Nos últimos 30 anos, a criação do Sistema Integrado de Comércio Exterior (Siscomex) transformou o processo de importação e exportação no Brasil. Com ele, foram criados os canais de parametrização (verde, amarelo, vermelho e cinza), que definem o tipo de fiscalização que uma mercadoria receberá.
A maioria das cargas é direcionada para o canal verde, onde são liberadas automaticamente, sem a necessidade de inspeção física ou documental. Se o sistema apontar alguma irregularidade menor, a operação é direcionada para o canal amarelo, que exige apenas a conferência dos documentos.
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Em casos de maior risco, a mercadoria é enviada para o canal vermelho, que demanda tanto a análise documental, quanto a inspeção física da carga. Já o canal cinza é acionado quando há suspeita de fraude. Nesse caso, a fiscalização é mais rigorosa e a mercadoria pode ficar retida por até 120 dias para uma investigação detalhada.
Vale dizer que a parametrização dependerá essencialmente da classificação adota pelo contribuinte, que resumidamente deverá levar em conta os critérios indicados no Sistema Harmonizado de Designação e Codificação de Mercadorias (SH), com base nos parâmetros das Notas Explicativas do Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias (Nesh) e aplicar a Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM) mais adequada à mercadoria que está importando.
Nesse contexto é que nasce há possibilidade de divergência entre a classificação fiscal adotada pelo contribuinte e àquela atribuída pela Receita Federal do Brasil (RFB) que decorre da própria natureza interpretativa do processo classificatório. Embora o SH forneça critérios objetivos, a aplicação prática dessas regras exige análise técnica das características do produto — como composição, uso, grau de elaboração e finalidade —, essa análise pode conduzir a entendimentos distintos entre o sujeito passivo da obrigação tributária e a autoridade fiscal, sobretudo em casos de bens com múltiplas funcionalidades, itens compostos ou produtos com nomenclatura comercial ambígua. A divergência, nesse contexto, é legítima e previsível, não caracterizando, por si só, má-fé ou tentativa de fraude por parte do contribuinte.
O ordenamento jurídico brasileiro reconhece o direito do contribuinte à autodeclaração no despacho aduaneiro (artigo 18 do Decreto nº 6.759/2009 – Regulamento Aduaneiro), cabendo ao Fisco a posterior fiscalização e eventual reclassificação do código NCM informado. Em caso de discordância, a atuação da administração tributária deve observar os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, LV, da CF/88), garantindo ao contribuinte a possibilidade de impugnação administrativa ou judicial. Ademais, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem jurisprudência no sentido de que, havendo dúvida razoável sobre a classificação fiscal, a penalidade por erro deve ser afastada, salvo comprovada intenção dolosa. Assim, a divergência interpretativa, quando tecnicamente fundamentada, não apenas é juridicamente admissível, como integra a dinâmica natural da relação fisco-contribuinte no comércio exterior.
Não verificada a má-fé, a divergência pondera subjetividade entre o entendimento do contribuinte importador e do Fisco
No contexto aduaneiro, fraude, simulação e conluio configuram condutas ilícitas que visam reduzir ou suprimir tributos, burlar controles administrativos ou obter vantagens indevidas no comércio exterior, sendo tratadas com especial rigor pela legislação. A fraude caracteriza-se pela utilização de meios ardilosos para induzir a fiscalização a erro, como a declaração falsa sobre a natureza ou a classificação fiscal da mercadoria, o subfaturamento ou a alteração de documentos. Já a simulação, prevista no artigo 149, VII, do Código Tributário Nacional (CTN), consiste na criação de uma aparência jurídica diversa da realidade para mascarar a operação efetiva, seja de forma absoluta (operação fictícia) ou relativa (operação real, mas com elementos falsos). O conluio, por sua vez, envolve a atuação conjunta de duas ou mais pessoas para praticar essas condutas, agravando a penalidade pela demonstração de organização e intenção deliberada de lesar o erário.
No contexto das operações realizadas de boa-fé, verificada a divergência entre a classificação fiscal adotada pelo contribuinte e aquela almejada pelo Fisco, nada além de eventual fiscalização e avaliação da mercadoria com posterior lançamento em auto de infração, se o caso, seria cabível.
Apesar disso, o Supremo Tribunal Federal (STF), em setembro de 2020, considerou constitucional condicionar o desembaraço aduaneiro de mercadorias importadas ao pagamento diferenças de impostos e multas, verificadas no desembaraço aduaneiro em eventual interrupção do despacho aduaneiro.
