Por Osvaldo Agripino
• Desde janeiro de 2013, temos observado algumas iniciativas da Agência Nacional de Transportes Aquaviários – Antaq - para a defesa do interesse público no setor por ela (a ser) regulado.
Essa conduta, apesar das assimetrias de informação e de representação ainda existentes, é elogiável, tendo em vista a anemia regulatória em que se encontravam os interesses dos usuários, desde o início da criação da Antaq, em 2001.
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Tal postura decorre, em parte, da (i) manutenção de técnicos (de carreira) qualificados na sua Diretoria, ironicamente, desde o final do Governo Dilma, que vêm procurando exercer a sua (ii) função dialógica com o mercado, e da (iii) pressão de uma minoria de usuários organizados, insatisfeitos com a perda de mercados e de fluxo de caixa, em face de pagamento de preços de transportes extorsivos e de práticas abusivas.
Além desses problemas, dentre inúmeros outros, devem ser citados a omissão de porto, a cobrança de mais de vinte preços extra-frete e a retenção de carga para pagamento de encargos contratuais diversos de frete ou de avaria grossa (como é na lex maritima), por parcela de prestadores de serviços. Estes custos de transação na importação são pagos pelo consumidor final do produto no supermercado ou nas lojas de shopping, bem como no custo final do produto feito com o insumo importado.
Esses poucos usuários, em função da percepção de abandono em relação à conduta omissiva do Estado, que deveria zelar pelos seus interesses, vêm tomando medidas em várias instâncias, especialmente no Ministério Público Federal, com inquérito civil público, e denúncias na mídia, no Tribunal de Contas da União e na cooperação internacional da mais importante entidade de defesa dos usuários de transportes do mundo, a Global Shippers Forum, com sede em Londres.
O GSF tem ajudado a denunciar nos seus boletins periódicos o abandono em que se encontra os usuários brasileiros, incompatível para um país como o Brasil (que chegou a ter o sétimo PIB do mundo recentemente), considerado (ainda em que em crise econômica), pelos teóricos das Relações Internacionais (interdependentes), um monster country ou país baleia (grande território, população e mercado)
Nesse ambiente, a Antaq, na gestão anterior, na pessoa do seu então Diretor-Geral Mario Povia, decidiu criar a Agenda Positiva, discutir e editar normativos para equilibrar os interesses dos diversos agentes e usuários do setor. As palavras-chave são equilíbrio, fairness, justiça, modicidade e equidade.
A reação, com base no argumento de que o mercado é auto-regulável, foi forte e partiu de várias entidades de profissionais e empresas do setor, contrárias a um equilíbrio na relação com os interesses dos usuários (seus clientes), e vieram no sentido de tolher a competência da Antaq. Uma delas, inclusive, pediu a revogação de resolução (n. 4.271/2015) ainda em audiência pública e a outra o arquivamento, em audiência presencial na FIESP, o que foi indeferido pela Diretoria presente, de modo que a resolução voltou agora com o n. 5.032/2016.
Os principais argumentos, ironicamente, como se não existisse Constituição Federal, intervenção no Estado no domínio econômico e regulação setorial no Brasil, podem ser resumido em dois: (i) os contratos celebrados entre usuários e transportadores estrangeiros são fundados na livre iniciativa e nos usos e costumes do mercado, portanto, não se admite regulação; (ii) qualquer tipo de regulação só poderá ser feita através de lei ordinária.
Atuando no setor desde 1981, há vinte e cinco anos como advogado e estudioso de temas macro que afetam a logística e o comércio exterior, sabemos que não é (será) uma tarefa fácil fazer rupturas (ainda que sejam possíveis regras de transição) em um setor que opera em uma indústria de rede transnacional e cartelizada.
Esse institutional framework aliado à inexistência de uma política de defesa da concorrência consistente (não temos sequer norma da Antaq) facilitam a combinação de preços, em face do abuso da posição dominante do players transnacionais, especialmente no shipping de contêineres.
É, portanto, lamentável que mais de 250 mil usuários (desorganizados) brasileiros sejam regulados, de fato, por poucas empresas, a maioria sem CNPJ no Brasil, inacreditavelmente, ainda, fora da regulação.
Esse débil ambiente institucional (vez que sem Estado) contribui para a perda de competitividade do Brasil, desde 2012, quando atingiu a sua melhor posição – 48ª. – despencou para a 81ª posição, numa pesquisa entre 138 países, segundo o Relatório Global de Competitividade 2016-2017, divulgado recentemente pelo Fórum Econômico Mundial, em parceria com a Fundação Dom Cabral.
