte de cargas, incluindo-se ai portos, operadores portuários, autoridades portuárias, a armação e os agentes de carga.

Com isso, a movimentação de cargas tende a diminuir e a de pessoas tende a zerar nos próximos meses. Em função de tais certezas, não é possível imaginar operadores portuários e proprietários de navios se comportando, daqui a alguns meses, como se a tempestade de areia tivesse passado e nada mais estivesse ocorrendo. É clara a tendência de redução de serviços e escalas, assim como fica evidente a redução do volume de carga e do serviço portuário, com consequências na ocupação média dos terminais, número de empregos e preços de fretes e serviços portuários.

Segundo análise da ALG, baseada em dados da Alphaliner, somente nos primeiros 3 meses da crise do novo coronavírus houve uma redução 13% da capacidade mundial de transportes de contêineres. Ou seja, assim como avistamos dezenas de aviões estacionados nos aeroportos, uma parcela importante de navios conteineiros já não navega mundo a fora.

Cerca de 50% dos portos europeus notificaram redução de movimentação no mês de abril. Como no Brasil a dinâmica da crise está algumas semanas atrasada em relação à Europa, é de supor que a mesma redução operacional ocorra a partir de maio e junho, uma vez que o setor apresentou aqui um mês de abril muito próximo da normalidade.

O bom desse retardo é que há tempo de se aprender com aqueles que já viveram o que poderemos viver nas próximas semanas e, com competência, podemos também estudar o que nos ensinam os colegas de além-mar para – mais rápido – sair da crise. No momento atual, para minimizar impactos, impõem-se três níveis de providências emergenciais.

No primeiro extrato estão as ações sob responsabilidade dos próprios operadores e seus negócios. Além de garantir condições de sanitização das instalações e condições seguras de trabalho, é preciso estar atento ao novo mercado e ao novo normal da sociedade, para que se identifique deslocamentos de necessidades e a criação de outras oportunidades, na lógica regional em que atua o terminal. Além disso, no âmbito interno, o operador portuário deve ajustar custos e reduzir investimentos, restringindo-os àqueles indiscutivelmente necessários e inadiáveis.

Num segundo nível, além da esfera governamental central, é preciso que as autoridades portuárias e os órgãos públicos intervenientes no sistema portuário protagonizem um conjunto de medidas que apoiem a atividade portuária, de tal sorte que os operadores possam manter suas atividades, eventualmente com menor volume nas operações, ou, em alguns casos, com maior volume de armazenagem, com áreas disponibilizadas para tal, dado que o escoamento poderá não ser atrativo para os donos das cargas. Nessa camada de decisões, é preciso que (i) as autoridades que atuam no local também se sintam responsáveis e comprometidas com a continuidade das operações; e (ii) que as autoridades portuárias busquem a manutenção do nível de emprego e da qualidade do sistema, além de resultados ainda bons para os investidores. Se assim não for, haverá uma inevitável inviabilidade negocial que afetará boa parte dos operadores, agentes, empregos, a própria autoridade portuária e a economia regional. Nesse contexto estão a flexibilização de regras, fluxos de pagamentos de outorgas, de obrigações contratuais, promovendo facilitações e adiamentos de interesse recíproco.

E no terceiro estágio, tão importante quanto todos as outros, estão as medidas governamentais de combate aos efeitos macroeconômicos da crise, tais como (i) manutenção da capacidade de demanda da população, (ii) provimento de serviços médicos em maior escala, e (iii) disponibilização de meios para que o setor de infraestrutura garanta a eficiência do suprimento de mercadorias e a continuidade das obras de melhoria do sistema logístico, mesmo que para isso seja urgente flexibilizar regras de concessões, arrendamentos e autorizações, além de antecipar novos certames de concessões e novas delegações a estados e municípios.

São medidas corajosas nos diversos níveis, mas absolutamente indispensáveis se a sociedade, no seu conjunto, quer sofrer menos com o pós-crise, que, infelizmente, não passará rapidamente e, quando passar, deixará um mundo desconhecido em busca de novos pontos de equilíbrio. A logística, certamente, continuará sendo indispensável e cada vez mais exigida, uma vez que o e-commerce se tornará um caminho sem volta, que exigirá eficiência crescente de transportadores, armazenadores e elos logísticos.

Finalmente, é necessário pensar, prover e exigir. Esperar que os gafanhotos alcem voo e nos deixem as plantações arrasadas é muito pouco para uma sociedade carente e perdida, que outrora se disse moderna e dona de seus desígnios.

200619-augusto-wagner-padilha-martinsAugusto Wagner Padilha Martins é economista e vice-presidente do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Terminais Portuários



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