A decisão foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.090.591/SC (Tema 1.042), no qual o STF deu provimento ao recurso e reformou a decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4).
Nos autos do referido RE, foi discutida a legalidade de reter mercadorias e exigir o pagamento de impostos e multas (tributárias e administrativas, de 100%) ou a prestação de garantia como condição para o desembaraço aduaneiro, ao final, prevalecendo a seguinte tese: “É constitucional vincular o despacho aduaneiro ao recolhimento de diferença tributária apurada mediante arbitramento da autoridade fiscal.”.
Ora, não restam dúvidas que não se mudou a dinâmica do lançamento, a autoridade aduaneira, nesse contexto, deveria tão somente liberar a mercadoria e, posteriormente, se entender cabível, lavrar o competente auto de infração para formalizar a cobrança dos valores que reputa devidos.
A permanência da mercadoria retida é medida abusiva que infringe diretamente os princípios constitucionais previstos nos artigos 1º, inciso IV, e 170, caput e parágrafo único, da Constituição Federal (CF), os quais asseguram a todos os cidadãos o direito ao exercício livre e regular de suas atividades econômicas:
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(…)
IV – Os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. – grifamos.
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(…)
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
A concretização desses preceitos se dá, justamente, pela liberdade conferida aos agentes econômicos para empreender, produzir, distribuir e prestar serviços, sem necessidade de autorização prévia do Estado. Em outras palavras, o princípio da livre iniciativa representa uma extensão da liberdade no âmbito econômico.
É evidente, portanto, que o ordenamento jurídico brasileiro protege a liberdade de atuação dos agentes econômicos, sendo inadmissível que autoridades administrativas imponham restrições ilegítimas que inviabilizem o desenvolvimento regular das atividades empresariais.
Não se admite que o agente fiscal condicione a liberação de mercadorias importadas ao pagamento de tributos supostamente devidos em razão de divergência na classificação fiscal. Isso porque a Administração Tributária dispõe de instrumentos legais próprios e menos gravosos para exigir o crédito que entende devido, como é o caso da lavratura de auto de infração.
Nos termos do artigo 142 do Código Tributário Nacional, é atribuição exclusiva da autoridade administrativa a constituição do crédito tributário por meio do lançamento, procedimento que compreende a verificação da ocorrência do fato gerador, a determinação da matéria tributável, o cálculo do montante devido, a identificação do sujeito passivo e, se for o caso, a aplicação das penalidades cabíveis:
“Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo o caso, propor a aplicação da penalidade cabível.
Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional”.
Dessa disposição legal extrai-se, com clareza, que a única forma legítima de exigência de tributo pelo Fisco é mediante o lançamento regular, e não pela imposição de medidas coercitivas, como a indevida retenção de mercadoria importada.
A atuação da Receita Federal em operações de importação tem ultrapassado, com frequência, os limites da legalidade e da razoabilidade. Mesmo na ausência de qualquer indício de fraude ou má-fé do importador, o Fisco tem retido mercadorias por dias, reclassificando produtos com base em critérios duvidosos, sem lavrar auto de infração e — pior — condicionando a liberação à prestação de caução. Essa prática, além de violar garantias constitucionais, compromete a previsibilidade e a segurança jurídica das operações de comércio exterior.
O Judiciário, por sua vez, tem legitimado esse comportamento ao se apoiar de forma automática na tese firmada pelo STF no Tema nº 1042. Embora o Supremo Tribunal Federal tenha reconhecido a constitucionalidade da vinculação do despacho aduaneiro ao recolhimento de tributos apurados por arbitramento, isso não autoriza retenções indefinidas nem dispensa o dever de autuar formalmente o contribuinte. A omissão em lavrar auto de infração nega ao importador o direito ao contraditório e à ampla defesa, transformando a retenção em um instrumento coercitivo — prática rechaçada pela própria Súmula 323 do STF. Quando a Receita Federal exige caução antes mesmo de formalizar a cobrança, está invertendo a lógica do devido processo legal: primeiro retém, depois pensa se autua.
Somente ao identificar indícios de fraude, simulação ou conluio, a Receita Federal poderia reter a mercadoria, lavrar auto de infração, exigir tributos e aplicar penalidades severas, como a multa de 100% prevista no artigo 88 da MP nº 2.158-35/2001, especialmente em casos de subfaturamento. Além disso, tais condutas podem ensejar responsabilização administrativa, tributária e até criminal, com tipificações como falsidade ideológica, contrabando ou descaminho.