Ademais, esse mainstream no qual opera o usuário brasileiro (importador e exportador), desorganizado e desinformado, com algumas exceções, pouco reclama e nada faz para a defesa dos seus interesses, enfim, para equilibrar o setor.
Na maioria das vezes, ele está apagando incêndios, resolvendo ou tentando resolver os seus problemas individualmente, nas vias administrativa e judicial e, não raramente, é condenado a pagar valores abusivos, como sobre-estadia de até R$ 140 mil por um contêiner que custa R$ 4 mil, como ocorreu no TJ-SP.
Afinal, a capacitação de magistrados e servidores sobre as temáticas envolvendo o shipping e o serviços portuários não tem sido uma prioridade da maioria das Academias Judiciais (estaduais e federais). O mesmo se dá em relação aos usuários, que não priorizam prestadores de serviços com inclusão de cláusulas escalonadas nos contratos de transportes e serviços portuários. Essas práticas (omissivas) aumentam a insegurança jurídica.
Retorno aos normativos da Nova Antaq. O primeiro deles é a Resolução n. 3.274/2014, denominado Regulamento Portuário. O segundo é o Regulamento Marítimo (Res. 5.032/2016), que foi disponibilizado em audiência pública, de 24.10.2016 a 25.11.2016 (o prazo foi prorrogado para 9.12.2016).
Essa norma DISPÕE SOBRE OS DIREITOS E DEVERES DOS USUÁRIOS, DOS AGENTES INTERMEDIÁRIOS E DAS EMPRESAS QUE OPERAM NAS NAVEGAÇÕES DE APOIO MARÍTIMO, APOIO PORTUÁRIO, CABOTAGEM E LONGO CURSO, E ESTABELECE INFRAÇÕES ADMINISTRATIVAS.
O terceiro é o Regulamento de Defesa da Concorrência, que foi incluído na pauta da Agenda Regulatória 2016-2017, que se encontra em estudos na Antaq, possivelmente o mais relevante e complexo dos três normativos, mas que não será objeto desse post.
Tratarei aqui, tão somente de um aspecto (dentre vários outros) que foi omitido na Resolução n. 5.032 da Antaq, não obstante diversos pareceres e recomendações, inclusive do Dr. Joaquim Barbosa (Doutor em Direito Constitucional pela Sorbonne-Paris) e ex-Presidente do STF, que constatou a violação ao princípio da isonomia (entre EBN e o armador estrangeiro) e a inconstitucionalidade por omissão da Antaq.
Na sua legal opinion, o ex-Ministro constatou a necessidade de outorga de autorização ao transportador marítimo estrangeiro, inclusive porque nos demais modais de transporte, seja rodoviário ou aeroviário, tal procedimento é comum.
Nesse passo, sustento que a outorga de autorização é imprescindível, sem ela, a regulação da Antaq será ineficaz. Afinal, se até para operar um táxi é necessário uma outorga (licença) do município, por que o regulador não a exige de um navio estrangeiro, mas tão somente do transportador nacional (EBN)?
O modelo de regulação setorial, por determinação constitucional, implica a outorga (conferir poder) por meio de autorização, permissão ou concessão. No setor de transporte marítimo de longo curso, a autorização é o instituto adotado, inclusive para empresas brasileiras de navegação (EBN´s). A outorga passa a ser um ativo relevante para o transportador.
Essas empresas, como a Posidonia, que luta para atuar na cabotagem, se mantido o modelo atual (sem outorga ao transportador marítimo estrangeiro), continuarão sofrendo concorrência desleal, diante da violação da isonomia em relação ao armador estrangeiro.
Os usuários dos transportes marítimos e os terminais portuários, especialmente os não verticalizados (sem armador como acionista), dentre os quais os TUPS, também terão problemas: sofrerão com os abusos, inclusive de posição dominante, e impunidade nas inadimplências de poucos transportadores, especialmente os navios tramp.
Isso ocorrerá tão somente se mantido o texto como está, vez que ambos continuarão a sofrer as externalidades negativas das assimetrias decorrentes da falta de poder dissuasório do Estado brasileiro via Antaq.
A outorga é um instrumento relevante, porque somente através dela, e não por meio de um simples cadastro (CATE), é possível dissuadir o mau prestador de serviço de práticas abusivas. Sem a possibilidade de suspensão de outorga ou até mesmo a cassação, que é a medida mais drástica, pela impossibilidade de operar no mercado, não há regulação eficaz.