Nessa hipótese, diferentemente da importação realizada de boa-fé e sem indícios dessas condutas, a retenção encontra amparo legal como medida cautelar para assegurar a apuração e a cobrança do crédito, diante da gravidade e da presunção de ilicitude, o Fisco está autorizado a condicionar a liberação ao pagamento ou à prestação de garantias.
Adotar esse tipo de conduta para toda e qualquer divergência entre a classificação do contribuinte e do Fisco, não apenas sufoca o fluxo comercial de empresas regulares como também mina a confiança no sistema fiscal e judiciário. Em um ambiente econômico cada vez mais competitivo, submeter o contribuinte a medidas cautelares sem base legal sólida, sem risco fiscal evidente, e sem a devida formalização do lançamento tributário, é penalizar a boa-fé. A fiscalização não pode ser confundida com intimidação. O Judiciário, ao aceitar essa lógica, deixa de proteger o cidadão e passa a ser avalista de um Estado que, em nome da arrecadação, ignora a legalidade.
A simples existência de discordância quanto à classificação fiscal não legitima a retenção de bens importados. A exigência de recolhimento de diferenças tributárias, multas e encargos decorrentes de reclassificação fiscal — ainda que devida — não autoriza a utilização da mercadoria como instrumento de coerção para obrigar o pagamento.
Durante a análise do referido RE, a Corte Suprema afastou a incidência da Súmula 323[1] do STF. O entendimento predominante foi o de que o precedente que originou a súmula (RE 39.933) abordava a apreensão de mercadorias em circulação no território nacional com o objetivo de coagir o contribuinte.
Não se diga que o prosseguimento do despacho aduaneiro de importação, com a liberação da mercadoria somente se dá mediante recolhimento da diferença de tributos e multa respectiva ou prestação de garantia, pois seriam essas condições para o prosseguimento do despacho aduaneiro de importação e consequente desembaraço, uma vez que no momento da importação, realizada de boa-fé, os impostos devidos já foram todos devidamente recolhidos com base na interpretação e análise do contribuinte, que se presume legitima, até prova em contrário.
Quando os tributos incidentes na importação são devidamente recolhidos com base na classificação fiscal adotada pelo contribuinte, até o momento em que a autoridade aduaneira manifesta intenção de reclassificação, não há, no curso da conferência aduaneira, qualquer valor pendente de recolhimento. A eventual divergência entre a classificação informada e aquela pretendida pelo Fisco constitui uma disputa interpretativa ainda não consolidada, e, portanto, não gera, de imediato, inadimplência tributária. Tratar essa divergência como se fosse falta de pagamento legitima uma distorção da lógica processual aduaneira além de com compromete as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, previstas no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal.
Ora, ainda que se diga que medidas nesse sentido não poderiam ser consideradas ilegais, tendo em vista que todos os tributos devidos devem ser recolhidos por ocasião do registro da declaração de importação, a divergência de interpretação da classificação fiscal, quando pautada em subjetividades, não gera presunção de validado do ato administrativo de lançamento das diferenças baseadas na divergência entra a classificação lançada pelo contribuinte a aquela almejada pelo fiscal, posto que se presume feito de boa-fé o exercício de classificação pelo contribuinte.
A retenção de mercadorias no despacho aduaneiro com fundamento exclusivo na existência de suposta diferença tributária decorrente de divergência na classificação fiscal é medida desproporcional e de duvidosa legalidade. Isso porque tal diferença, por si só, não justifica a imposição de um entrave ao exercício da atividade econômica do contribuinte, especialmente antes do esgotamento do contraditório administrativo. Impedir o acesso aos bens importados compromete a geração de caixa e, por consequência, a própria capacidade do sujeito passivo de cumprir com suas obrigações tributárias — inclusive aquela discutida. Tal prática revela uma contradição material, pois, ao buscar assegurar um crédito tributário supostamente devido, a administração tributária termina por inviabilizar a própria fonte de adimplemento, em clara ofensa aos princípios da proporcionalidade, razoabilidade e eficiência (artigo 37, caput, da CF/88).