Ocorre que, embora o texto tenha alguns avanços em relação à Resolução n. 4.271/2015, a Antaq insiste em ficar sem poder dissuasório ao descumprir a Constituição Federal, por não exigir do armador estrangeiro a outorga de autorização para operar no Brasil.
Ao contrário do que fazem a Anac e a Antt em relação às empresas de transporte internacional de cargas e passageiros, que operam no Brasil somente com outorga, a Antaq decidiu, de forma simplista, para não dizer simplória, ao exigir um cadastro – CATE, nos termos do art. 2º, inciso da citada norma, ora transcrito:
Art. 2º Para os efeitos desta Norma são estabelecidas as seguintes definições: (...)
VI - cadastro de transportador marítimo estrangeiro – CATE: formulário informatizado disponibilizado pela ANTAQ em sua página na internet, que contempla as operações da navegação de longo curso com origem ou destino em portos brasileiros, destinado ao preenchimento pelo transportador marítimo efetivo, por agente marítimo que o represente ou mandatário – identificado pelo nome e registro no CPF ou CNPJ/MF, complementado com endereço, número de telefone e endereço eletrônico (e-mail) –, informando o tipo de carga transportado e o volume de carga transportado por mês nos dois semestres civis anteriores, e o clube de Proteção e Indenização (clube de P&I – Protection and Indemnity club) vinculado, com a data de cobertura do seguro;
Para os que estudam regulação setorial independente, uma das funções principais de uma agência reguladora é exercer poder dissuasório, o que é feito, dentre outras formas, por meio de fiscalização e sanção eficaz.
A mera indicação de um Clube de P & I, também não traz segurança jurídica, porque sabemos, como há cerca de 70% tpb registrada em bandeiras de (in)conveniência (veja posts de 10, 18 e 19 de agosto de 2016), há alguns armadores inescrupulosos que “desaparecem”, dando uma "rasteira", como se fala na gíria marinheira, nos seus fornecedores, agentes, usuários e, especialmente, credores.
Essa estratégia faz com que tais clubes os excluam da sua carteira, deixando os demandados, especialmente agentes intermediários em países de débil regulação como o Brasil, a ver navios.
Aqui, alguns pressupostos da ciência econômica são relevantes, porque essa teoria parte da premissa que o agente econômico é racional. Ela também considera uma definição particular da racionalidade humana – a de que o homo economicus age, em regra, para maximizar a sua utilidade.
Vale dizer, dados dois cursos de ação alternativos, a análise econômica do direito conclui que o agente adotará aquele que, à luz das informações que possui no momento da decisão, trará o maior benefício esperado a ele, medido em termos de bem-estar.
Daí se extraí o conceito de dissuasão da norma regulatória, como aquele efeito que reduz ou elimina o benefício esperado da violação da norma (deixar de efetuar o cadastro - CATE) e, portanto, a sua prevalência.
Nesse passo, se mantido o texto como está, o armador estrangeiro (obviamente que somente aqueles prestadores de serviços com defeito) continuará prejudicando as EBN´s, os agentes intermediários (mandatários, que não fazem do mesmo grupo econômico do transportador estrangeiro) e os usuários com suas práticas. Vejamos o art. 29, inciso II, da citada norma:
Art. 29. Constituem infrações administrativas de natureza leve:
II - deixar – o transportador marítimo efetivo estrangeiro que opera na navegação de longo curso com origem ou destino em portos brasileiros – de efetuar o cadastro no CATE ou de manter atualizadas as informações correspondentes: advertência ou multa de até R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais); e
Ocorre que, se um armador não efetuar o CATE, e for denunciado, poderá sofrer sanção de até R$ 50 mil e ainda discutir a legalidade da punição na esfera judicial (até 3 instâncias). Tal valor está muito longe de inibir um player transnacional qualquer conduta abusiva. A receita que esse terá com tal violação é (será) bem maior do que o valor da multa.
Assim, é preciso avançar, observando-se a dosimetria da pena, a razoabilidade e a proporcionalidade. Obviamente que o poder dissuasório só se aplica aos maus prestadores de serviços. O bom prestador de serviço não tem medo do poder dissuasório, aliás, defende-o, porque privilegia a meritocracia e a concorrência.
Por fim, parece-me que é preciso e urgente que o regulador conheça melhor o setor, bem como a análise econômica do direito, para entender que tal sanção, distante de uma multa maior, de uma suspensão e até da cassação da outorga (hard decision), não equilibrará o setor. A experiência, desde a criação da Antaq, mostra que a impunidade tem sido a regra, especialmente quando o principal prestador de serviço no setor regulado pela Antaq não é alcançado pela regulação setorial com eficácia.
Apesar da pressão de diversas entidades para que fossem inseridas normas de proteção do usuário, o texto ainda está muito aquém do razoável para que haja efetividade no poder punitivo da Antaq, especialmente em relação ao armador estrangeiro. Sem dissuasão, tout court, não haverá previsibilidade e modicidade, princípios insculpidos e buscados nos normativos da Nova Antaq.
Entre o texto inicial proposto, as sugestões feitas na última audiência pública do Regulamento Marítimo (suspensa) e o que foi disponibilizado (após a sua reabertura), é notável o risco a que estarão sujeitos EBN´s, usuários, rebocadores, práticos, agentes intermediários e até terminais portuários, em caso de não pagamento pelos serviços prestados ou de danos causados ao meio ambiente e a tais prestadores de serviços, todos regulados pelo Estado brasileiro.
Em que pese o esforço da Antaq, há outros problemas na norma, por exemplo, um dos maiores custos dos usuários – sobre-estadia de contêiner – não foi regulado como deveria, no sentido de evitar cobranças com valores várias vezes superior ao do próprio contêiner. Como está, sem poder dissuasório, não tenho dúvidas que a indústria da demurrage continuará e a judicialização (com as cobranças dos transportadores) será a regra. O dinamismo do comércio exterior não perdoa os governos dos países negligentes com a proteção dos seus interesses.
É preciso que o importador e exportador deixem de apagar incêndios, e se preocupem com o futuro das suas operações (visão prospectiva e preventiva). Caso não contribuam para o normativo da Antaq, acima mencionado, até o dia 25.11.2016, inclusive com audiência presencial designada para o dia 07.11.2016 (segunda-feira), às 14:00, na FIESP, os usuários poderão continuar abandonados no mar.
Em conclusão, está nas mãos da Diretoria atual da Antaq, sob a condução do seu Diretor-Geral Adalberto Tokarski (entusiasta do transporte hidroviário interior), a opção para fazer história ao decidir por uma regulação que privilegie o interesse público nos serviços de transporte marítimo internacional prestados quase 100 % por operadores estrangeiros, razão de existência da regulação setorial.
Será que a atual Diretoria da Antaq acredita que exercerá seu poder dissuasório em relação à defesa do interesse público com um simples cadastro de transportador marítimo estrangeiro? Ou com a aplicação de uma advertência ou de multa de até R$ 50 mil, caso o transportador não o faça? Será que a atual Diretoria acredita realmente que a exigência de uma outorga afastará o transportador marítimo estrangeiro do fabuloso mercado de fretes brasileiro?
Nesse ponto, acredito que olhar para fora (por exemplo a regulação do shipping nos EUA, objeto das minhas pesquisas de Pós-Doutorado no Center for Business and Government da Harvard University em 2007-2008), onde diversas empresas e seus executivos, que operam lá e aqui, mesmo após efetuarem o pagamento de pesadas multas à Divisão Antitruste, inclusive com alguns dos seus executivos presos (regime fechado) por violação da defesa da concorrência, porque prejudicaram os usuáriosnorte-americanos, continuam a operar naquele mercado. Assim, é preciso um pouco de ceticismo pirrônico aos dirigentes da Antaq.
Certamente que os aplausos dessa política, editada de forma equilibrada, com estudos técnicos e ouvindo todos os interessados, viriam mais dos usuários brasileiros que pagam os tributos federais que remuneram os servidores da Antaq, do que dos operadores estrangeiros que aqui operam.
Afinal, sem outorga e sem poder dissuasório, a regulação setorial independente é para quê?
Osvaldo Agripino é advogado graduado pela UERJ (1992), sócio do Agripino & Ferreira, Oficial de Náutica graduado pelo CIAGA, 1983, com experiência de 4 anos a bordo de navios mercantes, quando viajou para 27 países. Pós-Doutor em Regulação de Transportes e Portos, Harvard University - 2007-2008, e ex-coordenador do Grupo de Pesquisas Regulação e Juridicidade do transporte marítimo e da atividade portuária (registrado no CNPQ, 2007-2015) – agripino@agripinoeferreira.com.br