É igualmente inaceitável, sob a ótica do devido processo legal, exigir o recolhimento imediato da diferença apurada com base em uma interpretação divergente e ainda em discussão, especialmente quando motivada por dúvida técnica e legítima. Não se trata, evidentemente, de legitimar tentativas de evasão fiscal, mas de reconhecer que o contribuinte, profundo conhecedor de seus próprios produtos, processos e tecnologias, muitas vezes adota classificação fiscal tecnicamente fundamentada e passível de prevalecer ao final da análise. Inclusive, nos moldes da Instrução Normativa RFB nº 2.086/2022, a própria Receita Federal pode designar peritos para avaliar a natureza das mercadorias — inclusive em canais sem conferência física — e, mesmo diante de laudos que corroboram a classificação fiscal informada pelo importador, não são raros os casos em que o órgão fiscalizador insiste na reclassificação e na retenção indevida dos bens. Tal postura evidencia a fragilidade da imposição e o desequilíbrio da relação entre Fisco e contribuinte, especialmente quando decisões administrativas desconsideram pareceres técnicos que favorecem o particular.
Conclusão
Claro, não se pode esquecer que, nos termos do artigo 7º, itens 3.1 e 3.2, do Decreto nº 9.326/2018, que internaliza as diretrizes do Acordo sobre Facilitação do Comércio da Organização Mundial do Comércio (OMC), o desembaraço aduaneiro está condicionado ao pagamento dos tributos e encargos apurados até o momento da chegada dos bens. Portanto, tendo o contribuinte recolhido integralmente os tributos com base na classificação fiscal por ele adotada, até o momento da eventual divergência suscitada pela autoridade fiscal, não há que se falar em saldo tributário pendente. Não é viável ou razoável exigir que o contribuinte de boa-fé anteveja a prestação de garantia para eventuais valores ainda não determinados e sequer conhecidos, que passam a ser exigidos apenas quando a autoridade fiscal eventualmente entende por uma classificação divergente.
A eventual pretensão de reclassificação por parte do Fisco representa hipótese de lançamento por homologação ainda não questionado formalmente, razão pela qual o crédito tributário correspondente ainda não se encontra definitivamente constituído, mesmo que o entendimento da classificação seja divergente. Assim, não é legítima a exigência de pagamento ou mesmo de garantia imediata enquanto não superado o contraditório administrativo ou judicial – dada sua inafastabilidade – quando e se confirmada a procedência da nova classificação. O próprio item 3.4 do artigo 7º do Decreto 9.326/2018 reforça essa lógica, ao prever que a exigência de garantias relativas a penalidades pecuniárias somente se justifica nos casos em que já tenha sido identificada infração passível de sanção.
Exigir o recolhimento ou a prestação de garantia antes da constituição formal do crédito viola o devido processo legal e inverte indevidamente a presunção de legitimidade das declarações prestadas pelo contribuinte pautado de boa-fé. Aplicar esse entendimento é inadvertidamente imputar presunção de má-fé no lançamento realizado pelo contribuinte.
Não se diga, como afirmado no julgamento do Tema nº 1.042, que crédito tributário exigido com base em divergência de classificação fiscal entre o contribuinte e a Receita Federal possui natureza definitiva, líquida, pois sobre nele pairam dúvidas e incertezas enquanto não houver decisão final no âmbito do processo administrativo ou judicial competente. A esse respeito, o artigo 51, §1º, do Decreto-Lei nº 37/66 faz menção à “exigência fiscal”, enquanto o artigo 571, §1º, do Decreto nº 6.759/2009 (Regulamento Aduaneiro), citado inclusive no voto do ministro Marco Aurélio Mello, refere-se expressamente à “exigência de crédito tributário no curso da conferência aduaneira”. O legislador ao regulamentar o Decreto-Lei, o Regulamento Aduaneiro, deixou claro que se trata de crédito ainda em constituição, dependente da conclusão da conferência e do contraditório.
Além disso, o artigo 39 do Decreto-Lei nº 1.455/76 admite a exigência de garantia apenas no contexto de “litígios fiscais”, reconhecendo, assim, a existência de dúvida objetiva sobre a existência ou o montante do crédito discutido. Nessas hipóteses, o crédito tributário encontra-se sob questionamento e, portanto, não atende aos requisitos legais de certeza, liquidez e exigibilidade exigidos para configurar dívida tributária. A exigência de pagamento ou garantia imediata, sem a prévia constituição definitiva compromete o direito ao contraditório, especialmente quando se trata de interpretação técnica e controvertida sobre a correta classificação fiscal de bens importados, notadamente nas situações em que os bens são objetos de avaliação por peritos designados pela própria RFB, sendo convergente a opinião do expert e a classificação adotada pelo contribuinte.
Surge dúvida quanto à extensão da decisão proferida no julgamento do Tema 1.042 da repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal, posto que o caso ali examinado tem conotação correlata à aplicação da multa de 100% prevista no artigo 88 da Medida Provisória nº 2.158-35/2001[2]. Tal penalidade, aplicada em razão de infração ao controle aduaneiro — notadamente o subfaturamento —, não possui natureza tributária, nos termos do artigo 3º do Código Tributário Nacional, que expressamente estabelece que tributo não constitui sanção por ato ilícito. Trata-se, portanto, de multa administrativa de caráter extrafiscal, cujo valor, embora possa ser inscrito em dívida ativa, não se caracteriza como crédito tributário, conforme o artigo 39, §2º, da Lei nº 4.320/64.
Embora à luz do entendimento firmado pelo STF no Tema 1.042 fosse possível, em tese, exigir o pagamento ou a prestação de garantia para fins de desembaraço aduaneiro, tal interpretação carece de melhores esclarecimentos quando se trata interrupção do despacho aduaneiro eventual exigência de IPI, juros de mora e multa proporcional, não versando sobre eventuais ilícitos.
Mesmo no âmbito do Direito Aduaneiro as multas devem ser constituídas mediante lançamento por auto de infração e submetidas a processo administrativo fiscal, nos termos do Decreto nº 70.235/72, antes de se tornarem exigíveis. Assim, ainda que o Tema 1.042 tenha sido aplicado pelo Fisco para abarcar a multa do artigo 88 da MP nº 2.158-35/2001, sua aplicação não pode ser automática a toda e qualquer operação de importação, não sendo possível imaginar colocar o importador de boa-fé no mesmo patamar daquele que indevidamente se utilizou de subfaturamento, na medida em que a fraude, simulação, e conclui são passiveis de penalizações mais gravosas e diferentemente da mera divergência entre as classificações do contribuinte e a almejada pelo Fisco pautada em questões técnicas.
A exigência de pagamento ou garantia prévia não deveria obstar o desembaraço aduaneiro, devendo o precedente limitar-se a hipóteses de diferença de tributos e respectivas penalidades tributárias previstas no artigo 88 da Medida Provisória nº 2.158-35/2001 e 44 da Lei nº 9.430/96, ou seja, quando eventualmente verificada a ocorrência de fraude, sonegação ou conluio, e não a toda a qualquer divergência entre Fisco e contribuintes.
Assim, temos:
Retenção legítima: A retenção de mercadorias no despacho aduaneiro somente se justifica em hipóteses de indícios concretos de fraude, simulação ou conluio nos termos do Decreto-Lei nº 37/66 e da MP nº 2.158-35/2001, especialmente quando houver evidências de subfaturamento ou de condutas dolosas voltadas à supressão de tributos ou à burla de controles aduaneiros. Nessas situações, a medida cautelar encontra respaldo legal e pode ser condicionada ao pagamento ou à prestação de garantia;
Retenção ilegítima: É abusiva e desproporcional a retenção baseada exclusivamente em divergência técnica de classificação fiscal, quando não verificada má-fé do importador. Nessas hipóteses, os tributos já recolhidos com base na autodeclaração gozam de presunção de legitimidade até decisão final administrativa ou judicial. O crédito decorrente da reclassificação pretendida pelo Fisco não é líquido, certo ou exigível antes de constituído por meio de lançamento regular, não podendo servir de fundamento para medidas coercitivas.
Diante de retenção indevida, é possível dizer que o contribuinte pode:
Impugnar o ato no âmbito administrativo, requerendo a liberação imediata da carga;
Interpor recurso ao CARF, se lavrado auto de infração;
Manejar medida judicial (Mandado de Segurança ou ação ordinária) para assegurar a liberação das mercadorias e afastar a exigência de garantia ou pagamento prévio, invocando os princípios da legalidade, proporcionalidade, livre iniciativa e devido processo legal, além de precedentes como a Súmula 323 do STF e invocando a boa-fé visando afastar o alcance do Tema nº 1.042.
De todo modo, independentemente da via eleita, deverá o contribuinte usufruir livremente de suas mercadorias, quando não verificado qualquer indício de má-fé ou dolo.
Álvaro Souza Daira é advogado especialista em Direito Tributário e Empresarial na Leite Alencar Sociedade de Advogados
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[1] Súmula 323: “É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.”
[2] Art. 88. No caso de fraude, sonegação ou conluio, em que não seja possível a apuração do preço efetivamente praticado na importação, a base de cálculo dos tributos e demais direitos incidentes será determinada mediante arbitramento do preço da mercadoria, em conformidade com um dos seguintes critérios, observada a ordem sequencial.